sexta-feira, 25 de julho de 2008

A DEMOCRACIA É A HECATOMBE


O texto, que segue, foi parcialmente extraído de um artigo meu publicado num jornal diário de 10DEC80 e s. Há alterações de redacção, mas não passam de meros detalhes.

A democracia, na realidade, não existe. É, portanto, um logro do pensamento ou uma mentira. Aquilo a que, abusiva e erradamente, se chama democracia, isso é o tédio, o desencanto, o desespero. É também o regime da hipocrisia e do engodo.

Não admira, pois, que os mais bem intencionados se afastem, descrentes das virtudes que ela alardeia, mas não chega a mostrar porque não pode e não pode porque não as possui. O bem que nela se achar resulta de não haver o mal absoluto. Este regime pode, por excepção, produzir bons frutos. Porém, a excepção está para a regra, como a minoria para a maioria: nada mais contrário, pois, aos dogmas democráticos. Se o império da excepção acha guarida no coração dos prosélitos da religião do número, eis um acto que sabe a sacrilégio!

A democracia nem sequer como palavra tem consistência: é o mesmo que autodidacta. Ambas pretendem apresentar uma plenitude que lhes falta. Toda a sua dimensão é nula. A sua semântica reflecte uma contradição.

Se quisermos, no entanto, encontrar as raízes longínquas das modernas democracias talvez não nos seja necessário remontar mais atrás de Lutero. Efectivamente, ao proclamar, com respeito à Bíblia, a tese do livre-exame, o frade rebelde lançou as bases do individualismo religioso. Daí ao individualismo político de Rousseau, é pequena a distância. Todavia, não nos deixemos ficar por aqui e saltemos até Engels:

«A mesma teoria igualitária de Rousseau (...) não teria podido resultar se a negação da negação, no sentido hegeliano (...), não o tivesse ajudado» e acrescenta que «já em Rousseau encontramos uma ordem de pensamentos que se assemelha exactamente à que Marx seguiu em O Capital e grande número de raciocínios dialécticos de que Marx se serve», considerando-o «gravemente infectado, vinte e três anos antes de nascer Hegel, pelo contágio hegeliano, (...)» (1). Análise insuspeita que é de reter!

Partindo destes factos, custará menos perceber os fenómenos políticos e económicos que os acompanharam e se lhes seguiram.

Quando Lutero cindia a Cristandade, assomavam no limiar da história a burguesia e o capitalismo. O capitalismo é a meta dourada da burguesia e é também todo o seu universo.

De onde vem a burguesia e como se desenvolveu? Tem as suas remotas origens no mercantilismo; é o prolongamento imediato da revolução industrial; e alcançou a sua apoteose triunfal na convulsão que agitou a França em 1789. É, pois, marcadamente liberal. E o liberalismo, mais a sua decantada separação de poderes, é uma ilusão, uma trapaça, porque desembocará inevitavelmente no confronto entre esses poderes divididos, choque que apenas achará fim com a concentração, num só, de todos eles. Como a soberania popular, em que repousam os postulados demoliberais, não conhece limites de qualquer ordem, já por aqui se pode imaginar a natureza que revestirá a facção vencedora.

«O Protestantismo é essencialmente uma religião burguesa», escreveu Marx (2). E as contradições das múltiplas seitas nascidas no seio do Protestantismo levam, não direi fatalmente, mas sim com grande facilidade, à confusão, ao indiferentismo, à perda do sentido sagrado do temporal. Em suma: conduzem até ao inconfessionalimo e ao naturalismo.

Ora a democracia é, por norma, liberal e inconfessional: sendo liberal, acabará totalitária para não terminar anárquica; inconfessional, apontará para o ateísmo. Por isso, é a democracia a vertente inclinada para o atoladeiro do comunismo.

Acontece que a democracia é, na maioria dos casos, o credo político da burguesia. Portanto, não me repugna aceitar que seja incongruente o horror que o financeiro e até o homem médio aparentam possuir relativamente ao socialismo, já que o socialismo não constitui mais do que uma espécie nova do género que é a burguesia mercantil dos negócios.

Não perderei tempo a saber se Marx errou e onde errou, porque a caminhada para o colectivismo é um facto e isso ou socialismo comunista não diferem em termos práticos. Só os modernos kautskianos teimam em ignorá-lo ou fingem teimar! Importa muito mais (isso, sim) levantar este problema: a sociedade moderna é, predominantemente, uma sociedade de classe média ou, pelo contrário, o fenómeno da proletarização alastra como uma praga?

Pouco interessa o sentido em que se possa decidir esta questão. O que conta, aquilo que inquieta, é que o jogo democrático faz-nos tombar sob o império a que apontam as teses igualitárias. Então, como no drama shakespeariano, se os Antónios alcançam vantagem sobre os Brutos, continua-se no signo do cesarismo. Mas, se são os Brutos que logram sufocar os Antónios, teremos o regresso às democracias? --- Por vezes acontece, assim se desenhando o ciclo mortal: democracia, oclocracia, império, democracia ... e a roda vai girando sem parar!

A democracia é a pusilanimidade. Cede normalmente a todos os caprichos. Como não tem a força da autoridade ou claudica, ou cai no excesso contrário. Em regra, prefere o masoquismo da capitulação à exposição no pelourinho público sob a acusação da prática de violência. Mas isto não tem de admirar: é impossível exigir coerência e firmeza a governos que saem da massa informe do povo.

As multidões oscilam sempre entre Jesus e Barrabás. E quando não ouvem a voz de varões santos a anunciar-lhes quem é criminoso, costumam, numa fúria alucinada, pedir o inocente. Então, a cobardia que acompanha a ambiguidade de todos os Pilatos, liberais que pedantemente perguntam o que é a verdade, acaba por entregar-lhes Jesus para ser crucificado. Amarga fatalidade, mas lição inexorável da história!

Entretanto, as mais destacadas figuras do movimento comunista não se cansam de repetir que o primeiro passo do proletariado, na luta que tem a travar, é o de vencer a batalha da democracia. Esta lição foi logo gravada por Marx e por Engels (3). Convinha que alguns dos nossos contemporâneos a tivessem presente na memória.

Lénine não usa de rodeios e afirma que a «democracia significa igualdade», embora seja apenas uma igualdade formal (4). E é isso que impede que se avance para a regra de ouro que, segundo citação de Lénine, Marx enunciou na Crítica do Programa de Gotha: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.» (5) Esta frase é sedutora, arrasta consigo o encanto do oásis e da felicidade e, por isso mesmo, reclama ser analisada. Com isto não me proponho fazer a crítica do comunismo, mas tão-só denunciar o seu parentesco com a democracia.

Em primeiro lugar, quando o próprio Lénine confessa «por que etapas, através de que medidas práticas a humanidade chegará a este fim supremo, não sabemos nem podemos saber» (6) e que «no plano político, a diferença entre a primeira fase ou fase inferior e a superior do comunismo será provavelmente enorme com o tempo» (7), quando isto sucede, repito, assiste a qualquer pessoa um direito, pelo menos de igual força, em duvidar da realização daquilo que diz o prócere vermelho. Quem quiser debruçar-se sobre o tema, logo notará que tamanha equidade é atributo da justiça divina, o que há-de impor a conclusão de que nenhuma sociedade temporal a realizará. E, percorrendo o caminho indicado pelos comunistas, nem visos dela nos hão-de chegar.

Depois disto, que resta? --- Não podendo aceitar a fase superior do comunismo, apenas podemos admitir, como possível, a ditadura do proletariado. Como reagirá o nosso burguês, opiparamente instalado, de mentalidade oportunista e tacanha, quando se lhe participar que irá receber o salário operário que os communards distribuíam independentemente de toda a hierarquia burocrática?

O burguês, assim apertado, assusta-se. Ele é massa indolente que vegeta, figura passiva, modelo de indiferença a valores espirituais, espécie infra-humana que gira em torno de um eixo --- a sua barriga, única divindade que adora: auri sacra fames!

Esaú, por um prato de lentilhas, vendeu o seu direito de primogenitura. A troco de trinta dinheiros, entregou Judas o seu Divino Mestre. O burguês não se importa de alienar a inteligência, desde que lhe garantam as algibeiras a abarrotar. Com efeito, a democracia manda --- um homem, um voto. Quer dizer: ao burguês não se lhe dá que, intelectualmente, o ponham ao nível do imbecil, nem se rala de ser equiparado ao leviano ou ao caprichoso. Lá rasoira económica é que não: nisso, não consente ele!

Simplesmente, caso tudo isto continue, não vejo como irá o burguês evitá-lo. E não arriscarei muito se declarar o comunismo como fase suprema do capitalismo.

Avancei demais? --- Não o creio, pois o próprio Lénine considerou o imperialismo como fase superior do capitalismo. Vem, então, a negação do imperialismo (como se exprimiria a dialéctica marxista) e que temos nós? --- «O imperialismo é a véspera da revolução social do proletariado.» (8) De resto, já antes referira Lénine que na primeira fase do comunismo (e esta é a que nos tem de interessar uma vez que a fase superior, segundo o seu próprio depoimento e conforme atrás se aludiu, eles não sabem nem podem saber como e quando chegará), escreveu aquele autor, repito, que «todos os cidadãos se tornam empregados e operários de um único 'consórcio' estatal, nacional.» (9)

A sociedade burguesa, capitalista e liberal, é realmente o fermento da revolução comunista porque essa sociedade mofa de Deus, pulverizou todos os corpos intermédios das nações e afogou, renegando e trucidando, a velha ordem económica. Segundo Marx «as leis das corporações da Idade Média impediam metodicamente a transformação do mestre em capitalista» (10) para, noutro passo, acrescentar que «o aparecimento do capitalista apresenta-se como resultado de uma luta vitoriosa (...) contra o regime corporativo com os entraves que punha ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem.» (11)

Fui excessivamente longe, volto a perguntar? --- Pois se eles até falam alto e bom som! Mas que relação tem tudo isto com a hora que Portugal vive? --- Respondo já:

A sociologia apresenta, nos seus quadros, uma figura a que chama etnocentrismo. Define-a como uma forma de preconceito: consiste em julgar outras culturas e sociedades, aplicando-lhes a própria filosofia de vida. Está bem ou está mal? --- Parece-me ocioso discuti-lo aqui. Uma coisa, contudo, não posso calar e é ela a existência de uma vergonhosa modalidade de etnocentrismo, a que eu ponho o nome de etnocentrismo em ricochete --- traduz-se no desejo de medir a nossa civilização e a nossa cultura por uma escala de valores que nos são estranhos e querer mudar o nosso modo de estar no mundo sem cuidar de saber o grau de qualidade desses padrões alheios.

Penso que este é o mal que atingiu Portugal. Como remediá-lo?

Desconfio seriamente da eficácia dos consulados, se penso no passado e no futuro, no tempo que corre incessantemente. Os consulados aparecem como refrigério das democracias e duram o tempo de um simples intervalo. Pelo que acabam depressa e dão lugar ao regresso do pesadelo.

Por este processo, jamais sairíamos do ciclo vicioso de golpes e contragolpes. Isso não convém de modo nenhum. Portanto, o que devemos procurar terá de oferecer garantias de continuidade. Aquelas que é lícito esperar das instituições humanas.

Requer-se, pois, uma tarefa de restauração integral: restauração dos valores espirituais, morais e sociais, isto é, a recuperação dos motivos que possam levar a que nos declaremos, com inteira honra, católicos e portugueses.

Eu adoro a Deus; venero a Tradição; amo a Pátria; e mantenho-me fiel ao legitimismo monárquico, à monarquia defendida por S.M.F. D. Miguel I, à única monarquia que existe. Sei que o presente é hora de luto e constitui uma nódoa na nossa condição de Portugueses. Mas também não desconheço que são muitos os que vibram com o passado de Portugal, um Portugal cristão, um Portugal glorioso. E que todos eles respiram, com gosto, a embriaguez deliciosa desta pugna.

Por isso, nos devemos manter na luta contra a implantação da iniquidade que esmaga a Nação. O solo português foi berço de mártires e de heróis e é Terra de Santa Maria!


Joaquim Maria Cymbron
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  1. Friedrich Engels --- Anti-Dühring, trad. de Isabel Hub Faria e Teresa Adão, 2.ª ed., Edições Afrodite, Lisboa, 1974, pp.174-176.
  2. Karl Marx --- O Capital, trad. de António Dias Gomes, I, 7.ª ed., Delfos, Mafra, p.448.
  3. Karl Marx e Friedrich Engels --- Manifesto do Partido Comunista, Publicações Nova Aurora, Lisboa, 1976, p.72.
  4. V. I. Lénine --- Obras Escolhidas, II, Edições Avante, Lisboa, 1978, p.289.
  5. Ib., p.287.
  6. Ib., p.289.
  7. Ib., p.288.
  8. Op.cit., I, p.585.
  9. Op.cit., II, p.290.
  10. Karl Marx --- op.cit., I, p.225.
  11. Ib., p.443.


JMC

9 comentários:

Anónimo disse...

Bom artigo para pensar:

A Democracia tem o equivalente do socialismo sovietico, compoe por pontos comuns,a liberalizacao e facilitacao do aborto e da eutanasia,a perda da identidade das Nacoes e seus povos e visa o monopolio do capitalismo.

Cristina da Nobrega

Anónimo disse...

Do melhor que a blogosfera alternativa produziu.
Parabéns.

Anónimo disse...

Encontro aqui um comentário de Cristina da Nóbrega, como numa mensagem ela explicava que foi pelo Joaquim Cymbron que continuava a escrever, pergunto se não tem um contacto dela que me podesse fornecer, precisava de contactar esta senhora e convidá-la a escrever no meu site,voltarei para ver se tem o contacto de Cristina da Nóbrega ou informar-me de alguém que me possa dar a informação que preciso.
Obrigado
Carlos Afonso

Joaquim M.ª Cymbron disse...

Ex.mo Sr.Carlos Afonso:

O texto que aqui colocou não é um comentário. Se quer que eu aprecie o seu conteúdo, faça o favor de se dirigir a mim pela via idónea, que é a do correio electrónico.

Para isso foi que eu deixei indicado o respectivo endereço, que pode ser encontrado no meu perfil.

Acho deslocado tratar assuntos desta natureza, numa caixa de comentários.

Anónimo disse...

La democracia está bien para Inglaterra y los Estados Unidos......pero para los Países Latinos y Católicos, en especial, para España.......Nao presta....!!!

António Conceição disse...

"...talvez não nos seja necessário remontar mais atrás de Lutero. Efectivamente, ao proclamar, com respeito à Bíblia, a tese do livre-exame, o frade rebelde lançou as bases do individualismo religioso."

Eu recuo um pouco mais. Recuo até Occam e ao nominalismo. Se me consente o abuso, reproduzo aqui um texto em que reflecti um pouco em torno de um assunto afim do seu inteligente post (o que não significa que subscreva integralmente o seu teor):


A problemática dos direitos de personalidade, enquanto problemática jurídica em sentido estrito é uma questão moderna. Remonta aos finais da Idade Média, com o triunfo, especialmente a partir de Guilherme de Occam, das concepções epistemológicas do nominalismo
Contrapondo-se ao realismo clássico, o nominalismo vai negar ao universal outra realidade que não a realidade verbal. Fora do pensamento, não há outra realidade que não os indivíduos e as suas propriedades. Só o particular existe.
Para Occam (a sua doutrina triunfante, cujos princípios fundamentais se projectam na Idade Moderna, até aos nossos dias), o universal existe na alma do sujeito cognoscente e só aí. Podemos interrogar-nos que tipo de existência têm os universais no pensamento, mas fora dele não nos resta senão admitir a sua ausência total de realidade, a sua inexistência de facto.
Cada coisa real é individual, única e distinta. Deste modo, tudo o que é real fora do pensamento é um concreto indivíduo, que o é pelo simples facto de existir.
O universal, p. ex., o universal homem, enquanto conceito distinto de cada homem concreto, não existe fora da mente do sujeito pensante.
É este um ponto absolutamente fulcral na doutrina nominalista, de Occam e de todo o pensamento moderno que a aceitou. Nunca é demais sublinhá-lo. É que com ele se elimina toda a esperança de encontrar nas coisas, nas coisas em si mesmas, através do pensamento, uma natureza comum (natura communis) real, uma natureza comum que permanecesse una sob as suas múltiplas determinações individuais.
Se para o pensamento clássico e cristão medieval, os direitos do indivíduo se fundavam numa idêntica natureza comum a toda humanidade, numa partilha da mesma natureza humana (o arquétipo de homem no mundo das ideias de Platão; o homem criado à imagem e semelhança de Deus na mundividência judaico-cristã), o pensamento nominalista vai destruir uma tal concepção e constituir-se na necessidade de reconstruir todo o edifício dos direitos individuais.
Para o nominalismo, repete-se, nada que corresponda a uma natureza humana universal tem existência real fora do pensamento. A realidade é a realidade dos homens concretos, dos indivíduos isolados e distintos, não do ser humano, categoria universal, carecida de existência extra-mental.
As consequências desta concepção na pré-compreensão epistemológica do fenómeno jurídico são óbvias: negada a realidade da humanidade, negada a realidade de uma natureza humana, negada fica a existência de um direito natural inerente a essa humanidade, de um direito comum a todos os homens, anterior e superior aos homens. Nas palavras de Diogo Leite de Campos, “a lei deixa de ser vista como uma expressão da ordem descoberta na natureza, para se transformar na expressão da vontade do legislador. E o Direito já não (é) uma relação justa entre seres sociais, mas o reconhecimento do poder autónomo do indivíduo”.
Nominalismo, logo positivismo e voluntarismo.
Ainda nas palavras Leite de Campos, “não havendo mais que o ser (individual), ao qual o Direito tem de estar necessariamente vinculado, este ser humano transforma-se no autor do direito”. De um direito que, por ser produto humano, é contingente e discutível. Não a expressão de relações justas, mas a expressão pura da vontade e do poder.
Neste quadro, a reconstrução do edifício jurídico imposta pela nova concepção dominante vai correr sempre à beira do abismo, sempre a exigir a vigilância atenta do jurista que, cada passo corre o risco de ver funcionalizados o Direito e os direitos que lhe cumpre defender, colocados, não ao serviço da Justiça, mas ao serviço do poder e do discurso dominante.
No plano político, destruída a humanidade que assegurava a possibilidade e coesão da vida em sociedade, a reconstrução vai dar-se a partir das doutrinas do contrato social, um imaginário contrato entre indivíduos, livres, isolados e iguais que aceitavam abdicar de parte da sua liberdade, a favor da possibilidade de vida em sociedade.
No plano do direito comum, a resposta vai ser dada justamente com os direitos de personalidade, direitos do indivíduo enquanto concreto indivíduo particular e não direitos inerentes a uma natureza humana universal, essa irremediável e definitivamente perdida. Direitos dos humanos e não direitos do humano.
Mas, insiste-se, perdida essa humanidade natural, destruído o que era anterior e superior aos indivíduos, o que sobra é a expressão voluntarista da pura força.
O intento nobre da consagração de direitos de personalidade individuais degenera na doença jurídica dos nossos dias: os direitos de personalidade individualistas.
O meu direito individual à vida, o meu direito individual ao nome, o meu direito individual à liberdade vêem-se agora interpretados como o meu direito individualista à vida, o meu direito individualista ao nome, o meu direito individualista à liberdade, entidades jurídicas que já não têm outra realidade que não a de serem afirmações concretas do meu direito, expressões puras da minha força, sem nada em comum aos outros homens, anterior e superior a eles, que as justifique e legitime.
Voltamos ao início. O universal não existe. O meu direito é intrinsecamente individual, concreto e único. E assim sendo, a sua realidade passará apenas pelo poder sua afirmação.
“Os direitos da personalidade - é outra vez Diogo Leite de Campos quem fala - no discurso do jurista e nas representações sociais, têm a sua natureza adulterada. De instrumentos de defesa do ser humano contra a omnipotência do soberano e contra a agressão dos outros, estão sendo transformados em expressão da omnipotência do indivíduo, da sua soberania absoluta sobre o eu e os outros”. De direitos da personalidade, transformam-se em direitos das personalidades, em direitos de quem é senhor da palavra, de quem é dono do discurso, de quem fala mais alto. No mundo contemporâneo, de quem controla os media.
Não é por acaso que, perante a universal indiferença, na África grassa a morte e a devastação, em pandemias de doença e genocídio que aniquilam o continente, enquanto o ocidente rico discute o direito à vida dos ratos de laboratório e o direito à morte dos cansados da vida.
Não é por acaso que na Europa e na América se prega o liberalismo, a abolição de barreiras e a globalização e no terceiro mundo se morre de fome, por causa dos subsídios e subvenções proteccionistas aos agricultores da Europa e da América.
Não é por acaso que qualquer funcionário doente corre hoje à televisão, a protestar contra a alta médica que lhe foi dada e o ministro atende rapidamente o protesto e trata de supender a decisão de quem tinha competência para se pronunciar.
É porque o Direito deixou de ser a expressão da Justiça, a esperança dos fracos, dos órfãos e das viúvas, para se tornar, apenas, a expressão simples da força de quem acede ao discurso, de quem logra amplificar a voz e fazer-se ouvir. A expressão do poder de quem consegue berrar mais alto.
Não há nenhuma crise da Justiça. Há uma crise geral dos valores e da Ética.

Anónimo disse...

Muito boa intervenção do senhor funes, o memorioso. Acrescentaria que o grande problema actual é a subversão dos valores, em que o bem comum foi trocado pela pança farta do homem moderno sempre insatisfeito. Os interesses privados sobrepõem-se agora aos interesses colectivos.
Elevado nível intelectual corre neste blog.
Parabéns a todos.

Joaquim M.ª Cymbron disse...

Meu caro Funes:

Sem desprimor para ninguém, o seu comentário é fabuloso!

Agora que andamos os dois a ver se assentamos no que está em crise, aqui e no meu outro blogue (onde já irei para lhe responder), este texto fez renascer em mim a alegria, a esperança e um legítimo orgulho.

Quando Coimbra deu ao mundo do saber um nome como o de Pedro da Fonseca, e à Europa um compêndio por onde ela estudou muito tempo (já tivéramos essa honra com as 'Summulae Logicales' do único português que subiu a Chefe da Cristandade), é-me imensamente grato verificar que em Portugal nem todos perderam a noção de uma recta e sã filosofia.

É que a crise de Ética, por si tão bem assinalada como causa dos males que afligem a nossa sociedade (e que ultrapassa fronteiras), radica numa crise do pensamento.

Dou-lhe, pois, inteira razão. Eu devia ter recuado mais no tempo. Repare, no entanto, que eu disse '(...) talvez não nos seja necessário remontar mais atrás de Lutero.' Usei o advérbio de dúvida, mas reconheço que só teria ganho, se me houvesse referido à celebérrima querela dos universais.

O franciscano inglês lançou as sementes do relativismo de valores. A partir daí, veio o resto.

Concluindo: à crise de Ética, anteponho (com prioridade lógica, não ontológica) a crise do pensamento, porque, fiel aos ensinamentos de S.Tomás de Aquino, entendo que devemos apetecer o Bem pela Verdade nele contida. A adesão ao Bem é um acto da vontade; a descoberta da Verdade é obra da inteligência.

Muito obrigado pela sua chamada de atenção!

Barandán disse...

Desde España. Celebro haber encontrado este blog, auténtica expresión de las esencias católicas y monárquicas de Portugal. Desde el siglo XIX, Miguelistas y Carlistas combatimos por lo mismo, contra las maniobras del capitalismo mundial y el marxismo.

Quisiera que mis palabras llevaran a Porgual el mismo viento fresco de libertad que las palabras del autor de este texto me han traído a mí.

Pues son nuestras,
españolas y portuguesas,
todas las saudades
del Sacro Imperio.

Moito obrigado.