quinta-feira, 29 de novembro de 2007

SINE DIE

Deste blogue, permito-me extrair a seguinte notícia, publicada por Eduardo Maia Costa:

498 beatos

498 beatos de uma só vez, é obra! Nenhum reparo haveria, porém, a fazer, por parte de quem não comunga dos valores católicos, senão respeitar as opções da Igreja, não fora o seguinte: é que esses beatos pertenciam todos ao sector "nacionalista" da Guerra Civil de Espanha, não tendo sido contemplada com a mesma distinção nenhuma das vítimas (ou dos mártires, como queiram) dos franquistas. Pode a Igreja admirar-se se se fizer uma leitura política desta opção?

ATÉ AQUI, A CITAÇÃO. AGORA, A RESPOSTA:

Ficamos a saber que os franquistas mataram pessoas por ódio à religião. Que essas pessoas morreram por não renegarem a sua fé. E, finalmente, que a Igreja é muito má porque não reconhece mártires nessas vítimas.
 
Mas, nalguns espíritos, pode surgir uma interrogação: porque terá a Igreja canonizado o P. Maximiliano Kolbe, O.F.M.? Não há razão para espanto --- a Igreja nutre simpatia pelo franquismo, mas é anti-hitleriana. Em suma: a Igreja é uma fascista moderada.

As coisas que a gente aprende com quem é sábio!

Joaquim Maria Cymbron

domingo, 18 de novembro de 2007

LIBERDADE REVOLUCIONÁRIA E A SITUAÇÃO DE PORTUGAL


O ano de 1789 viu o mundo estremecer sob uma das mais pavorosas convulsões que alguma vez o sacudiram: a Revolução Francesa, acometida por uma fúria que só a Revolução Russa, sua legítima herdeira, superou, e transtornada pelo delírio da soberba, que é o princípio de todo o pecado (1), espalhava o terror e fazia-o ao tríplice pregão da igualdade, da liberdade e da fraternidade.

Criados por Deus à Sua imagem e semelhança, a fim de um dia gozar da Sua visão beatífica, somos todos iguais; resgatados da servidão do pecado por Jesus Cristo, somos todos livres; adoptados como filhos pelo Pai, que está nos Céus, somos todos irmãos. Nesta igualdade, nesta liberdade, e nesta fraternidade eu creio profundamente. Não me seduzem outras, porque me é impossível amar o que não alcanço pelo entendimento ou pela fé.

Em Espanha, a Regência de Estella, órgão que tão relevantes serviços tem prestado ao Carlismo, arvorou nas suas bandeiras o seguinte mote: Nada sin Dios. Colhendo tão memorável ensinamento, eu direi: Sem Deus, nada de igualdade, nada de liberdade e nada de fraternidade, porque sem Deus é o nada, resultado feroz a que conduz a negação da verdade luminosa ou, com não menor eficácia, a conjura do silêncio que contra ela se vem tramando.

Chegado a este ponto, dedicarei especial atenção à liberdade, não porque seja uma palavra mais profanada que as outras, mas sim porque das três é certamente aquela à custa da qual saímos burlados com maior frequência.

No entanto, o que tem capacidade para ser livre pode, enquanto tal, renunciar a essa liberdade porque ainda que nem tudo lhe convenha, tudo lhe é lícito, segundo declara o texto sagrado. Apenas num caso, nada mais se tornaria lícito para o homem senão aquilo que lhe conviesse: seria assim, se o homem tivesse a certeza evidente de uma ordem sobrenatural. Em tal caso, a observância dessa ordem mostrar-se-ia psicologicamente necessária e o homem não poderia violá-la, porque ela impor-se-ia, de forma inelutável, ao seu entendimento e a quanto dele flui.

Mas tal certeza nunca se deu, porque não existe. Daí que se manifeste, em toda a sua plenitude, a possibilidade de eleger o verdadeiro bem. Esta faculdade é intocável, porque deriva da natureza humana tal como criada por Deus.

O poder de escolher o que mais convém, concebido nestes precisos termos, mostra-se no exercício da vontade e só é autêntico e, como tal, digno do maior apreço e veneração, quando é instrumento para que o homem caminhe ao encontro da graça eficaz. Esta traduz-se na resposta da vontade a um convite amoroso, que apenas a infinita misericórdia de Deus para connosco pode explicar. Esse chamamento é a graça de santificação que, uere et mere sufficiens, conforta a inteligência na busca do que é verdadeiro --- gratia illuminationis --- e estimula a vontade na adesão ao bem aí contido --- gratia inspirationis.

Sem esta faculdade, os actos humanos, quando não fossem a execução automática de um clima de força vivido ou de um estado de necessidade sentido, seriam meros reflexos da capacidade intelectual de cada homem e, deste modo, não poderíamos ir além do que nos marcasse a inteligência: justo, sempre e na medida em que ela visse bem; pecador, por acção ou omissão, quando a inteligência não avaliasse correctamente e no grau em que ela falhasse. À semelhança dos irracionais, que seguem docilmente o seu instinto, o homem, escravizado pelo determinismo da sua inteligência, só mereceria, como aqueles, o destino de desaparecer no pó de que se havia formado: impedido de preencher com amor as obras que iria realizando, estas não teriam a mais pequena ponta de mérito.

Contudo, num acto de pura magnanimidade, Deus chamou os seres humanos a um fim sobrenatural (5). Se não tivesse ocorrido a queda dos nossos protoparentes, a forma como o homem in statu uiae usasse da sua vontade iria definir a sua coroa de glória in statu termini. Depois do pecado original, sobreveio uma tara que a todos nos atormenta com o aguilhão da concupiscência: a carne e o espírito defrontam-se numa batalha colossal. Não obstante, diz S. Paulo: «Ubi autem abundauit delictum, superabundauit gratia:)» (6). Por conseguinte, a escolha do bem teleologicamente apetecível volta a ser possível, agora já mediante o favor excepcional «per redemptionem, quae est in Christo Iesu,» (7).

É pois líquido que a função da vontade, a sua principal finalidade, consiste em aderir àquilo que o pensamento encontra mais conveniente dentro do que é lícito.

Há, no entanto, situações em que certos factores, desde fora ou por dentro, influem sobre a razão ou sobre a vontade, quando não actuam sobre uma e outra, opondo-se à sua perfeita autenticidade.

Que atitude tomar, então? --- O mérito individual requer que essa possibilidade se verifique; o bem comum, em circunstâncias muito definidas, não só dispensa tal possibilidade como inclusivamente a repele. A política não é apenas o terreno de uma convivência, onde o homem se move na perseguição do prémio espiritual que lhe caberá, se viver consoante os desígnios de Deus; ela é isto, sim, mas é também a arte de evitar que muitos de quantos são chamados sejam ocasião do escândalo que iria perder os próprios eleitos. A causa destes tem de preocupar-nos tanto quanto é certo que os tempos escatológicos, esses medonhos dias, que hão-de preceder a parusia, serão encurtados, porque, se assim não fosse, criatura alguma se salvaria (8).

Este é o sentido sobrenatural da política ou, preferindo-se, como vai a política alhear-se naquilo onde põe Deus tanto cuidado? Ao homem, convém-lhe ser providente por um modo que é o seu, de forma análoga àquela como Deus o é na Sua infinita majestade. O que confere ao termo secundário a necessária legitimidade é a sua correcta subordinação ao termo principal. Por outro lado, se a providência dos homens, ainda que com todas as limitações da sua natureza, realiza o exemplar que a divina providência traçou, teremos a ambicionada bondade com o que se observa a causa final que todas as coisas devem apresentar.

Não prosseguirei sem interpor algumas palavras que, espero, ajudarão a esclarecer o assunto que me propus tratar:

Há pouco mais de dois mil anos, um político sem chama, sem ideal e sem fé, homem tíbio e relativista, a ponto de perguntar o que era a verdade, como usam os liberais, e cobarde, moralmente cobarde, como costumam ser os democratas que se refugiam atrás do anonimato das massas, interrogou a multidão que o rodeava sobre o destino a dar a dois homens que tinha à sua guarda: um, acusado de salteador e homicida; o outro, em quem ele mesmo não via qualquer culpa. E a turba, em gritaria alucinada, instava com ele para que soltasse o criminoso e exigia, para o justo, a morte afrontosa de cruz. As personagens deste lance histórico não são desconhecidas de ninguém: o político era Pilatos; Barrabás, o criminoso; e o justo é Cristo Redentor.

Como vimos, tudo decorreu num cenário genuinamente democrático. Vamos, por isso, lançar culpas à Democracia pelo drama vivido no Gólgota? --- Valeria o mesmo que pronunciar os Judeus ou Roma como autores da paixão e morte do nosso Salvador, só porque judeu era o povo colocado à volta do pretório e romano o magistrado que, naquela conjuntura, lavou as mãos.

Cristo teria de passar a Sua agonia, porque redimir o género humano, com o Seu sangue, era missão que lhe cabia, e para uma satisfação adequada não podia ser de mais ninguém, dada a infinitude da falta cometida pelos nossos primeiros pais (9). Essa missão consumou-se numa cruz, devido à frouxidão de um homem céptico e à demência de uma multidão encolerizada. Teria podido resultar do comando de um autocrata, como foi o caso do martírio dos santos inocentes. 

Afinal, quem crucificou o Filho do Homem? --- Sabe-se perfeitamente que é por conta dos nossos pecados que Jesus padeceu, e continua a imolar-se no sacrifício incruento da santa missa. Contudo, fora da teologia e num plano meramente especulativo, nada nos proíbe de entender que o pecado consiste na procura do bem onde está o nosso apetite, em vez de aspirarmos ao verdadeiro bem. O nosso épico lamentava este comportamento numa atinada e finíssima sentença: «Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,/Senão o que somente mal deseja.» (10). E esta, desgraçadamente, é a filosofia de valores que anima a vida da Democracia.

Não deve, pois, repugnar a conclusão de que a praxis democrática, não com uma fatalidade inexorável, mas por uma tendência muito vincada, que essa praxis, repito, seja sinónimo de calvário da legitimidade.

Assim como houve maior obediência, à vontade do pai, por parte do filho que recusara trabalhar na vinha, acabando por fazê-lo, do que naquele que pareceu acatar a ordem, mas não cumpriu, de igual modo satisfaz incomparavelmente mais a minha vontade o governo que, sem ouvir a minha voz, realiza o que eu quero, ao contrário daquele que, auscultando o meu voto, termina por se orientar como muito bem entende. E, fiéis à lição de S. Paulo, importa não perder de vista que a minha vontade para ser digna de respeito, tem de constituir caminho de salvação, pelo que, em última análise, está muito mais em consonância com o meu interesse o poder que actue como me convém ainda que vá sacrificar o meu capricho de momento (11).

Outro não era o estilo de governo, no Portugal de antanho, quando o Rei escutava as propostas dos procuradores, em Cortes, para reunir elementos que lhe permitissem decidir segundo as exigências do bem comum. As falácias do liberalismo, de mistura com o desgraçado mito da soberania popular, quebraram a harmoniosa unidade deste pacto: de um lado, «a voz dos povos em conselho», no inspirado verso de Sardinha (12), acabou sufocada; do outro, o Rei, também calado à força, porque «a palavra dos reis era sagrada, quando os reis governavam; agora apenas reinam.», escrevia Camilo (13).

Direitos do homem e do cidadão, liberdades e garantias individuais, protocolos disto, convenções daquilo, leis que se multiplicam na razão directa da sua ineficácia, enfim, uma babel de palavras com as quais se salpicaram os vocabulários das mais diversas línguas e se baralharam os manuais da moderna ciência política, eis aqui um montão confuso que constitui o deleite de um falso constitucionalismo, no desconhecimento doloso ou, simplesmente, primário, da realidade histórica que, no caso português, a pujança das suas Leis Fundamentais exibia.

Já «(...) nas materias tractadas nas nossas antigas Côrtes se encerrão muitos, e importantes principios de Direito Publico, e das garantias individuaes tão reclamadas pelos Publicistas Modernos.», relata-nos o visconde de Santarém (14).

O egrégio ministro do Senhor D. Miguel I assinava este veracíssimo testemunho, antes da aclamação do último rei de Portugal. O último, sim, porque os príncipes, cujas frontes o liberalismo coroava, eram como mortos em ofícios de corpo presente. José Agostinho de Macedo, arauto dos mais valorosos que o miguelismo contou, entendia que um rei destes «será a figura de hum Rei, mas não é Rei, porque lhe falta a essencia, e essencia, pela qual o Ente he o que he; consiste na Soberania, e esta he indivisivel; e dividilla, he acaballa.» (15).

A sociedade portuguesa afastou-se das veneráveis normas por que se regia, em perfeita subordinação ao direito natural. E a maior tragédia está em que o mal ultrapassa fronteiras. Hoje, o mundo respira a ilusão de que o comunismo --- a mais lógica conclusão das premissas liberais --- baixou à sepultura. E o mundo, cego, nem se dá conta de que esse comunismo, alvo do ódio de vorazes financeiros e tão temido pela classe média, sempre ávida de pacatez e sossego, esse comunismo, dizia eu, foi amortalhado nas roupagens de um figurino, cujo corte serviu de modelo embrionário àquilo que, segundo se anuncia, está morto e bem morto. Esta encenação faz-se salmodiando uns responsos que não são outra coisa senão a apoteose dos sofismas que deram corpo ao suposto defunto. É o cortar da ramada sem arrancar a árvore pela raiz, é uma operação de poda que deve conduzir a um único resultado: produção mais vigorizada.

A caminhada histórica é sempre uma longa viagem. O homem, na mesquinhez da sua visão, tende, a maior parte das vezes, a tornar absoluto o presente, centra-se nele, não olha aos avanços e retrocessos do passado. Deixa, assim, no nimbo do irreal, os sobressaltos desses tempos pretéritos e, por conseguinte, não pode intuir a marcha do futuro com aquela certeza apenas limitada pelo indeterminismo, que acompanha tudo quanto é contingente, e, mormente, pela vontade de Deus, a Quem pertence a suprema decisão de qualquer acontecimento.

Não gastarei agora tempo, mostrando a loucura que é esquecer Trotsky mais o seu pessimismo relativamente à estratégia estalinista para a consolidação do poder soviético. Ou, antes disto, como é insensato ignorar qual a natureza das sociedades, onde Marx previra o triunfo da revolução proletária. Nem sequer vou recordar a notável maleabilidade dos comunistas para reconhecerem os seus erros, ligando-se essa maleabilidade com a percepção nítida do momento exacto em que, por boa táctica, têm de recuar uns passos. Também aqui não falarei de que, ao colectivismo, se pode chegar de diversos modos, sendo um deles a via reformista, com tantos seguidores nos sistemas económicos do Ocidente.

Todas estas coisas, que mesmo separadamente assumem grande relevo e, no conjunto, são imprescindíveis para a compreensão do fenómeno que surgiu após a queda do muro de Berlim, tudo isto perde grande parte do seu interesse imediato em confronto com esta preocupante realidade: neoliberalismo, comunismo, socialismo democrático, diga-se deles o que se quiser, todos formam sistemas que trazem a marca de um naturalismo antidivino e de um relativismo incapaz de traçar, com precisão e segurança, a linha divisória entre o bem e o mal. Temos, diante de nós, a prole espúria dos amores incestuosos do racionalismo cartesiano com o apriorismo de um Kant. Toda esta parentela se encontra infiltrada do vírus da filosofia de Hegel, que Feuerbach, Marx e Engels afeiçoaram ao materialismo dialéctico e espera somente que a revolução universal lhe venha acrescentar um novo gene.

Entretanto, a ideia fixa de uma humanidade, quase inteira, acorrentada numa perdida ilha da Utopia ou num imenso arquipélago de Gulag, é uma velha contumácia e que há-de repetir-se em obediência ao objectivo supremo do aparecimento de massas amorfas e abúlicas, gemendo impotentes sob o peso dos descomunais privilégios de uma sinarquia possessa de ferocidade, de ganância e de luxúria. Este quadro de vil abjecção, em que os amos não serão menos dignos de dó que os servos, este quadro de desatino satânico e de angústia mortal, que despontará no horizonte, se antes não nos acudir Deus, este quadro terrífico de povos horrivelmente desgraçados porque é gente que perdeu a consciência do seu fim sobrenatural, este quadro, por fim, será a imagem dantesca do uexilla regis prodeunt inferni (16).

Se Portugal quer guardar-se deste perigo e, mais do que isso, pretende voltar a merecer de Deus a graça de arredar para longe a ameaça da tirania revolucionária, tem de mergulhar fundo no húmus da sua tradição e, aí, recobrar ânimo para essa cruzada. Fora disto, será a nossa condenação temporal!


Joaquim Maria Cymbron
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  1. Ecli. 10, 15.
  2. Jo. 8, 31 e ss.
  3. Rom. 6, 16.
  4. 1 Cor. 6, 12.
  5. Rom. 8, 28-30.
  6. Rom. 5, 20.
  7. Rom. 3, 24.
  8. Mt. 24, 22.
  9. S. Tomás de Aquino, O. P. --- Summa Theologica , III, q . 1, a . 2.
  10. Lus., IX, 29, vv.1-2.
  11. Ver n. 4.
  12. Soneto A El-Rey .
  13. Memórias do Cárcere, 1.º vol., IX.
  14. Memorias para a Historia, e Theoria das Cortes Geraes, Lisboa, Impressão Regia, 1827, parte 1.ª, p. V.
  15. O Desengano, n.º 5, Lisboa, Impressão Regia, 1830, p. 3.
  16. Divina Commedia , I, 34, 1.
Obs.: Associazione Legittimista Trono e Altare publicou uma versão em italiano. É uma tradução merecedora de toda a confiança porque se mostra fiel à letra e ao espírito do autor. Quem a levou a cabo revela um profundo conhecimento da língua portuguesa; e, conforme era de esperar, evidencia também uma absoluta identidade com a doutrina ali exposta, o que só vem provar a universalidade da Tradição.

Questa volta, infatti, il traduttore non è stato un traditore!
JMC