sábado, 10 de março de 2007

MONARQUIA PURA


    Aos paladinos da legitimidade, imolada na nossa Pátria há longos anos --- à memória de todos eles, testemunhas de um Portugal indesejável, arautos de um Portugal que se quer redivivo; e àqueles que, ainda hoje, se mantêm no bom combate: ofereço, dedico e consagro as palavras que seguem!
    Noutras circunstâncias, eu reservaria este intróito para tributar homenagem devida a quem, pelo berço, transporta o pesadíssimo fardo de suceder na herança daquele excelso monarca que, sobre um povo que o amava e venerava, foi nesta terra o último a reinar segundo o velho estilo e usanças que, por cá, então se praticavam.
    Como se vê, não o faço. Logo se entenderá porquê.


O discurso, que apresento, condensa-se neste sumário: o conúbio do princeps com o seu povo, se teleologicamente está de acordo com a Tradição, será sempre um conúbio legítimo porque bonum ex integra causa; e se não estiver, mesmo para os que subscrevam a tese pactícia do poder soberano, pode muito bem ser um conúbio fora de toda a coacção que, ainda assim, nunca será legítimo porque enferma de nulidade jurídica --- é como o matrimónio onde não basta o consenso dos cônjuges se falta o propósito de cumprir algum dos fins essenciais deste sacramento.

Dito isto, entro na matéria com maior desenvolvimento:

Quando trato de definir-me politicamente, sempre me declarei miguelista. Para mim, miguelismo é muitíssimo mais do que devoção exclusiva à figura épica de um rei, cujo nome de baptismo era Miguel. O partido apostólico da época, mais que ao legítimo soberano, amava a Tradição. São inequívocos os documentos de prova neste sentido.

Em Portugal, miguelismo e tradição política são indissociáveis. Foi durante o reinado do Senhor Dom Miguel que, pela primeira vez, na nossa pátria, Tradição e Revolução se chocaram violentamente: o monarca pôs-se à frente das hostes tradicionalistas e estas tomaram dele o seu nome. O próprio rei não alimentava ilusões a este respeito, reconhecendo numa das suas entranháveis proclamações que «a cauza he tanto minha como vossa he a cauza de Deos, portanto he justa.» (1).

A el-rei Dom Miguel, não devemos apontá-lo como cabeça da Tradição só pelo facto de serem juridicamente válidos os seus títulos ou porque concentrava, na sua pessoa, a adesão de quase todo o reino. Acima do que ditam as leis positivas, bem como da vontade dos povos, ergue-se, despedindo clarões de luz, o diadema da Verdade, e apenas a verdade empresta legitimidade ao que a confessa por palavras e por actos. Esta foi a legitimidade do Senhor Dom Miguel! Da sua fidelidade ao ideal, a par da glória do seu martírio na defesa de princípios que o transcendiam, restou exemplo nobilíssimo que seria reconfortante ver continuado por aqueles que trazem nos nomes o mesmo augusto apelido.

Não vim aqui agitar as amargas recordações de uma guerra civil. Nem tenho o propósito de repetir o passado, coisa aliás de realização impossível. Só pretendo, dentro das minhas exíguas forças, lutar pela Tradição, declarando a minha crença política na monarquia orgânica.

Falei na Tradição. Mas --- perguntarão alguns --- será que a Tradição está viva em Portugal? Esta interrogação revela uma lamentável confusão entre o essencial e aquilo que é simplesmente acessório. A Tradição não morreu nem morre. Podem os povos ficar mais surdos à voz que ela emite, ou tornar-se mais cegos à sua luz, que a Tradição sobrevive porque a Tradição é uma fonte inesgotável, a Tradição é plenitude do existente e do meramente possível, a Tradição é a seiva riquíssima da árvore da vida!

Sucede que em Portugal falta quem, com legitimidade de origem, levante a bandeira da Tradição. Em consequência desta defecção, não passamos de uns lampejos de Tradição, sem conseguir repô-la numa via de normalidade. Ora isto não convém e portanto --- o que aqui se joga é uma questão de salus populi --- só nos resta uma saída: garantir o regresso à Tradição, um retorno que não seja episódico ou a retalho, mas sim um retorno sólido e integral.

Como se chega, pois, à Tradição?

Deus assinalou um fim ao homem. A religião contém o essencial a esse fim e, por isso, bastar-nos-ia. Contudo, existe um valoroso auxílio a esta economia de salvação --- é a política (2). Com a política podem criar-se condições para que a religião actue melhor: se uma e outra derem as mãos, teremos a consonância desejável, porque se a religião é a ponte que vai desde a criatura racional até ao Criador, a política é um fenómeno temporal que devia sempre assumir uma projecção sobrenatural.

E que política havemos de querer?

O homem insere-se numa sociedade e qualquer sociedade pede uma ordem. A ordem, per se, é intrinsecamente boa, pode mesmo dizer-se que ela é santa. Tão santa e tão boa é a ordem que viverá num inferno aquele que sofra a anarquia dos apetites sem freio. A ordem é necessária à marcha das coisas num grau tal que a própria revolução a admira sob um dos seus aspectos mais reveladores --- a disciplina. Em suma: a ordem, na sua pureza, provém de Deus, é desejada por Ele (3)!

Ora bem, só existem duas categorias de política: a política que chama verdade àquilo que cada um vê, com o que parece querer a perdição de todos --- é a política da desordem; e há a política que chama todos à verdade porque deseja que se salvem --- é a política da ordem. Esta política, que é a política que interessa, terá de funcionar como uma imensa ascese de reflexos comunitários, sempre em pró da dimensão espiritual do homem. Nestes termos, pode dizer-se que a política é um meio de redenção e que, moralmente, há-de subordinar-se à doutrina religiosa. A violação desta ordem toma o nome de Revolução e é um atentado ao plano de Deus. Antes de constituir um delito político, a Revolução é pecado e se há quem deseje uma política contrarrevolucionária, como julgo ser aspiração de muitos, impõe-se que busquemos essa política dentro de uns cânones de inspiração católica.

E qual é a melhor política de base católica? --- Não há senão a política do legitimismo para responder a esta pergunta. Já há muito que sustento esta posição. A ela volto hoje, embora expondo, com outras palavras, a ideia que sempre defendi:

Se todos os que temos a graça de permanecer fiéis ao baptismo recebido, professamos que a depositária da Verdade é a Igreja de Roma; se, em seguida, observarmos que os mesmos que a combatem sempre tiveram o legitimismo como alvo privilegiado dos seus ataques a toda a ordem temporal, temos de concluir que a política legitimista é aquela mais conforme à verdade. Logo, o legitimismo é a política mais fiel à revelação divina, realizada em Jesus Cristo e nos Seus apóstolos!

Este é um juízo absolutista? --- Foi essa a intenção com que o expressei. Se não formulamos os juízos de uma forma absolutista, não enunciamos nada. Quem há que não seja absolutista? O que diz "eu detesto toda a certeza porque não acho maior verdade do que a de cada momento e para cada homem", não é menos categórico do que aquele que afirma a inteligibilidade do absoluto.

Hoje, parece que se vive sob o medo e a náusea do absolutismo, sem que dele se tenha um conceito exacto. A aversão ao absolutismo, na ciência política, seria um contrassenso se o absolutismo fosse possível no mundo criado. Com efeito, nunca haverá abuso num poder absoluto porque isso seria contraditório: onde se der abuso de poder, aí haverá desvirtuação do referido poder. Consequentemente, esse poder já não será absoluto porque o absoluto não apresenta a mínima privação de bem, o absoluto, como a própria palavra o indica, é perfeito em tudo. Aquilo a que, na ordem temporal, se vem chamando absolutismo, não é senão a tentativa de alargar indefinidamente o que, de si, é limitado, porque sendo o poder político algo contingente, resulta ex rerum natura que nunca poderá ser absoluto.

Na grande harmonia do universo, eu só conheço um poder absoluto --- é o poder de Deus que é o mais santo poder que há. Daí a barbaridade cometida pelo homem quando, na sua desmedida presunção, procura enfeitar-se com o que não lhe pertence. Disse um filósofo que o pecado consistia no facto de o homem querer infinitamente o finito, em vez de querer o infinito. Se da teologia passarmos à política, deparamos com outra falha ética quando o homem constrói um sistema onde, sem o mais pequeno vislumbre do verdadeiro absoluto, se quer usar absolutamente de algo que é corruptível. Eis aqui o pecado capital da política, o maior pecado que há em política e fora dela, porque é pecado de soberba!

Este absolutismo sacrílego, das vezes que cingiu uma coroa na fronte, chamou-se regalismo monárquico; quando tem nas multidões a sua origem e fundamento, será o império democrático, saia do sufrágio de volúveis maiorias ou resulte da discricionariedade dos partidos únicos. Nos tempos que correm, quando o déspota iluminado desceu do trono e vem exibir-se nos degraus do Capitólio ou se passeia anónimo pela via pública, temos de convir que, das duas formas de absolutismo, que acabei de mencionar, a segunda é aquela que se apresenta como açoite e tormento dos povos.

Este é o drama da Democracia, é a tragédia contemporânea. Opondo-se aos monstruosos totalitarismos dos nossos dias, a demagogia das urnas alastra-se do mesmo modo que, ao absolutismo regalista do século das luzes, sucedeu o individualismo liberal de oitocentos. Na raiz de tudo isto, encontra-se o endeusamento do homem, uma neopaganização, fruto da aplicação ao campo político de desvios estruturalmente teológicos --- o agnosticismo, o panteísmo ou o materialismo, perversões das quais não parece que nos libertemos depressa porque, culposamente, preferimos a escuridão à claridade e, na nossa contumácia, antepomos o desconcerto das heresias ao rigor da ortodoxia.

Eu, que não tenho em política outros dogmas que não sejam os que a metafísica me dá, experimento um vivíssimo repúdio pela Democracia. Por este antidemocratismo, há quem me critique com o argumento de ter sido democrática a antiga monarquia portuguesa. Aos que me censuram, replico que confundem entre Democracia e o amor dos nossos reis pelo interesse geral da nação, a res publica, como então se dizia com inteira propriedade. No entanto, a severidade com que julgo a Democracia (4), nunca me impediu de reconhecer a conveniência que há, amiudadas vezes, de escutar a colectividade e observar o que esta quer. Aquilo que eu combato são os zelos democráticos de quem pretende que nenhum acto é justo se antes não obtiver o consentimento dos seus destinatários e que o mesmo se passa com a obra do legislador. Para estes, a única via para legitimar o direito está na aceitação prévia desse mesmo direito por parte daqueles que lhe vão ficar sujeitos (5).

Este obnóxio princípio, levado às suas últimas consequências, significaria, por exemplo, que a eutanásia deixaria de ser uma atrocidade se aquele que morre permitisse que o matem. Ou, então, que se tornaria moral qualquer espécie de luxúria em que tombasse a sociedade, quando todos sancionássemos essa relaxação de costumes. Por este mesmo princípio, se quiséssemos ser formalmente lógicos, teríamos de renunciar a gerar outros seres; cometeríamos o desacato de pedir contas aos nossos pais porque nos transmitiram a vida; e, no final deste desvario, chegaríamos à horrível blasfémia de condenar Deus pela Sua obra da criação!

Os homens, quando mandam, se não mandam para maior glória de Deus e de modo a realizar o exemplar divino (6), era melhor que não tivessem nascido. É nisto que se define o nó da legitimidade e não no arbítrio dos eleitorados, porque a nossa vontade, se não segue a lei eterna, será uma vontade prepotente, mas nunca levará no seu seio o germe da verdade, que é cimento de toda a soberania.

Voltando ao direito público português, na época que vai desde a fundação da nacionalidade até Évora-Monte, nunca desconheci que, entre nós, os estratos da nação requeriam ao rei, com determinação, o cumprimento dos foros e privilégios alcançados; sempre admiti, como realidade histórica, que o rei, ora de coração aberto, ora renitente, mas sentindo que só não se pode fugir ao conflito onde não cabe transigir, os atendia muitas vezes. Simplesmente, isto não privava o rei do poder supremo, que era sua prerrogativa. É precisamente por aqui que tenho sido atacado, dizendo os meus opositores que sujeitando eu as cortes ao monarca, lhes retiro praticamente todo o poder, o qual era visível, de um modo particular, na aclamação dos reis. Este é um ponto extremamente delicado, pedindo esclarecimento cabal.

Vou esforçar-me por o prestar:

A dinastia é um ente místico, aparecendo em forma de linha sucessória, a qual, através dos tempos, segue dentro de uma mesma família. Esta linha rompe-se de cada vez que um membro da dinastia morre, para reatar-se quando outro o substitui. Eis aqui a situação por conta da qual alguns, apoiados no poder de que então se encontravam revestidas as cortes, tiram umas conclusões que não são suficientemente precisas. Vejamos porquê:

A morte de um rei implicava o desaparecimento do mais alto titular do poder. Quando o novo monarca se apresentava perante as cortes, estas aclamavam-no. Era, no campo profano, a repetição aproximada do prodígio do Monte Tabor: aquele que, por princípio, havia de suceder no trono dos seus maiores, transfigurava-se quando jurava respeitar as leis fundamentais da monarquia; maravilhadas, as cortes como que ouviam uma voz dizendo --- este é o rei! Contudo, não era rei por ser aclamado; pelo contrário, era aclamado porque o viam como rei. Ou seja que esta aclamação, em cortes, não tinha efeito constitutivo da sua dignidade real, mas sim de reconhecimento dessa mesma dignidade (7).

Não adianta perguntarmos à história quais os reis que, em Portugal, governaram sem prévia aclamação em cortes. Seria mais fácil e cómodo encontrar os nomes daqueles que o foram porque, como é sabido, notícia autêntica de intervenção das cortes neste acto, nem sempre há. De qualquer modo, não importa descobri-lo agora. O meu empenho, prescindindo de uma valorização jurídica sobre a respectiva legitimidade de origem, dirige-se, todo ele, no sentido de que me apontem umas cortes que, convocadas para o cerimonial da aclamação, tivessem deixado de aclamar fosse o herdeiro indiscutido, fosse o pretendente cujo poder de facto era maior.

Vou referir cinco episódios da história portuguesa, apenas cinco, todos eles constituindo prova de que antes de mandar, mesmo com direito, é imprescindível o poder de facto (8):

O filho do conde D. Henrique de Borgonha recebeu a coroa de umas cortes lendárias ou terá sido, nos campos de S. Mamede, que ele arrebatou, a sua mãe, um poder que depois aumentou, lutando contra o vizinho leonês e contra o mouro, até que os seus optimates o alçaram como rei e, de Roma, Alexandre III lhe reconheceu essa qualidade? De que serviria ao mestre de Avis toda a eloquência do grão-doutor nas cortes de Coimbra, se não fora a espada de Nuno Álvares? As cortes de Tomar chegariam a reunir, sem que as armas do duque de Alba tivessem entrado em Portugal? Mais tarde, a sereníssima casa de Bragança acabou dinastia reinante através de umas cortes celebradas em Lisboa ou graças a um exército vitorioso na guerra? Por último, de que serviu ao rei legítimo a categórica unanimidade de umas cortes e o amor quase universal de um povo, se o seu irmão levou a melhor na contenda bélica que travaram?

Deixemo-nos de falácias tão do agrado da burguesia liberal, de cujo grémio saiu o maior número daqueles que derrubaram um edifício, o qual, mais tarde e ao sabor de uma romântica nostalgia, tentaram refazer, apresentando-o como peça histórica de contornos que ele nunca teve. O dó, que alguns confessavam ao ver por terra tão vetustas instituições, é de admitir que o sentissem. Porém, isso não autorizava a que deturpassem a realidade das coisas. As lamentações, por conta de um arquétipo de perfeição muito duvidosa e de traços sem correspondência no quotidiano da política concreta, não absolvem da falta cometida.

O quadro vivido, no Portugal antigo, era bem diferente daquele que, com algum lirismo poético, os vates liberais quiseram desenhar. A verdade é que as cortes portuguesas estavam subordinadas ao rei: convocadas e dissolvidas pelo monarca, segundo o estilo que ele mesmo decretava, as cortes sugeriam medidas, pediam franquias, rugiam a sua indignação contra toda a espécie de desmandos, mas não ordenavam nem mandavam nada (9). As cortes eram a voz da consciência nacional e não ignoravam a grande força moral que daí lhes advinha. Isso bastava-lhes.

Se aqueles que sustentam opinião contrária não se deixam abalar com os ensinamentos do passado, se não estiverem de acordo com os meus argumentos, desistam de construções fantásticas e declarem com toda a simplicidade: "o rei só terá o poder que as cortes lhe entregarem!". Não serão monárquicos, mas é uma opção política. Agora, o poder repartido por igual, entre rei e cortes, é coisa de tamanha desproporção que já nem sequer se coloca o problema de não ser monárquica essa ideia: antes disso, ela é inexequível.

Efectivamente, a tese de um poder conjunto de rei e cortes é doutrina do liberalismo. E que é o liberalismo? É uma mistificação, constitui uma das trapaças mais daninhas geradas no seio da política. Observemos com atenção:

O legislador é soberano; o governante é soberano; o juiz é soberano. Mas o juiz, o governante e o legislador não são os mesmos: nesta súmula está a quinta-essência do liberalismo político (10). Diante desta construção, ao mesmo tempo unitária e trinitária, sou obrigado a dizer que o dogma da SS. ma Trindade nos põe diante de um mistério que supera o entendimento humano, mas não lhe é contrário; em contrapartida, a teoria de Montesquieu não resiste ao mais elementar raciocínio. Na realidade, ou as disposições do legislador, do governante e do juiz não são antagónicas e, nesse caso, não há motivo para que se travem umas às outras; ou apresentam-se conflituantes e, aí, também não terá lugar nenhuma limitação de poder, porque uma delas acabará por se sobrepor às outras já que a vida não se compadece com o imobilismo (11).

O liberalismo, se existisse como foi sonhado pelos seus defensores, seria uma pluralidade de estados dentro de uma ficção de estado. Se um dia se cumprisse a doutrina liberal, com a precisão desenhada na sua pureza ideal, teríamos fatalmente o germe de uma situação mórbida, a qual, ao tocar no extremo, atiraria com a sociedade para uma agudíssima crise, onde, à semelhança do que se passa com o direito internacional, ao cair-se na indefinição, não existe outro remédio que não seja a guerra.

Contudo, por simples curiosidade académica, vou admitir o que, numa lógica sã e de boa fé, nunca poderia conceder. Suponhamos, por breves instantes, que é falso o que eu alego contra a divisão do poder; deixemos, em seguida, que esses bocados de soberania entrem na cidade política; imaginemos, por último, este caso:

A soberania apresenta-se tripartida. Uma das suas parcelas toma uma decisão; há outra que se cala; e a terceira opõe-se à primeira. Num quadro como este, perfeitamente possível, que se passaria? --- A abstracção liberal virá responder que a terceira força serve de freio contra a iniquidade, o que nega a igualdade entre os poderes porque só é possível discrepar onde haja diferenças; ou, então, não poderá excluir que o tempo obrigue as duas forças opostas a um acordo para deixarem o ponto morto em que jazem, o que lhes retira liberdade para sustentarem distintas opiniões e, não sendo livres para isso, também não serão, em todos os momentos, independentes entre si, contrariamente ao que anuncia o liberalismo. E nem se diga que a vida está cheia de compromissos, porque o compromisso nasce da necessidade de pôr cobro a um conflito, o qual não ocorreria se não fossem as diferenças e estas, por definição, não existem nos órgãos de soberania do sistema liberal.

A barafunda seria ainda maior se, em vez de uma iniciativa má, à qual se contrapõe outra, que já é boa, imaginássemos o contrário. Infelizmente, nada disto aflige o optimismo liberal, o qual parece ter um só credo: esfrangalhe-se o poder e teremos o paraíso na terra (12)!

Há muitos anos, encontrava-me eu em Sevilha, quando chamaram a minha atenção para um bloco de pedra, que se pode ver mesmo à beira do rio que atravessa aquela lindíssima cidade. E, num tom pesaroso, informaram-me que era o monumento à tolerância. Pensei imediatamente que não estava mal o nome, enquanto prova à capacidade de tolerância de cada um de nós, porque, na verdade, é necessária muita tolerância para que consideremos aquilo um monumento. No caso de que agora cuido, nem toda a tolerância do mundo chegaria para evitar que eu denuncie o liberalismo como sendo um colossal monumento ao delírio.

Quer alguém conhecer o grau de efectiva divisão segundo os cânones liberais? Achará uma resposta no quadro dos crimes de guerra, esses delitos julgados perante uns tribunais, onde quase nunca há outros acusados além dos vencidos, nem mais juízes que não sejam os vencedores.

O rei que o é, o rei que é verdadeiramente soberano e não o rei decorativo do liberalismo, aquele rei que devia ser o nosso, delegará a sua autoridade porque é incomportável para qualquer homem deter nas suas mãos o exercício de todo o governo. Quando delegar e enquanto delegar, o poder do rei não aumenta nem diminui de intensidade: cresce em extensão e, estendendo-se, não se separa do seu titular por uma divisão irrevogável e irreversível, porque assim como dele saiu, a ele tornará logo que o mande (13).

Falando da monarquia orleanista, La Fayette dizia que ela era a melhor das repúblicas. Durante muito tempo, eu reagia apaixonadamente, relegando a monarquia liberal para lugar pior do que o ocupado pela pior das repúblicas. Os anos e, com eles, o estudo destas matérias mostraram-me o que havia de correcto naquela frase: a monarquia liberal, porque esconde uma política que é, talvez, a que cumpre com mais atilada discrição os planos da revolução mundial, não podia, para uma mentalidade como a de La Fayette, constituir senão a melhor das repúblicas.

A pedra angular desta monarquia é a seguinte: um rei que reina mas que não governa, uma vez que o poder decisório pertence a órgãos de eleição popular, não é detido por ele. Em defesa de tal monarquia, é costume argumentar com a vantagem que oferece a educação do herdeiro da coroa, a partir da sua meninice; eu, o que vejo é uma preparação para os cargos na razão inversa da importância das tarefas. Dizem-nos, também, que um monarca destes é rei de todos os cidadãos do seu país, ao passo que o presidente de uma república só pode ser representante fiel dos anseios daqueles que nele votaram. Mas como, entre nós, os que pugnam pelo regresso de um rei de circunstância, o aguardam de volta, ao som do ruidoso pregão das urnas, que garantia há de que esse rei ou os seus sucessores, cujo direito assenta no mesmíssimo princípio que serve de fundamento à legitimidade do chefe de um estado republicano, venham a ser menos facciosos que o vencedor de umas eleições presidenciais?

O facto é que um rei deste quilate fica a dever o trono a um processo que decide igualmente a vitória numa lide presidencial --- o escrutínio do sufrágio universal. Por outro lado, se for lícito à monarquia instalar-se, atravessando os umbrais desta porta, confesso humildemente que não enxergo como se irá proibir que saia por onde entrou. Desta maneira, o mais provável é que se caia na contingência de disputas periódicas já não entre candidatos presidenciais, mas sim de presidente uersus rei, ou de rei uersus presidente. Que maravilha esta com que nos brindam esses monárquicos, a quem, por razões óbvias, não trato de caros monárquicos, mas que são, sem qualquer espécie de dúvida, uns monárquicos que saem muito caro pelos altos custos políticos do que intentam oferecer-nos!

É esta a base sobre a qual os construtores do moderno liberalismo desejam levantar o edifício monárquico em Portugal. Projecto de autêntica catástrofe, é o mínimo que se lhe pode chamar! Monarquia? --- Com certeza! Porém, nunca a monarquia dos barões e viscondes de ocasião, que sonham com reis que venham dourar os seus nomes com mais coroas heráldicas, não importando sequer que seja oco o metal, desde que reluza! Restauremos o trono, sim, mas um trono onde venha sentar-se o rei e não «um homem de manto e coroa com as mãos atadas pelos políticos (...)» (14), um trono português até à medula, um trono, enfim, capaz de nos devolver a monarquia que recebeu o crisma na jornada radiosa de Ourique.

Eu admito que um reduzido número de pessoas, de boa fé, acreditem que a monarquia liberal é uma monarquia muito louvável, existindo como pano de fundo à figura de um rei, cujo poder moderador cobre todas as lacunas e vai temperar todos os excessos: é uma concepção de monarquia que gira ao redor de um homem, o que merece repúdio, porque a verdadeira solução monárquica tem de ser orgânica.

Se um rei liberal é aquele homem de tão assinaláveis dotes como dizem os seus partidários, temos uma de duas coisas: ou ele destrói o sistema; ou é o sistema que o reduz a nada. Onde a morte política for suficiente, é esta que se aplica; quando não o seja, recorre-se à morte física. Têm os Portugueses, na sua experiência liberal, uma lição trágica referente ao modo como na prática se cumpre esta teoria. E o sangue de um pai e de um irmão assassinados não chegou para exorcizar, dos demónios do sistema, o mancebo, de dezanove anos incompletos, que escapou ao atentado: o mal tinha lançado raízes muito fundas.

Para os sequazes desta monarquia, os reis têm umas virtudes misteriosas que, na política, purificam tudo aquilo em que eles tocam. Sinto não comungar de tal superstição. Eu não creio num trono sem mácula: os homens não podem ter a pretensão sacrílega de atribuir às instituições, por eles levantadas, capacidade de produzirem efeitos saudáveis ex opere operato, como se fossem sacramentos.

Eu sou monárquico porque, constituindo a família o fundamento da sociedade, vejo, na dinastia, o princípio determinante da comunidade política mais adequado à natureza humana. Uma dinastia em que os seus membros são responsáveis porque têm o poder de governo, pelo que são livres para cumprir o seu dever de serviço à grei. Carregarão, é certo, uma cruz pesadíssima, mas encontrarão, no caminho, quem os ajude como fez Simão de Cirene ao Redentor. E no termo do calvário, que hão-de percorrer, deles se dirá: Verdadeiramente, estes homens foram reis!

A sua legitimidade principal não lhes virá de pertencerem a esta ou àquela dinastia porque se nem a monarquia é de direito divino, muitíssimo menos o será uma dinastia: o melhor título de um rei, o mais definitivo, acima ainda da sua legitimidade de origem, está no modo como ele exerce a soberania. E esse bom uso da soberania concretiza-se no já referido serviço à nação.

Os reis liberais estão privados dessa legitimidade porque, mesmo quando têm qualidades pessoais, não podem servir, uma vez que o verdadeiro serviço pressupõe responsabilidade e eles são, por definição do próprio sistema, irresponsáveis (15). Sendo irresponsáveis, as suas funções políticas são menos que funções subalternas, são funções desumanizadas: os reis liberais, no desempenho destas funções, não são pessoas, mas sim autómatos. Nas monarquias liberais, a responsabilidade pertence, por inteiro, aos ministros: são estes, portanto, quem pode cumprir ou não o dever de serviço.

O nosso José Acúrsio das Neves dizia dos adeptos e simpatizantes do imperador brasileiro que «o que eles querem é um rei nominal que esteja a duas mil léguas de distância, que não tenha força para obstar às suas maquinações (...).» (16). Com efeito, os reis liberais por mais que fisicamente se apresentem no meio do seu povo, politicamente não se encontram nem a duas nem a dez mil léguas, mas sim a uma lonjura infinita --- a sua ausência é total, porque nulo é o seu poder.

Se alguém pode o que deve, mas não o quer, esse poder é censurável porque não dá frutos; se quer o que deve sem que o possa, de nada serve o seu querer na política activa. Eu prefiro sofrer toda a vida a nostalgia de uma genuína majestade, a ter de suportar a decepção e o desastre que é o simulacro de uma monarquia. Não basta a forma; o mais decisivo há-de ser a causa eficiente e, sobretudo, o elemento teleológico: Rex eris, si recte facias; si non facias, non eris, proclamou S.to Isidoro de Sevilha, no IV concílio de Toledo (17). Este notável princípio, que informou as monarquias hispânicas da Reconquista, deve ser por nós acolhido e, na ausência do rei legítimo, é de toda a conveniência que o adaptemos às aspirações do momento que passa: Monarchia erit, si recte fiat; si non fiat, non erit. Por outras palavras: a monarquia que não obedeça à Tradição é, recordando o magistério de S. Paulo, algo parecido ao prevaricador da Lei, o qual, por mais que esteja circuncidado, acaba por ser como um incircunciso (18).

Bem gostaria eu de desenganar os devotos da monarquia liberal e que a questão do poder político ficasse esclarecida uma vez por todas --- há poder, um poder que é vivo, que é regular, que é notório e há arremedos, fantasias, paródias de poder, enfim, uma quantidade de formas, sob as quais se esconde outro poder, o autêntico. Temos de libertar-nos dos detritos que a enxurrada do liberalismo vai deixando atrás, no caminho percorrido pela sua tempestuosa dialéctica.

Tudo quanto de político os homens viveram, ao longo dos séculos, ficou sempre a dever, a um poder de facto, o seu princípio de causalidade. A questão do poder, antes de ser uma questão de direito, é uma questão de facto: eis aqui o ponto sobre o qual se há-de apoiar qualquer tese política, que deseje algo mais do que situar-se nos domínios do ideal, sem suporte estável no mundo sensível. O poder será legítimo ou ilegítimo consoante realize ou deixe de realizar o Bem Comum, mas em qualquer dos casos, sempre está com os que o exercem. Que a obediência a este poder constituído há-de ser crítica, isso deve ser sustentado por todos nós. Contudo, nos casos de opressão, o sagrado direito de bradar "se não, não!", a que conduz se não houver força para torná-lo efectivo (19)? E das vezes em que exista essa força, mesmo assim não se poderá falar de divisão do poder, porque nesses casos o poder está no braço que, armado por Deus, corta os ramos da oliveira para, na sua raiz santa, enxertar o zambujeiro.

A posição, que aqui tomei, leva estampado o selo da minha animosidade à desgraça corporizada na monarquia liberal. É uma refutação que tem lugar mais num plano teórico, porque a probabilidade de que, entre nós, se reinstale uma monarquia deste tipo, com identidade nacional própria, é uma probabilidade tão pequena que bem pode dizer-se nula. Eu, pelo menos, não a creio possível pela seguinte razão: as forças, que apoiariam esta perniciosa monarquia, são as mesmas que querem uma Europa sem fronteiras. Nessa monstruosa união, antecâmara do Estado Universal, já vem desenhado o figurino político para Portugal --- a trama urdida fixou a sua sede em Madrid. Com efeito, para os planos revolucionários, resulta muito mais simples e cómodo uma só chancelaria na Península. Seria trabalho supérfluo criar outra corte deste lado dos Pirenéus, quando a capital espanhola oferece uma que, desde a morte de Franco, provou até à saciedade ser fiel cumpridora da estratégia maçónica.

Se isto vier a dar-se, como o descrevi, uma vez que este perigo se converta em dano actual e concreto, então, ai de Portugal e de Espanha!; ai da Europa!; ai do resto do mundo!, porque nesse dia a legitimidade política conhecerá o pior de quantos cativeiros já viveu, e a ordem cristã atravessará esse deserto, vestida de pesado luto.

Submisso ao mandamento do Apóstolo, eu insisto, opportune et importune, com a melhor palavra que encontro. Aquilo que me move, a minha preocupação principal, é professar a fé política que tenho, porque, nesta matéria, sou governado por duas directrizes: lealdade para com os outros; e lealdade comigo mesmo.

Toda a minha vida procurei que ela não fosse a de um cortesão bajulador. Julgo que o tenho conseguido. Ao monarca, eu falaria com igual franqueza à que usavam os antigos portugueses, aos quais não fazia falta abundar no mito da soberania popular, para levarem os seus agravos junto dos nossos reis. Assim é, no campo temporal, a minha religião. E se for justo o culto que abracei --- como sinceramente penso que é --- espero guardar a fortaleza necessária para nele perseverar até que a minha vida, sobre a terra, toque o seu risco final.

Nada foi fácil até agora, nem o será daqui para diante: cansaço; desânimo; quedas frequentes; e, o que mais fere, o silêncio dos que supúnhamos amigos e aliados. Este é o preço que tem de pagar quem, a si mesmo, traçou uma meta que quer alcançar dentro dos limites da coerência. Mas eu sinto que é o roteiro da verdade, aquele que me propus seguir. E àqueles que me quiserem distinguir com a sua aprovação, ficarei a dever o conforto não só para as horas já sofridas, como também para mais provações que Deus entenda mandar-me!


Joaquim Maria Cymbron

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  1. AHM --- «Correspondência para o Ministro da Guerra acerca das Guerrilhas Miguelistas» 1.ª divisão, 21.ª secção, caixa 13, n.º 1.
  2. S. Tomás de Aquino, O.P.: «(...) Philosophus dicit (...) voluntas cuiuslibet legislatoris haec est, ut faciat cives bonos.» (Summa Theologica, I-II, q. 92, a. 1). É do máximo interesse a leitura de toda a questão citada, bem como de um texto infra (Ib., q. 95, a. 1). Domingo de Soto, O.P.:«Effectus legis quem potissime aspicere habet legislator est bonos facere homines sibi subditos, per quam bonitatem finem humanum adipiscantur, quae est nostra foelicitas. (De Iustitia et Iure, lib. I, q. II, a. I). Francisco Suárez, S.I.: O ilustre granadino colhe a lição do Doutor Angélico, escrevendo: «Nihilominus dicendum est, finem intentum a lege esse, facere subditos bonos; atque ita hunc esse quasi vltimum effectum legis.» (De Legibus, lib. I, cap. XIII, 3).
  3. Jo. 19, 11; Rom. 13, 1.
  4. Mt. 21, 28 e ss.; 1 Cor. 6, 12. A parábola mostra-nos que não são as promessas, mas sim as realizações que contam; o texto paulino afirma categoricamente que o Bem nem sempre está para onde a vontade se dirige.
  5. Francisco Suárez, S.I.: «Hoc docent communiter Doctores, et sequitur necessario ex dictis: nam lex obligat ad sui acceptationem; ergo qui legem statim violat, contra illam delinquit; et qui non acceptat, etiam in hoc legem transgreditur.» (Op. cit., lib. III, cap. XIX, 10).
  6. Mt. 5, 48; 1 Cor. 10, 31.
  7. Pascoal José de Mello Freire: «Jurisdictio autem omnis, majestas, et imperium, quod Rex defunctus habebat, statim ab illius morte in legitimum successorem transit, quin opus sit publica aliqua proclamatione vel jurejurando, quod quidem pro implicita quadam electione haberi nullo modo potest ( ... )» (Institutiones Juris Civilis Lusitani, lib. II, tit. III, § XXXVI). José Agostinho de Macedo: «Os Monarchas Portuguezes não fôrão jurados, e reconhecidos em Côrtes senão em caso que parecesse controverso: (...). Jurou-se em Côrtes D. João I, porque allí se reconhecêrão os seus Direitos pela exclusão da Raínha D. Brites, que tinha casado com Príncipe Estrangeiro. Foi jurado, e reconhecido ElRei D. Manoel nas Côrtes de Monte-mór, porque era a linha transversal, que accedia ao Throno. Foi jurado em Côrtes Elrei D. João IV, porque, subtrahido o Reino ao domínio estranho, se dava princípio a huma nova Dynastia, qual he a Augusta Casa de Bragança.» (Refutação, Impressão Regia, 1828, pp. 54 e s.). Henrique da Gama Barros: «A transmissão da coroa por direito hereditário era nos fins do seculo XIV a unica doutrina que se reputava juridica e que tinha voga. No preambulo da lei de 12 de setembro de 1379 diz D. Fernando que sucedeu no reino por legitima e direita geração; e os esforços dos que propugnavão nas côrtes de Coimbra de 1385 para que fosse eleito rei o mestre de Aviz, eram todos para demonstrar que não havia quem podesse invocar legitimamente o direito de sucessão para occupar o throno.» (História da Administração Pública em Portugal, I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885, p. 636). António Sardinha: «A cerimónia do juramento do rei não mais significava, pois, que o reconhecimento da sua alta magistratura, à qual, por condição de ser obedecida, cumpria respeitar e manter os foros e regalias do reino. As Cortes, para esse fim convocadas, não lhe comunicavam, consequentemente, a soberania, porque, representando tendências opostas e tantas vezes irreconciliáveis, não disporiam nunca, exercendo o poder ou coarctando-o, daquela imprescindível unidade que a soberania exige por virtude primeira. Impossibilitadas de a conferirem, cumpria-lhes, porém, declararem-na, para segurança e salvaguarda das suas próprias liberdades.» (A Teoria das Cortes Gerais, Biblioteca do Pensamento Político, 2.ª ed., Lisboa, 1975, p. 120). Joaquim de Carvalho: «No debate, que momentaneamente dividiu a opinião culta sôbre se a aclamação e vontade popular eram ou não fonte de direito, Pais Viegas, como Sousa de Macedo e a maioria dos jurisconsultos, considerou-as como aprovação ou declaração dum direito preexistente; e, por consequência, era pelo direito hereditário e pela legalidade que D. João IV ocupava o trono.» (Prefácio ao Manifesto do Reino de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, p. IX).
  8. Faustino José da Madre de Deos: «Os liberaes não erão representantes da Nação legalmente eleitos, porque não havia lei alguma para a Nação ser representada em muitos individuos: logo, segundo a sua exclusão, elles não podiam exercitar a soberania: mas he evidente que eles a exercitárão quando fizerão a Constituição: (...) Possibilidade para fazer as cousas tem todos aqueles que as fazem: Junot se não podesse governar Portugal não o governava: os liberaes se não podessem fazer a revolução não a farião: o Congresso se não podesse exercitar a soberania não a exercitava:» (Os Povos, e os Reis, Lisboa, Impressão Regia, 1825, p. 41). Muito curiosa a fala que fez João das Regras, em Cortes, e que em certa medida se ajusta ao que é o verdadeiro princípio de razão suficiente do poder soberano, mostrando como as Cortes tinham poder para escolher entre vários que ostentavam títulos para suceder a D. Fernando  (Fernão Lopes  --- Crónica delrei D. João I, Parte Primeira, cap. CLXXXIII).
  9. Dedução Chronologica, e Analytica, § 672; Ib. Prova LII. Pascoal José de Mello Freire: «Potest vero Princeps, imo et debet in rebus praecipue novis constituendis subjectos audire, quin aliquid de suprema sua Potestate remittere videatur. In pura autem Monarchia, Regno occupato, nec minima Majestatis particula penes Comitia; ( ... ); constat enim eosdem de publicis, privatisque rebus, de bello, et pace, de Regni regimine, successione, administratione, et de summorum Principum tutela suo tantum arbitrio disponere, non populi suffragiis, idque publica Regni Instrumenta omni aevo demonstrant, et inter alia probant ( ... ).» (Op. cit., lib. I, tit. I, § IV). António Caetano do Amaral: «He do officio do Monarca manter os direitos, e interesses de cada hum dos seus Vassalos, e o bem comum do Reino com a promulgação de competentes Leis, e providencias; mas sendo sempre sua a determinação, podem comtudo os meios para chegar á formação dellas ser differentes, segundo o estado das cousas. Na infancia da Monarchia (...) era de necessidade convocar os congressos; que representassem a nação, a que chamárão Cortes, (...). Erão estas convocadas pelo Soberano, quando lhe aprazia; e ordinariamente em consequencia de queixas, que os Povos lhe havião feito, pedindo-lhe por mercê, que nelas provêsse, como sua mercê fosse; frase, que tanto mais prova a convicção, que tinhão da sua subordinação, quanto os Portuguezes forão sempre os mais zelosos da conservação de todos os seus foros, e privilegios. Esta prova se corrobora com a maneira, porque alli mesmo procedião os Reis, deferindo a huns artigos, ou inteiramente (...), ou com limitações, e excepções; escusando, e rejeitando outros; e em todas as respostas fallando como Soberanos nada dependentes do concurso dos subditos para as suas Resoluções, as quaes ficavão tendo força de Leis; (...).» (Memória V. Para a História da Legislação, e costumes de Portugal, cap. II). Ricardo Raymundo Nogueira: «Concluiremos este discurso sobre a auctoridade das côrtes, acrescentando ás razões, que temos referido, outra, que prova decisivamente que ellas nunca gozavam de algum dos direitos da soberania, e vem a ser, que as côrtes nunca tiveram periodo certo para a sua convocação, de maneira que o principe fosse obrigado a chamal-as em tempo determinado. Ora, se ellas tivessem alguma porção do poder supremo, e o principe dependesse de seus votos para o exercicio de algum dos direitos que lhe competem, é evidente que havia de estar regulado e fixo o tempo da sua convocação, pois que seria absurdo depender o Soberano d'um Congresso, o qual dependia do mesmo Soberano para a sua existencia, pois na mão d'elle estava convocal-o, ou não o convocar.» (Prelecções de Direito Público Interno de Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858, pp. 104 e s.). Francisco Coelho de Souza e S. Paio: «Porem, que pelo uso, e practica das Côrtes, se não prova, que o Imperio Portuguez mesmo na sua origem foi temperado, ou limitado, se mostra 1.º porque as Leis Fundamentais (§. VIII) não prescrevem semelhante forma: 2.º porque as Côrtes dependerão sempre do arbitrio dos Principes: (c) 3.º porque elas não tinhão voto algum decisivo (d).» Prelecções de Direito Patrio, Parte II, Titulo III, cap. II, §. XXVIII, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1793.  2.º Visconde de Santarém: «(...) quando El Rei assentava, que convinha dissolver hum dos Braços antes do acabamento das Côrtes, e mandar continuar as Conferencias nos outros, assim o determinava (...)». E ainda: «As Côrtes, ou acabavão no tempo prefixo, que o soberano lhes marcava, (...) ou erão dissolvidas por Decreto.» (Memorias para a Historia, e Theoria das Côrtes Geraes, Lisboa, Impressão Regia, 1827, Parte 1.ª, §§ 33 e s.). Gama e Castro: «As côrtes não deliberavam, pediam; (...).» (O Novo Príncipe, Lisboa, Empresa Editora Pro Domo, Limitada, 1945, p. 195). Henrique da Gama Barros: «Os termos em que se formulavam usualmente os artigos ou capitulos offerecidos em côrtes, e a maneira como o monarcha lhes respondia, não deixam a menor dúvida de que só por excepção, derivada de circunstancias extraordinarias, a realeza não representava n'essas reuniões uma auctoridade suprema. A linguagem dos povos era não raro severa, rude até, mas expremia sempre um pedido ou um conselho, e não é pouco trivial a repetição das mesmas supplicas e indicações, mostrando-nos assim o seu nenhum resultado.» (Op. cit., I, p. 540). Para diante, lê-se: «O direito de enviar procuradores ás côrtes não se estendia a todos os concelhos, e basta esta circumstancia para nos convencermos de que a interferencia do braço popular na administração geral era assaz restricta, considerando-se como privilegio de algumas terras, ou como concessão que dependia da coroa, e não como direito geral dos concelhos, a intervenção dos burgueses nas assembléas geraes.» (Ib., p. 569). Referindo-se à presença do clero e da nobreza em cortes, Gama Barros diz: «O que parece poder affirmar-se é que o chamamento dos individuos das classes superiores, para concorrerem ás assembléas geraes, dependia do arbítrio do rei (...)». (Ib., p. 575). Por último, a apreciação final do autor sobre o valor que tiveram as cortes: «A sua importância, como instituição política, foi de certo assaz limitada, porque nem a organização da sociedade, dividida em classes, lhes permitia disporem da força que dá a união, nem a classe popular, o agente mais predominante e interessado nas assembléas geraes, tinha em si elementos de resistencia para luctar com probabilidade de exito e dictar a sua vontade. Mas a instituição conservou sempre uma certa força moral, que transparece com evidencia dos documentos, e á sombra d'ella se procurou a salvação da patria n'uma das crises mais graves por que passou a nação durante a idade media, nos fins do seculo XIV. Assim, se as côrtes não serviram nunca de obstaculo ao desenvolvimento do poder da coroa, nem por isso deixaram de moderar algumas vezes, em circumstancias especiaes, os excessos d'esse poder, nem a sua existencia foi esteril para o progresso social.» (Ib., p. 576 e s.). Paulo Merêa: «(...) de forma alguma se pode dizer que constituíssem, quer sós quer de colaboração com o rei, um verdadeiro poder legislativo, porque o rei se arrogou sempre, como sabemos, o direito de legislar sem a sua intervenção. (...) Os próprios termos em que usualmente se formulavam os artigos e a maneira como o rei lhes respondia estão a mostrar claramente a superioridade de que normalmente se revestia a realeza, não obstante a forma rude por que às vezes se lhe dirigiam os povos.» (O Poder Real e as Cortes, Coimbra, 1923, pp. 39 e s.). Jorge Borges de Macedo: «Por sua vez, as cortes dependeram sempre, na convocação e funcionamento, da autoridade do rei e nunca constituíram uma organização de consulta regular e menos ainda de deliberação. Muito embora a força das circunstâncias lhes desse, em alguns casos, grande peso ou mesmo poder deliberativo ocasional, as cortes foram sempre organismos sem convocação regular, e menos ainda obrigatória. As deliberações por elas tomadas a esse respeito no reinado de D. João I (Cortes de 1385), depois em 1438, 1451 e 1455 e, mais tarde, em 1525 nunca se efectivaram. A autoridade de todos os órgãos governativos derivava do rei.» (Polis, Verbo, 1, cols. 46 e s.). Coelho da Rocha considera-as «assembleias deliberantes, que moderavam o poder do rei e com elle exerciam uma parte da soberania» (Ensaio sobre a História do Governo e da Legislação em Portugal, § 63), embora depois sustente a opinião de que «não estava porém regulado o periodo da sua convocação, a qual dependia do arbitrio da Corôa» (ib., § 127), com o que parece anular a fracção de soberania que, antes, lhes atribui (v. supra, argumentação de Ricardo Raymundo Nogueira a este propósito). Magalhães Colaço mostra-se indeciso nesta controversa questão (Ensaio sobre a inconstitucionalidade das leis, Coimbra, França E Arménio Editores, p. 4).
  10. Montesquieu --- De l'esprit des lois, liv. XI/IV et VI. É difícil, para não dizer impossível, achar um fio lógico no discurso apresentado nestes capítulos.
  11. Simão José da Luz Soriano: «O poder é um só e indivisível, é como a vontade, que ou existe inteira, ou não existe. Havendo côrtes e um rei, succede de duas cousas uma, ou o poder está n'elle e nos seus ministros, se tem meios de as subjugar pela força, ou compral-as pela corrupção; ou está nas côrtes, quando estas estão no caso de agitar o povo, de predispôr em seu favor o espirito publico, e intimidar o executivo, isto é, o rei, os ministros, a côrte e o exercito, pela magica influencia da palavra, e superioridade da opinião. Não vêr isto, é negar a luz ao sol em dia claro.» Continuando, diz o soldado de D. Pedro: «O facto é que na chamada balança dos poderes ha sempre cousas, que a fazem pender ou para um, ou para outro lado, sendo por tanto uma verdadeira chimera esse decantado equilibrio dos poderes. Nem se perde nada que assim seja, porque se existisse, a acção de uns seria destruida pela dos outros, seguindo-se-lhe como natural consequencia a immobilidade e o estacionamento.» E conclui peremptoriamente: «Tudo são utopias e mais utopias o que a este respeito nos diz a lei fundamental do estado.» (Revelações da Minha Vida --- A. Leite Guimarães-Editor, Porto, 1891, p. 468).
  12. Gama e Castro, reproduz a imagem do rei, chefe dos executivos liberais, nas garridas cores com que era pintado pelos revolucionários: «(...) porque por graça da constituição, sem mais nada, há-de ser, em que lhe pez, infinitamente bom, e infinitamente sábio, e até quer Deus o queira, quer não. A constituição (dizem) prende-lhe inteiramente os braços para fazer mal, mas deixa-lhos completamente desembaraçados para fazer bem.» (Op. cit., p. 12).
  13. Ex. 18, 13 e ss. Enrique Gil y Robles: «Pero si es falsa la división, separación e independencia de los poderes públicos, no así la distinción de las funciones gubernativas que el soberano no puede ejercer ni retener, y están encomendadas a funcionarios individuales y corporativos que, en nombre de aquél las desempeñan.» (Tratado de Derecho Político, II Afrodisio Aguado, S.A., p. 602).
  14. Oliveira Martins --- Portugal Contemporâneo, Explicações (na segunda edição), Novembro de 1883.
  15. Em Portugal, assim foi invariavelmente: Constituição de 1822, art.127.º; Carta Constitucional, art.72.º; e o Setembrismo, que se meteu pelo meio, também consagrou o estatuto da irresponsabilidade real (Constituição de 1838, art. 85.º).
  16. Obras Completas, vol.6, Edições Afrontamento, p. 305.
  17. O tempo assiste à repetição desta sentença. Entre nós, o talento superior de Vieira, enunciou-a de modo sublime: «Ah! se os reis e monarcas considerassem que as púrpuras que vestem lhas empresta Deus da sua guarda-roupa, para que representem o papel de rei enquanto ele for servido!» (História do Futuro, Livro Anteprimeiro, cap. oitavo, p. 133). E engrinalda a coroa da soberania, com a fidelidade a Deus: «Não pode dar mais a fortuna a um príncipe que poder o que quer; nem pode exceder um príncipe essa mesma fortuna que não querendo o que pode; e não poder querer o que Deus não quer, ainda é um ponto mais alto sobre a grandeza.» (ib., p. 134). Numa suposta lex Britanniae, proclama-se: «You shall be a king, while you rule well; but if you do otherwise, the name of a king shall not remain with you (...)». (The Oxford History of Britain, Oxford, University Press, p. 281). É curioso observar a universalidade do princípio, apesar da incerteza histórica desta última fonte.
  18. Rom. 2, 25.
  19. Produz a mesma sensação transmitida por José Régio no seu festejado Cântico Negro. Sabe que não vai por ali; mas não sabe por onde vai nem para onde. É o vazio, a desolação da esterilidade!


N. A.: Junta-se carta que me foi remetida pelo emérito romanista Don Álvaro D' Ors.
Monarquia Pura foi pensada para uma conferência a realizar em Espanha, no seguimento da cerimónia de homenagem à Princesa da Beira, levada a cabo pelos Carlistas e que teve lugar em Pamplona, a 21 de Dezembro de 1991. Participei nesse encontro, oferecendo em castelhano, de viva voz, O Calvário da Legitimidade, intervenção editada neste blogue já a seguir ao texto de que aqui se trata. Também foi em castelhano a primeira redacção de Monarquia Pura. E foi essa a versão que o grande Mestre de Direito Romano honrou com a carta que abaixo segue.
Dado o cenário onde se integra uma conferência, esta exposição não era acompanhada pelas notas agora presentes. Não pude enviá-las ao ilustre Professor porque, quando as tinha prontas, já o mesmo havia falecido.
    



JMC