terça-feira, 30 de setembro de 2008

MANIFESTO AO POVO PORTUGUÊS


O MANIFESTO, que a seguir se publica, foi editado em Luanda, estando relacionado com os acontecimentos que se verificaram na metrópole, a 28SET74.
Desprezaram-se algumas passagens (poucas e curtas), para só deixar ficar as que de certo modo, nos dias que correm, podiam voltar a ser escritas como se fora a primeira vez.
Este foi, no Ultramar, o último dos panfletos que eu lancei a seguir ao golpe abrilino. A 03OUT74, fui detido por ordem de Rosa Coutinho. Permaneci isolado durante pouco mais de vinte dias, após o que me libertaram. Fora a privação de comunicar com o exterior, a incerteza quanto ao tempo que duraria o meu cativeiro e a pressão psicológica usada nos interrogatórios, tive sorte em não sofrer nenhum tipo de sevícias corporais.
Em Angola, a resistência era incipiente e estava mal organizada. Faltava-lhe uma cabeça que delineasse uma acção concertada contra os manejos de Lisboa. Essa foi também uma das causas da nossa derrota.
Ainda assim havia planos, sobre os quais não me foi muito difícil manter absoluta reserva. Conhecedor de que é costume vigiar os passos daqueles que não largaram informações, concluí que seria mais prudente abandonar a Província. Não me dirigir aos implicados naquilo em que eu estava metido, era simples; o pior seria comprometer quem nada tinha a ver com a rede existente, por força de uma visita de cortesia ou como resultado de uma conversa inocente com pessoas amigas, na rua ou à mesa de um café. Por isso, ganhei a África do Sul, tendo voado depois até Espanha. Em 24JUN75, atravessei a fronteira e entrei no rectângulo europeu. Estava-se no acender do Verão Quente, cujas chamas depressa se extinguiriam, afogadas num golpe que, insidiosamente, cimentou o 25 de Abril.
Hoje, trinta e quatro anos volvidos sobre os momentos que se viveram em Angola, no rescaldo da fracassada marcha da maioria silenciosa, achei oportuno recordá-los através de um documento onde palpitam lances do maior dramatismo.
Aqui vai:


À honra, brio e dignidade dos Portugueses se dirigem as palavras que vão seguir! Para as suas consciências de homens rectos elas apelam a fim de que as julguem e, julgando-as, as afastem ou as acolham.

Na hora em que a Revolução carrega de pesadas nuvens o céu tão caro da nossa Pátria, bom é que nos detenhamos e olhemos à nossa volta:

Portugal nasceu na Europa; prolongou-se no mundo; perdeu posições onde legitimamente cabia; e hoje, caso queira sobreviver, tem de se considerar a si próprio como estando predominantemente em África mantendo territórios europeus.

Em conformidade com esta realidade, assiste aos Portugueses do continente africano o direito de dizer não aos conluios de Lisboa. Mais: recai sobre todos a grave obrigação de o fazer! A Pátria impõe esse dever; cumpra-o cada um dentro das suas possibilidades.

Nasceu Portugal na Europa. Mas nela teve seu berço ao redor dos muros de Guimarães, por todo o largo campo sobre o qual duro entrechocar de ferros guerreiros deu à história a batalha de S. Mamede.

A circunstância de ter começado em tão reduzido espaço não impediu a Nação de se estender para sul, num arranco de prodigiosa vitalidade, animada por uma vocação sobrenatural, cônscia de uma missão a cumprir. Mais tarde ela viria a fazer-se ao mar, estreitando mundos e espalhando a civilização. O peito lusitano foi altar em que vicejou a flor do ecumenismo cristão.

Desvendámos o oceano; e em todas as paragens que tocámos, assentámos padrões e alçámos a Cruz de Cristo ao mesmo tempo que evangelizávamos as almas. Embora ciosos das características que nos conferiam uma individualidade nacional, levámos valores nossos aceitando os das outras gentes, e nesta permuta cultural nos fomos enriquecendo, a nós e àqueles com quem passámos a conviver. Assim se ia processando uma colonização que alguns dementados pretendem abocanhar. Raros são os povos que se podem orgulhar de semelhante epopeia.

No entanto, nos dias que correm, trafica-se com o nosso País, mercadeja-se a terra de nossos maiores!

Quem o vende assim tão vilmente? --- Nos leilões da política internacional aparece quem não é por certo o único culpado, mas executante sinistro dos desígnios maldosos de tenebrosas alfurjas, que a sua mente aplaude porque também vê desse modo.

Consumou-se o primeiro acto, com a entrega inqualificável da Guiné. E quando o governo desapiedado avança a imolar Moçambique nas aras de um sacrifício estúpido e brutal, responde-lhe o gesto desassombrado de um punhado de valentes. De Lisboa, os títeres, apavorados, classificam-no de grave e louco atentado ao direito; e, à força heróica de uma razão cristalina, contrapõem a razão selvagem de uma força fratricida. Tendo prometido restituir Portugal aos Portugueses, numa ironia difícil de compreender, acabam por atirar Portugueses contra Portugueses.

Partiu o brado de revolta, em Lourenço Marques, contra o mais extravagante direito que se consegue conceber. Desse direito parece principal intérprete o Dr. Mário Soares, cuja acção política é bem o índice da avariose que atacou determinado escol.

Que tem feito S. Ex.ª nos seus escassos meses de governo? --- Passeia! Passeia, ruidosamente, dentro e fora de Portugal! Umas vezes, esquecendo os seus deveres de homem de Estado, corre a acumular incenso como secretário-geral do partido em que milita; outras, distraído da nacionalidade que a lei lhe confere (é lícito duvidar que o coração lhe fale nela), vai firmando tratados e diminuindo o País.

Que poderes tem o Sr. Ministro? --- Incomensuráveis! Que poderes lhe deu o povo para decidir o seu futuro? --- Até agora, nenhum!

Mandatário de interesses inconfessáveis, o Dr. Mário Soares alcançou, neste curto espaço de tempo, praticar um feito notável: --- S. Ex.ª espalhou o luto em muitos milhares de portugueses, que treze anos de intimidação terrorista não foram capazes de abalar.

Com um despudor tranquilo participa S. Ex.ª na obra de desmantelamento. Isto é abjecto! Mas a S. Ex.ª não lhe coram as faces de pejo, porque entende que é esse o sentido da história e considera grave sacrilégio opor-se-lhe.

No Elogio da Loucura, lê-se: «Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: Bebe ou retira-te, enfim, que quer que a farsa não seja farsa.»

Nestes termos, resulta ser o Dr. Mário Soares um esplêndido actor numa grande farsa. Simplesmente, esta farsa é um crime porque são trágicas as suas consequências.

Ao abandono que prostitui, juntam-se actos que ofendem o sentimento moral dominante. É o lenocínio que vai ganhando cartas de privilégio e foros de instituição.

«Os valores mudam, quando os criadores mudam. Se queremos criar é necessário começar por destruir» --- assim falava Zaratustra. É singular a existência de certas afinidades que alguns regimes, arrogando-se natureza democrática, mantêm com a filosofia nietzscheana, uma filosofia que influenciou marcadamente uma das mais pavorosas ideologias que assolaram o mundo.

Saímos, há pouco, de uma situação enganosa com ressaibos de heresia (1); pergunta-se, agora: para onde nos estão a levar?

O Sr. General António de Spínola acaba de anunciar ao País a sua decisão de renunciar ao cargo de Presidente da República. S. Ex.ª cava, deste modo, um fosso entre a sua prestigiosa figura de militar e a camarilha dos traidores que dilaceram a Pátria. Pode ficar seguro que a parte sã da Nação lhe agradecerá, do coração, mais este acto de coragem, quaisquer que tenham sido os motivos que o determinaram (2).

À hora a que isto sucede, sabe-se também que se afastaram outros membros da JSN. Agindo no meio de diversos condicionalismos, depressa essa Junta revelou a sua impotência para atalhar o curso, aparentemente implacável, de um destino que, às vezes, se entretém a jogar com as pessoas e com os projectos que elas levantam. E a alma sebástica deste povo crédulo e simples, que a recebeu numa alegria desbordante, via esfumarem-se os seus luminosos anseios.

A incerteza torna-se angustiante e inquietante, porque se receia ouvir os últimos pregões desta almoeda baixa e desonrosa. Portugal despontou pelejando, e cimentou-se com sangue de mártires e heróis; querem, agora, os desnaturados que ele se suma em hasta pública ao som triste de uns dobrões de metal.

A acção deletéria recebida com a complacência de um escol decaído, que se ia demitindo das suas mais ingentes obrigações, quase perverteu o génio da raça. Porém, uma centelha de esperança bruxuleia ainda.

Os chefes nascem com mais facilidade de uma comunidade não roída do germe da corrupção. Mas não fossem as excepções a esta regra e não haveria povos a ressurgir das cinzas em que parecem ir sepultar-se.

A Nação tem de acordar do letargo em que a prostrou a eloquência salivosa que a fúria jacobina de tribunos demagógicos e irresponsáveis lhe vem lançando! A Nação, abafando o temor da ameaça de uma democracia que, para não variar, cala as vozes que a perturbam, tem de erguer-se sobre a reserva moral que nela reside e que, em épocas de crise, sempre soube encontrar.

E não desdenhemos, nesta campanha de resgate, socorrer-nos do tesouro precioso da Tradição.

A Tradição vem-nos do passado; é o tempo que no-la traz, como resto de tudo o que de positivo já existiu e não pereceu. No seu culto desenvolve-se o amor da Pátria, no que esta tem de melhor do legado de valores espirituais, que recebemos e devemos transmitir.

Deste património nunca somos proprietários, mas apenas administradores. Aqueles que constituem a geração viva não formam mais que os pilares da ponte que permite o abraço entre as gerações passadas e as vindouras. Assim se processa a passagem do testemunho, facho sagrado que alumia o caminho. O sopro, que procura apagá-lo, é criminoso ou demente.

A Tradição é a história que anda no coração do povo e a nascente donde jorra o imenso caudal de energias, de que ele se alimenta para continuar no tempo essa história sentida.

VIVA PORTUGAL!

Luanda, 30 de Setembro de 1974

Joaquim Maria Cymbron
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  1. A náusea derivada da traição levou-me a um juízo de algum exagero a respeito das instituições derrubadas: vivia-se, realmente, um sistema híbrido, mas no qual o suspeitíssimo sufrágio universal era travado por outros mecanismos, o que anulava os efeitos da sua heterodoxia. A distância no tempo leva-nos a um maior equilíbrio.
  2. Sobre Spínola e a renúncia ao cargo que exercia, o que escrevi explica-se pelas notícias confusas  que, naquele ambiente de fogo, me iam chegando umas atrás de outras. Hoje, se a situação se repetisse e estando mais próximo do acontecimento, é possível que o não atacasse, mas certamente não escreveria o mesmo!
JMC