sábado, 26 de dezembro de 2009

O REI DOS REIS

O homem não deve arrogar-se a majestade que só a Deus cabe. E, ainda que o quisesse, jamais poderia alcançá-lo. Daí, as aberrações dos regimes imbuídos de totalitarismo, seja ele império de autocratas ou o paganismo das maiorias democráticas.

Mas se o homem não é capaz de se tornar Deus, já pode Deus fazer-se homem. Esta é a sublime grandeza do Natal, quando Deus, na Sua infinita misericórdia, desce à Terra e sagra o humilde recanto de um presépio. Sem se despojar da Sua natureza divina, não desdenhou ligar a Si a condição humana, habitando entre nós, para que, por este mistério da Encarnação, seguida da Sua Paixão e Morte e, por fim, da Sua triunfal Ressurreição, nós pudéssemos de novo habitar junto d' Ele.

Depois da desobediência de Adão, operou o Verbo feito carne para nos restituir a vida da graça perdida com o pecado. O Natal de Cristo é, pois, o ponto de partida para um segundo Génesis da Humanidade. Deus criou-nos duas vezes com vocação à Sua imensa glória: no «estado (...) da quieta e da simples inocência» (1), porque bonum est diffusiuum sui; na cruz lavada com o Seu sangue, porque nos ama com loucura!

«Tu dicis quia rex sum ego. Ego in hoc natus sum, et ad hoc uenio in mundo, ut testimonium perhibeam ueritati: omnis qui est ex ueritate, audit uocem meam.» (2) Nascendo em Belém, pagando no Gólgota a nossa culpa, ressuscitando ao terceiro dia, o Rei dos Reis confirmou-nos a Boa-Nova de um Reino que «non est de hoc mundo» (3).

E que dizer dos Reis deste mundo? Principalmente, do mundo que mais nos deve interessar --- Portugal?

A vida da graça, em política, chama-se Tradição, porque só a Tradição encerra a verdade. E foi da verdade que Cristo deu testemunho, sofrendo e morrendo por causa dela. Fora da verdade, portanto, não há salvação possível.

Que nenhum príncipe português aspire a reinar sem percorrer um longo e duro calvário, preço a que não há-de furtar-se caso queira exercer o mester de Rei.

Como dizia o grande Vieira, «a pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena.» (4) Áulicos, sempre os Reis os terão por perto. Enxameiam nas cortes de todos os soberanos. Mas não lhes falam verdade: dizem só o que afaga a vaidade ou a concupiscência do príncipe. Também o Diabo tentou Cristo com as pompas deste mundo: «Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraueris me.» (5) Sob as mesmas miragens, continua a sua obra procurando seduzir os que têm a seu cargo o governo dos povos. Pervertidos os chefes das nações, a ordem natural, querida por Deus, é gravemente atingida --- a prova, temo-la debaixo dos olhos! E, deste modo, satisfaz o Demónio a sua sanha maligna.

A Nação Fidelíssima suspira ansiosamente pelo seu resgate e, por isso, aguarda o Rei. Um Rei que, à semelhança do Redentor do género humano, tenha clara consciência de que o ofício de reinar não se constituiu para vanglória do seu titular, mas sim para serviço da grei. Um Rei que entenda a lição de S. Paulo, quando o Apóstolo exortava Timóteo nestes termos: «(...) praedica uerbum, insta opportune, importune: argue, obsecra, increpa in omni patientia et doctrina. Erit enim tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt, sed sua desideria coaceruabunt sibi magistros, prurientes auribus, et a ueritate quidem auditum auertent, ad fabulas autem conuertentur.» (6) Um Rei, enfim, sabedor de que Portugal pode perdoar muito aos seus monarcas, mas não desculpa a felonia nem tolera que algum deles exalte os traidores!

O Salvador libertou o mundo com a verdade; Portugal, se quiser encontrar o caminho da restauração, terá de buscar arrimo na Tradição, depósito da verdade ontológica, logo, também da verdade política. E a Tradição rejeita farsas, especialmente se trazem máscaras de monarquia.


Joaquim Maria Cymbron

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  1. Lus., IV, 98, vv. 5-6.
  2. Io. 18, 37.
  3. Ib. , 18, 36.
  4. Sermão da Sexagésima, X.
  5. Mt. 4, 9.
  6. II Tim. 4, 2-4.

JMC

sábado, 19 de setembro de 2009

O MAL MENOR


A teoria do mal menor é uma teoria válida. Mas de que muitas vezes se abusa com grande impudência.

Rarissimamente, na qualidade de elemento do povo soberano, usei o direito de escolher o vassalo que me havia de governar. Quer dizer: votei muito poucas vezes.

Se bem me recordo, desde o 25 de Abril, fi-lo ao todo umas seis vezes: duas foram contra o aborto; e as outras quatro deram-se em dois momentos distintos, porque decorriam simultaneamente legislativas e autárquicas, e mais tarde, legislativas e europeias.

Contra o aborto, votei porque se decidia claramente entre civilização e barbárie; nas outras, agi ao sabor da teoria do mal menor.

Na defesa da vida intrauterina, como muitos outros Portugueses, saí derrotado porque o Governo resolveu liberalizar o aborto, por via parlamentar, uma vez que a consulta referendária não fora vinculativa. Fez isto ao arrepio do que prometera. E já agora vem a talhe de foice lembrar o seguinte: desde 05JUL07, o Tribunal Constitucional tem, sob a sua alçada, um requerimento de deputados da AR, no qual estes pedem a declaração de inconstitucionalidade da Lei do Aborto, que o Governo promulgou com a perfídia já assinalada.

Das outras vezes em que votei, tive a confirmação de que a teoria do mal menor exige uma análise muito cuidada, antes de a aplicarmos. Trinta e cinco anos é tempo mais que suficiente para medir bem este melindroso problema. E ou achamos que já passou a altura de escolher o mal menor, ou pensamos que esse é o caminho. Num ou noutro caso, devemos extrair as ilações que se impõem.

Eu, como não sou democrata, não me atrevo a indicar ao povo soberano o rumo que há-de tomar. Limito-me a dizer: Portugal não se serve com o mal menor; Portugal é, logo abaixo de Deus, o maior bem que temos enquanto vivermos. E é um património histórico de tal grandeza, que temos de o recuperar de mãos usurpadoras, para o restaurar e deixar intacto aos vindouros.

Portugal espera o melhor de cada um dos seus legítimos filhos!
Joaquim Maria Cymbron

terça-feira, 18 de agosto de 2009

MANIFESTO CONTRARREVOLUCIONÁRIO


Este Manifesto é refundição do que, em 1978, foi editado como publicação unitária pelas Oficinas Gráficas da Casa Nun' Álvares, no Porto.



A REVOLUÇÃO MUNDIAL

Existe ordem dentro e para além do que o tempo conta e o espaço mede, ordem que realiza o exemplar divino.

A quebra dessa ordem é a Revolução. Como a primeira ordem, a mais perfeita e a mais importante é a de Deus, dizemos que a Revolução começou com a prevaricação angélica e chamamos revolucionários aos que imitam Lúcifer, continuando na Terra os atentados contra a majestade divina. Este é o grande processo revolucionário em marcha. Isto e não outra coisa é a Revolução que fustiga os povos, tem já muitos deles avassalados e se prepara para reduzir os restantes à mais abjecta escravidão.

Quando, nos tempos modernos, a Revolução começou a cavar os seus alicerces, não demorou a censurar o pensamento escolástico porque, em lugar do esforço continuado na procura intrépida do que é recto, ansiava por firmar solidamente a vitória do pecado contra o Espírito, queria assentar o reinado das trevas contra a luz. Esse reinado seria coroado por um dogmatismo mau porque não apresentava a firmeza da Verdade, mas sim a confusão do individualismo demagógico e a intolerância do autoritarismo, individualismo e autoritarismo que todos aqueles povos, onde começou por alastrar a Reforma --- os povos germânicos --- traziam dentro deles.

Não admira, pois, que a Revolução procedesse daquela forma uma vez que estava empenhada na inversão dos valores. E também não espanta que se tenha insurgido contra o célebre distinguo da casuística, em que eram mestres os membros da Companhia de Jesus, talvez o mais formidável baluarte que se levantou contra a heresia. É que o novo magister dixit não devia ser, como o antigo, entendido sempre de uma forma flexível, muitas vezes contrariado: tinha de possuir a rigidez do aço, não podia sofrer contestação. E o certo é que, com o tempo, isso se foi manifestando cada vez mais até vir a apresentar hoje proporções assustadoras, na tirania de uma filosofia que é uma autêntica filosofia de negação.

Quando dum pólo ao outro da Terra se ouve o som infernal da dialéctica que grita --- ''morte ao que foi criado!'' --- é forçoso convir que já não se trata de uma mera guerra entre nações, impérios ou até culturas. Temos de aceitar que não é possível teimar mais nessa ideia, porque tudo isso está ultrapassado, para se situar em plano diferente. E observamos então a luta intestina do que há de vil no homem com os ecos bons da sua consciência, o duelo da barbárie e da civilização, a revolta de Satã contra Deus.

A estratégia e a táctica da Revolução são delineadas por mentores astutos e têm os seus executantes. Como se distribuem? Deste modo:

A classe social mais numerosa é a dos acomodados e medíocres e essa é, por norma, conservadora: não entra no combate; quando muito é apanhada no meio dele. A que forma o estrato inferior está quase sempre, se não é que está sempre, aberta às teses revolucionárias. Esta, enquanto se vê insatisfeita, constitui a vanguarda de assalto, é ali onde se formam as tropas de choque. O estado-maior, por regra, acha-se nas camadas favorecidas. Parece que não deveria ser assim, mas torna-se facilmente compreensível, se atendermos a que a mola da Revolução está na sede de mando, na ambição, no pecado de soberba, de que nos fala a teologia, e só um escol pode alimentar tais sentimentos com alguma garantia de os ver concretizados.

Melhora-se deste jeito? Não, por certo! Sem custo se verifica que isto não é progresso, mas um contínuo agitar e que, em última análise, se traduz num recuo, um recuo assustador, um recuo a marchas forçadas.

Afigura-se-nos que isto vem sendo, de alguns séculos para cá, uma lei indesmentível da história. A Idade Média, apesar das suas imperfeições, surge como uma excepção, porque foi nessa época que as comunidades políticas melhor casaram o temporal com o espiritual de inspiração cristã.

A degradação permanente e progressiva da sociedade humana continuará, pois, a observar-se, enquanto a Revolução Universal se mantiver de pé, com os seus chefes mandando os soldados matar e morrer, e estes obedecerem tolamente porque, além de criminoso, é tolice que se mate e que se morra por uma causa contrária ao bem de todos em geral, e de cada um em particular. Se os homens continuarem a ser atirados uns contra os outros, cegos pelo ódio, sem outra finalidade que não seja a de revolver por revolver, torna-se fácil antever que estão cavando a sua própria destruição.

Tudo isto, que não é difícil prever, é sobretudo aflitivo. Há um estado de angústia que lavra com uma intensidade assustadora: uma parte da humanidade está animada de instintos exterminadores; outra, amorfa e inerte, parece alimentar dentro de si um desejo suicida. Que é a inquietante obra La barbarie à visage humain, de Bernard-Henri Levy, senão um grito de descrença no universal, uma tentativa de «penser jusqu'au bout le pessimisme en histoire» (1), como confessa o seu autor?

O perigo é real e tem de ser denunciado. A procela que se divisa no horizonte dos tempos futuros, num horizonte que pode estar lá ao longe, mas que também pode estar bem perto, virá a ser a mais medonha de quantas a história guarda memória.

Só uma doutrina na corrente da Tradição se lhe pode opor. A Tradição não se confunde com o conservadorismo porque é dinâmica: no plano metafísico, é o Ser rodeado dos seus atributos transcendentais --- Unidade, Verdade e Bondade --- apresentando-se assim como a expressão do acto passado e a potência de se tornar noutro.


CRISE UNIVERSAL

O mundo em que vivemos é presa da Revolução.

Rasgando e queimando as letras pontifícias, o desvairado Lutero entrava na corte do Príncipe onde a soberba e a luxúria são lei. Com a sua reforma, dividiu o mundo.

Contra a heresia, levantaram-se Portugal e Espanha, na altura ainda separados, mas logo a seguir numa união pessoal que contrariava a lei do dualismo político que deve presidir aos destinos da Península para defesa da civilização. Em 1648, os tratados de Vestefália reconhecem a vitória da nova ética. Foi uma Cruzada colossal que se perdeu por causas que escapam ao entendimento humano. Depois disto, acelerava-se a decomposição, e as pugnas travadas eram disputas no seio de uma família que havia perdido a noção de Deus. A ordem teocêntrica desaparecia totalmente, dando passo à dimensão vitoriosa --- a grandeza antropocêntrica.

Cerca de dois séculos de lutas tenazes eram esquecidos. O misticismo de Santo Inácio de Loiola e de Santa Teresa de Ávila; o apostolado de S. Francisco Xavier e de S. João de Brito; o arrojo de Colombo e de Vasco da Gama; a coragem de um Albuquerque e de um Pacheco, de um Cortês e de um Pizarro, tudo isso parecia sumir-se.

E o mundo que Portugal e Espanha criaram, movimentando-se dentro dos compromissos assumidos no Tratado de Tordesilhas, assinado debaixo de quem, antes da rebelião de Wittenberg, era a suprema autoridade no campo do ius gentium --- o Papa --- tornava-se alvo da cobiça de aventureiros e gananciosos.

O holandês Hugo Grócio, com a publicação do seu Mare Liberum, veio dar uma fachada de respeitabilidade ao que não passava de uma empresa de flibusteiros. A isto, opôs-se, no que respeita a Portugal, Frei Serafim de Freitas com uma obra de mérito colossal: De iusto imperio lusitanorum asiatico aduersus Grotii Mare Liberum. Mas contra a razão da força bruta tiveram de vergar as indignações justas de homens como aquele.

Apagavam-se os últimos traços da velha comunidade medieval, desse corpus mysticum que se erguera sobre os escombros daquilo que foi o Império Romano. E assim nascia outra sociedade de nações que, a todo o custo, quer continuar a identificar-se com a civilização cristã. Está errado!

Desde o início que o Cristianismo se espalhou graças ao apostolado de santos e mártires. Com a conversão de Teodósio I, o Grande, tornou-se religião oficial do Império Romano, que o mesmo será dizer daquela imensa parte do continente europeu sujeita à sua soberania. A partir daí, é lícito referir uma civilização cristã ainda depois da queda do Império Romano do Ocidente, porque os invasores bárbaros se arvoraram em continuadores da cultura romana, e aqueles que professavam religião diferente, mais cedo ou mais tarde, vieram a abraçar o Cristianismo. Fazia então sentido o uso trivial das palavras civilização cristã paralelamente à de Europa, uma vez que Europa e Cristandade se confundiam quase por completo.

Porém, com a reforma protestante, essa civilização deslocou o seu ponto de gravidade e pousou para cá dos Pirenéus: os seus missionários foram Portugal e Espanha. Por conseguinte, ou a Europa volta a ser cristã, ou acabe-se de uma vez com o mito de que a civilização cristã é também a do Ocidente, visto que do Ocidente é a Europa, e esta escancarou as portas à Revolução, precisamente nos séculos XVI e XVII.

O tempo andou e logo chegou o Iluminismo trazendo o culto de uma razão especial, a razão divorciada da Fé. Em política, íamos ter o despotismo esclarecido. Era o corolário lógico do poder real absoluto proclamado pelos países protestantes, cujos chefes, desde a ruptura com Roma, negavam qualquer obediência ao Papa. Essa ideia estendeu-se, e a ela também não escaparam os príncipes católicos, educados nas doutrinas cesaristas do direito romano justinianeu, e que recebiam agora a influência nefasta do ateísmo enciclopedista.

Já a Revolução Francesa se anunciava. Quando esta explode, solta-se a fúria jacobina, que vai alastrar, por toda a Europa, os erros de uma liberdade, de uma fraternidade e de uma igualdade que não são as do Evangelho.

Com a derrota de Napoleão em Waterloo, três de entre as potências vencedoras --- Áustria, Prússia e Rússia --- projectaram anular o clima revolucionário, formando entre si aquilo a que deram o nome de Santa Aliança (destas três nações só a primeira era católica, apostólica, romana). Em vão o fizeram. O esforço mostrava-se inútil --- o processo não se detinha, porque não era possível detê-lo senão em bases verdadeiramente contrarrevolucionárias.

O liberalismo e a democracia passeiam de triunfo em triunfo. No dealbar do século XX, assiste-se a uma tentativa serôdia de decalcar Waterloo --- os impérios centrais insurgem-se contra a ordem maçónica, carregada com tintas da belle époque. São esmagados.

Duas décadas depois, é um eixo de países, muito afastados da ordem tradicional, que se erguem, procurando derrotar o contubérnio formado por uma democracia relapsa na nostalgia de um passado de quimeras, e por um totalitarismo bem actual --- o comunista. Perderam.

Hoje, de alto a baixo e de uma ponta à outra, estamos sufocados pelo materialismo. É que a Revolução não parou nos conceitos de 1789. Para o espírito que a anima, isso seria muito tacanho: segura e pertinaz, ela procura levar os princípios às últimas consequências.

Não se arriscará muito ao dizer que, dentro de algum tempo, na monstruosa termiteira humana, onde ameaça ir dar a sociedade próxima, se poderá ouvir um aflitivo bradar às armas, em nome da defesa do género a que pertencemos, contra um perigo comum, sabe-se lá de que espécie. Assim realizará a Revolução a sua tarefa, porque os seus atrozes desígnios cumprem-se com a degradação constante de valores até ao esgotamento final.

A esta prática assassina, responde-se com a Contrarrevolução!


PORTUGUESES E CONTRARREVOLUCIONÁRIOS

A Contrarrevolução, em Portugal, terá de ser levada a cabo por Portugueses que sejam também contrarrevolucionários.

Como contrarrevolucionários, é nossa obrigação combater os que seguem Satanás, primeiro de todos os revolucionários, com prioridade de origem e também de condição; enquanto Portugueses devemos rejeitar as traições inomináveis que afundaram a Pátria.

Proclamemos como fim supremo do homem o dar honra e glória a Deus. Muito diferente, portanto, do que situá-lo e reduzi-lo ao próprio homem, segundo a tendência pagã, ou na sociedade, a exemplo de experiências passadas que agora se querem repetir pintadas de outras cores.

Para isso, reconheçamos a necessidade de uma ordem temporal que há-de ajudar o homem a ordenar os seus actos para o Bem teleologicamente apetecível. Nesta missão, a Política, sem qualquer sujeição institucional perante a Igreja, não poderá, todavia, ofender os princípios sagrados da Religião.

A Política regula coercivamente a vida do homem em sociedade. A Religião dá mais: oferece ao homem os meios necessários para alcançar a vida eterna. Mas, como esse prémio se ganha na Terra, é absolutamente compreensível que a Religião sirva de norma negativa à Política, isto é, que lhe marque limites morais, e que a Política adquira sentido religioso, ou que, por assim dizer, se santifique.

Em consequência, sustentemos a grandeza da Política, no ápice vertiginoso da cidade terrestre em direcção à cidade de Deus, se, na sua vigência, governar bonum faciendum, malum uitandum. E, ao defender esta visão da Política, rechaçamos aquilo a que, na ordem temporal, se pode classificar como erro do indiferentismo e do latitudinarismo. É o seguinte:

Para alguns, certos povos são fatalmente ingovernáveis, qualquer que seja a forma, sistema e regime político. Isto é notoriamente um erro, mas não se julgue, como muitos outros fazem, que todas as políticas são eficazes desde que os homens sejam honestos.

Sendo os homens honestos, as leis não seriam necessárias! É tempo de nos convencermos que a Política é uma arte valiosíssima e um instrumento precioso de auxílio à salvação espiritual do homem. E, portanto, de que não é indiferente a Política que se segue. De modo, que é imperioso desenvolver todos os esforços na busca da política mais perfeita. A qual, inevitavelmente, se tem de conformar à verdade ontológica.

Não deixemos que nos invada a presunção sacrílega de nos encontrarmos na posse da verdade absoluta. Nenhum homem a atinge. Sabemos, no entanto, que ela existe e, por isso, recusemos admitir que seja negado tudo quanto formos proferindo com verdade lógica.

Concluindo: há matérias em que é legítimo formular verdades; e outras que comportam opiniões caindo dentro da zona do mais ou menos provável. Em Política, não devemos ter mais que um dogma: obediência escrupulosa aos primeiros princípios da metafísica.

Daqui, partamos para o nosso ideário:


NA TORRE DE BABEL

Um ordenamento político não se imita. É um ponto aprimorado de velhas usanças e costumes antigos que, em tempos recuados, nasceram e romperam caminho, vindo sempre a ganhar as lições do magistério infalível da história. Venerando o passado, uma constituição política desta natureza está aberta à evolução, na qual se integra com esperança. Produto histórico, de uma história depurada das suas excrescências más, sobreleva todas as demais porque é autenticamente nacional.

Infelizmente, entre nós, não o entenderam assim os arautos do liberalismo, fiéis aos princípios burgueses da Revolução Francesa. E abateram, sem piedade, o tronco das vetustas instituições políticas portuguesas. Mas a origem do mal devemos ir buscá-la mais atrás.

Quando o Humanismo, na sua pagã soberba, derrubou a construção laboriosa da Escolástica, iniciou-se uma revolução de tal maneira grande que assinalou o fim de uma época --- a Idade Média --- para dar começo a outra --- a Idade Moderna.

A primeira fase desse processo oferece, como marco relevante, a reforma de Lutero, reforma falsa que teve consequências trágicas.

A Fé era calcada pelo naturalismo. O Concílio de Trento, purificador, não conseguiu apagar a Confissão de Augsburgo. A metafísica começava a ser moldada sobre a moral, segundo os ditames a que, mais tarde, Kant daria forma invertendo o sentido que era necessário respeitar. Em suma: a heresia estrangulava a ortodoxia.

Essa derrocada espiritual era, como não podia deixar de ser, acompanhada de grandes alterações no quadro jurídico-político. A Revolução Mundial, compelida a um papel modestíssimo por uma época de religiosidade intensa e profunda --- a Idade Média --- retomava em força a sua marcha. Caía um edifício, onde havia decoro, para em seu lugar se levantar o prostíbulo da orgia e da devassidão.

Non seruiam! O grito medonho do frade agostinho estalou, rotundo e sonoro, sobre todo um continente, acompanhado do desabar apocalíptico de hábitos, de sistemas e até de impérios. Lançada a dúvida sobre o sentido precioso da Revelação (que só à Igreja de Roma cabe definir), atacada a Verdade no seu bastião terreno mais sagrado (esta mesma Igreja, a Igreja de Pedro e dos seus legítimos sucessores), tudo ruía.

Em França, desponta Descartes e a subversão faz avançar vitoriosamente mais uma das suas alas. O entimema que o filósofo francês enunciou como ponto de partida válido na actividade do conhecimento, tem de assentar forçosamente sobre outras certezas naturais que se alcançam sem antes duvidar delas, sob pena de se entrar num processo interminável para não acabar no mais pirrónico cepticismo. O pretenso equilíbrio proclamado pelo autor do Discours de la méthode, para ser coerente, conduz à esterilidade; e, se quer fugir a esta, enferma de contradição.

Depois de Descartes, não tardariam a surgir os profetas ardorosos da teoria do rei-filósofo. Os enciclopedistas, com as suas tramas, davam origem ao despotismo iluminado e, com isso, provocavam um movimento natural de oposição. Esse movimento, predispunha os espíritos a aceitar, em lugar daquele despotismo, a soberania ilimitada do povo debaixo da tutela de uma minoria esclarecida, germe daquilo que, mais de cem anos decorridos, foram os partidos únicos.

Porém, a Revolução sabe que, na mudança, quanto mais lentamente se progride, mais seguro é o seu avanço. Por isso, deixou a turba enfurecida sair do proscénio e subir à ribalta: a nau do jacobinismo enfunava as velas aos ventos da loucura para singrar numa rota destruidora. Com a lâmina das suas guilhotinas, o aço das suas baionetas e as balas dos seus canhões tintas no sangue do povo que dizia salvar, a Revolução andou mais uns passos e apareceu acobertada nas roupagens do liberalismo.

Em 1789, saída da Bastilha, a França decapitou o seu Rei, a Rainha, gente do clero, nobres e até populares. E mesmo dentro das suas fronteiras, fez da Vendeia um cemitério. Alguns anos depois de a cabeça de Luís XVI ter tombado de cima do cadafalso, Napoleão, à frente das suas tropas, vestia à Europa quase inteira, o figurino político dos convencionais. Carrascos da Legitimidade, os seus batalhões pisaram nações, acabaram com dinastias e mudaram governos. Da ponta das suas espingardas gritavam ao mundo a aurora de uma era de paz e de amor, mas atrás deles só deixaram um rasto de sangue, miséria, dor e revolta.

Esse individualismo feroz e dissolvente que nos trouxeram, em nada é nacional. E os direitos de importação que já pagámos --- burlas, revoluções e lutas civis --- são imensamente superiores a qualquer lucro que, por equívoco do destino, possamos ter arrecadado.

Na voragem de um desengano utópico sumiu-se o melhor e mais intenso labor de uma empresa de esforços sem limites postos ao serviço da Fé. E, em seu lugar, ergueu-se um conjunto de preceitos, que lançaram os homens para um reino onde muitos se terão já perdido e outros correm risco de igual sorte. O mundo, que se nos depara, frenético, retaliado e posto a saque, é o desgraçado desfecho das proezas sinistras de duas novas hordas de bárbaros: o capitalismo infrene ou o comunismo, um e outro filhos espúrios dos amores incestuosos do liberalismo maçónico com o racionalismo cartesiano.

No século passado, quando Hegel foi erigido em pontífice e a dialéctica aclamada como dogma, a Revolução abeirou-se do ponto em que agora se encontra.

Da dialéctica do pensador de Estugarda à dialéctica materialista de Marx, viciada por um erro de análise e, depois, às doutrinas dos regimes totalitários das mais diversas cores, foram curtos passos. Pelo meio, a Revolução foi recrutando os escravos de que precisava nas massas, palavra que diz bem quanto se alcançou no domínio do aniquilamento da personalidade humana. O socialismo era a bandeira que agitava, um socialismo que, das cátedras onde começou por ser ministrado teoricamente, desceu à rua e levou os magotes de desenraizados a formarem atrás das barricadas, num grito de extermínio, mas sem compreenderem que constituem um exército suicida. Ultimamente, fiel à sua matriz filosófica, a Revolução já não se detém nas desigualdades económicas e socais, buscando tirar partido de todas as diferenças que existem: religiosas; nacionais; de raça; e até de sexo. Descobriu, assim, os novos pecados capitais: fundamentalismo; xenofobia; racismo; e homofobia. A mentalidade do Progresso Indefinido passeia ufana e vai arrecadando os seus lucros pela tibieza e pelo quase total silêncio a que conseguiu reduzir a filosofia do Ser.


O LOGRO DA DEMOCRACIA

Hoje quer-se, a todo o transe, louvar a Democracia. É já uma contumácia velha. Nos ouropéis de uma linguagem estafada, os amoucos do número enredam tudo e, com os seus juízos especiosos, subvertem a razão de muitos.

A Democracia, que alastrou pelo mundo e tritura os valores morais, encarniçando-se especialmente contra os valores que informaram a civilização cristã, essa democracia criminosa tem as suas raízes mais directas em Jean-Jacques Rousseau.

Rousseau firmou num pacto a origem da sociedade política (2) e garante que esse pacto é a única lei que «par sa nature exige un consentement unanime» (3), e que «est elle-même un établissement de convention, et suppose au moins une fois l' unanimité.» (4)

Há os que apresentam essa convenção como uma verdade histórica (mistério insondável este de um pacto antes da vida em sociedade!); outros contentam-se em chamar-lhe simples verdade normativa. O caso que devemos fazer desta verdade normativa, já se verá como nada vale pelo que viermos a dizer da verdade histórica.

Se é uma verdade histórica, afiançamos que não podemos testemunhar a seu favor porque a ela não assistimos, nem dela temos qualquer notícia através de fonte fidedigna --- seria um depoimento indirecto o nosso e, como tal, mesmo que o quiséssemos prestar, de valor probatório muito reduzido.

Mas, como verdade histórica (o que já se viu que não concedemos e porquê), ainda nos interrogamos porque há-de vincular gerações que não foram ouvidas; simples verdade normativa, inquieta-nos a ideia de que ela possa traduzir a vontade de maus e de inúteis. Perguntamos, então, se nessa declaração estão englobados os votos dos incapazes e dos indignos. Se estão, que há a esperar de tamanho absurdo? E se não estão, como é razoável presumir, quem tem autoridade para excluí-los? Com base em que lei se pronunciará esse juiz? (5)

Estas perguntas clamam por uma resposta inequívoca. Mas essa resposta não virá. Ou se aceita que essa lei foi elaborada autocraticamente, o que anula o mais sagrado da doutrina, a sua quinta-essência, ou não se consegue evitar a petição de princípio.

O filósofo genebrino desenvolveu um sistema sem forma natural: é uma aberração. E como todas as explicações sobre Democracia, que se seguiram à de Rousseau, com matizes mais ou menos carregados, andam à volta do mesmo, caem debaixo de igual crítica. Apesar de tudo isto, sempre aparece quem exclama: Ah, a Democracia! Isso é o ideal, esse é o sistema por que se governam as sociedades mais adiantadas do mundo.

Não perderemos tempo a fixar o que é progresso: convenhamos que é o dessas sociedades. Também não nos deteremos, agora, a provar que a Democracia é um absurdo e que esta conclusão tem a universalidade e a necessidade de tudo que é metafisicamente certo (6): aceitemos que ela é o que apregoam os seus prosélitos. Por fim, não pediremos que nos demonstrem se a Democracia é causa ou o triste efeito do suposto grau de civilização das sociedades onde é lei. Nada disto, que é de importância extrema, deve agora ser objecto do nosso cuidado.

Neste momento, basta analisar o seguinte truísmo:

Se a Democracia é a panaceia dos males políticos, por que razão existem povos que não se dão bem com ela? E a resposta costuma ser --- Porque esses povos ainda não estão maduros para a Democracia! (7) É uma resposta clássica, mas é também uma resposta estúpida.

É de uma imbecilidade pasmosa dar semelhante resposta porque, ou a Democracia existe para que viva a comunidade e, se não serve, temos de afastá-la; ou vive a comunidade para que a Democracia tenha existência, o que significa converter o meio em fim. E mesmo que seja um fim relativo, o mero acto de preparar o povo para a Democracia contradiz, em absoluto, a sua decantada soberania.

E, ao tocar na soberania popular, dá-se uma volta completa e regressamos ao ponto fulcral.

O maior pecado da Democracia, pecado mais grave do que confiar os negócios públicos a incompetentes e medíocres, pecado pior do que a refinada mentira da sua representatividade está, precisamente, no postulado da soberania do povo, de um povo que quanto mais o tentam definir, mais se nos escapa a sua verdadeira imagem.

Esse postulado é, no mínimo, cretino. Formulado intencionalmente é um atentado contra a inteligência: já vimos como essa argumentação se perde num processo até ao infinito ou, então, tem de negar-se a si mesma.

Com efeito, afirmámos isso e sustentamo-lo. Afirmámo-lo com carácter geral e abstracto depois de analisar factos concretos, que nada têm a ver com o que se passa agora em Portugal. Isso são os efeitos e estes são variáveis, com o tempo e com o lugar. Aquilo sobre que nos debruçámos foram as causas ou razões últimas da Democracia; não nos contentámos com um estudo superficial, mas procurámos entrar num exame filosófico desta questão. Então, observámos que a sua essência está no sufrágio universal. E aqui é que dissemos e repetimos: a Democracia é um absurdo e esta conclusão tem a universalidade e a necessidade de tudo que é metafisicamente certo.

Expomos a ideia em forma de silogismo para depois demonstrar:

Tudo aquilo que não evita a petição de princípio é de repudiar; ora a Democracia não evita a petição de princípio. Logo, a Democracia é de repudiar. Ou, então, se o quisermos: Tudo aquilo que envolve contradição é um absurdo; ora a Democracia envolve contradição. Logo, a Democracia é um absurdo.

Que não evita a petição de princípio ou que envolve contradição já o provámos atrás. Mas agora voltamos a fazê-lo com um exemplo bem eloquente até porque bateu em cheio no peito do povo português:

Na realidade, a máquina democrática, para se pôr em movimento, exige um impulso que é o princípio de razão suficiente (ou a sua causa eficiente) e esse princípio, insistimos uma vez mais, ou faz cair num ciclo vicioso, ou, para lhe fugir, não é democrático. Em Portugal, o regime instaurado é obra do MFA, esse movimento ao qual Adriano Moreira chamou Novíssimo Príncipe e foi quem empurrou os eleitores, aqueles que ele quis, até junto das urnas, para votarem nos partidos e só nos partidos em que ele consentiu. O MFA, pois, é que foi o autêntico soberano. E noutros países e noutras ocasiões, também a extensão e a liberdade do voto sempre estiveram condicionadas: não vota quem quer, nem se vota em tudo o que se quer.

Por outro lado, a Democracia é, ou uma hostilidade aberta, ou a mais acabada deslealdade. Já veremos porquê:

Dos tempos da Revolução Francesa para cá, especialmente desde aí, que o espírito de luta de classes é uma realidade, triste mas irrefutável. Este antagonismo não é certo porque Marx ou Engels o disseram; um e outro limitaram-se a assinalar uma verdade.

Na sua estratégia, a Revolução pôs a um lado os que ela designa por explorados e, do outro, os que considera serem os exploradores. Deste modo, aproveitou uma divisão, que não pretende resolver, mas da qual espera servir-se para instalar a anarquia, único objectivo que a anima.

Ora se a Democracia consiste no governo do povo, e uma vez que o povo é formado por facções que, presentemente, se encontram separadas por um antagonismo aceso, a escolha democrática provoca forçosamente um destes dois resultados: ou vitória da animosidade, ou traição aos interesses de classe. Daqui não se foge. Esperar a cura dos males da Democracia pela mesma Democracia, é ter a ilusão de que um cérebro demente se pode tratar a si mesmo por forma satisfatória.

Já nos tempos recuados da antiguidade, Platão colocava a Democracia como prelúdio da tirania (8). Também o achamos. Há a tendência fácil da pretensa soberania popular se achar ilimitada, depois que se viu convertida em objecto de idolatria. Dois dos seus mais estrénuos paladinos --- Hobbes e Rousseau --- permitem-nos verificar que assim é, pois as doutrinas por eles proclamadas levam à mais completa subordinação da pessoa perante a máquina estadual.

Os liberais destruíram a verdadeira representação nacional (viva nas antigas Cortes portuguesas, de iure apenas consultivas, mas que funcionavam com muito maior eficácia prática que os deliberativos parlamentos que vieram depois), mataram essa representação e tentaram colocá-la nos partidos, nesses bandos destinados ao assalto do poder e cuja sorte é ditada pelo capricho das urnas.

Que fazem os partidos? --- Arruaças e desatinos. Esgotam-se a adular as multidões e o resto não lhes causa preocupações de maior. Na luta permanente que travam para a hegemonia política curam mais dos expedientes para conquistá-la ou mantê-la do que dos verdadeiros problemas nacionais. Para eles, governar é um prazer egoísta que se exerce com exclusão dos demais. Sobem ao poder com a consciência plena de que o seu triunfo é efémero caso não se guardem devidamente. A sua ânsia é aguentarem-se; não lhes sobra tempo para traballhar.

E o povo dito soberano, como reage? Qual a atitude dos homens que o compõem? --- Bem, cada um desses, agraciado com o pomposo título de cidadão, mas simultaneamente relegado para a categoria inferior de indivíduo, lá segue com o papel mirífico na mão, sem medir bem que, ao depositá-lo, passa um aval de confiança a gente que, de todas as ridentes promessas lançadas da boca, nunca irá além daquilo que pode, fará apenas o que quiser e cairá, amiúde, no que não deve.

Nunca o povo andou tão empavesado de soberania, como agora; nunca, como hoje, ele foi tão pouco atendido!


DIREITA-ESQUERDA (DILEMA FALSO)


A divisão direita-esquerda, que parece a estabelecida pela Cruz Redentora, ganhou tragicamente razão de ser depois que, com a Revolução Francesa, se viveu outro Calvário --- o da Legitimidade do poder temporal.

Nessa altura, direita era sinónimo de Contrarrevolução e esquerda queria dizer Revolução. Mas porque se cingia a um pormenor de circunstância --- a colocação relativa dos representantes da ordem derrubada e daqueles que defendiam os imortais princípios --- sumiu-se. Hoje, direita e esquerda são os dois sentidos que se podem escolher numa direcção única --- a revolucionária. E a antinomia é penosa porque este campo é campo da Revolução.

Quando se radicalizam as posições desta linha, se a extrema-esquerda é o inferno, não podemos, não devemos, nem queremos esquecer e ocultar que a extrema-direita não é a Contrarrevolução. O sufrágio universal deu nisto: assembleias de irresponsáveis ou regimes totalitários. Num caso e noutro, Revolução!

A questão torna-se angustiante, porque a mentalidade revolucionária conseguiu instilar o veneno a tal ponto que se crê que a única resposta possível, à demagogia dos parlamentos, reside no predestinado, no homem carismático, enfim, no poder pessoal que é efémero como a vida humana. Passa com a morte do seu titular.

Este estado de espírito corresponde plenamente aos objectivos pretendidos pela Revolução: a balbúrdia criada pelos areópagos democráticos, acaba muitas vezes na ditadura, quando interessa iludir o povo com a miragem de um oásis de paz. E sempre que as ditaduras, em lugar de recurso de excepção, se tornam regra, temos os césares, os quais, a par dos governos de fancaria de que derivam, são símbolos que encarnam a Revolução nas vestes que ela ultimamente vem exibindo: as do totalitarismo!

Ante o avanço do bolchevismo, nas primeiras décadas do século XX, deu-se na Europa a explosão de nacionalismos destemperados, como já cem anos antes estiveram de moda os nacionalismos românticos gritando, sem nexo, hinos à trilogia da Revolução Francesa, ao mesmo tempo que maldiziam Napoleão e os seus canhões, numa raiva insensata e tola, uma vez que Revolução Francesa e Napoleão se completam. Com efeito, Napoleão não teria tido razão de existir sem aquela Revolução ou outra que espalhasse erros iguais, e a própria Revolução ficaria em nada, sem o cabo de guerra corso ou outro que a consolidasse (9). Mas calhou ser Napoleão: por isso, condenar este e aplaudir aquela, foi uma contradição.

Os nacionalismos exaltados do século passado não pecaram por incoerência formal. Porém, o totalitarismo em que desembocaram não se coaduna com a índole do nosso povo. A raiz política e filosófica daqueles regimes mergulha na doutrina de Rousseau e em autores germânicos como Fichte, Schelling, Hegel e Nietzche. Nada tem de nacional. Na nossa cultura católica, que foi alma de uma vocação de séculos, está a réplica a tudo isto.

Chamamos mais uma vez a atenção para a íntima relação entre Política e Religião. A luta é, fundamentalmente, movida contra a religião católica. O duelo trava-se entre o credo sublime ensinado pelo Filho do Homem e a fúria assoladora do Anjo Rebelde. Todas as revoluções políticas são consequência do desejo de atacar a verdade conhecida como tal. São um pecado contra o Espírito Santo e, por consequência, assumem carácter eminentemente religioso.

A ordem justa é desejada por Deus. Os seus titulares são, pois, vigários de Deus na esfera do temporal e, assim, um atentado contra a ordem que eles encarnam, ou contra eles, por aquilo que representam, é um atentado contra Deus. Esse atentado será, portanto, um delito temporal e é da alçada do braço secular, embora nunca se deva perder a ideia do seu conteúdo religioso.

Não se identifique isto com qualquer forma hierocrática no exercício do poder. Nós defendemos que se possua da Política uma noção particularmente viva da sua teleologia espiritual, o que não se confunde com a sacralidade do regalismo iluminista, nem com a que foi moda nos países atingidos pela reforma protestante, ou ainda, com o modelo da Rússia czarista, herdado do velho Império de Bizâncio.

Dissemos nas linhas iniciais que, hoje, direita e esquerda são os dois sentidos que se podem escolher numa só direcção --- a revolucionária. Esqueçamos essa via. E avancemos direitos ao instrumento de suplício onde, no Gólgota, padeceu e morreu a Humanidade d' Aquele que é a Verdade. Façamos da Cruz de Cristo o nosso mais alto pendão!


AS LIBERDADES ROUBADAS

Oliveira Martins, naquela que é por muitos considerada como a sua obra paradigmática, escreveu o seguinte: «O velho espírito português encarnara, com efeito, na alma do infante, cuja soberania foi a última genuinamente histórica.» (10).

Não se podia encontrar síntese mais bela para definir a figura excelsa de D. Miguel, tipo puro de católico, verdadeiro exemplo de português, que sacrificou a fazenda, desdenhou honras vãs e arriscou a vida tentando reconduzir Portugal à sua rota histórica.

Debalde o fez: foi o liberalismo que acabou por triunfar. A fera saía da jaula e dava largas aos seus instintos selvagens --- triturava, nas garras da sua brutalidade, quanto pela frente encontrava e podia estragar-lhe o banquete em que procurava cevar a sua fome bestial.

Évora-Monte assinalou a vitória das ideias que se puseram em voga sopradas pelos ventos de França. Essas ideias, que esvoaçaram ao lado das águias napoleónicas, lançaram o mundo numa insânia com o regresso à lei da selva. O tríplice princípio --- liberdade; fraternidade; igualdade ---, segundo a cartilha francesa, ia semear os ódios mais sanguinários e a escravidão mais aviltante. Da confusão anárquica dos seus enunciados, que resultou? --- O revolver de um mundo para vir outro muito pior, onde se assiste à diminuição numérica dos poderosos, acompanhada do extraordinário aumento da sua força, no meio de uma pobreza mais extensa e mais escandalosa. A melopeia da igualdade jacobina serve à maravilha para gerar as maiores iniquidades, pois o compasso dessa música é o que melhor se ajusta à exploração, sem peias nem entraves, das desigualdades concretas.

Tratada por este modo, iria a pessoa humana ver seriamente comprometida as suas liberdades. Estas só existem onde se encontrem delimitadas e acatadas as diferenças. Não observar as diferenças naturais leva à submissão mais degradante e com isso se avança no sonho pérfido da sujeição da humanidade quase inteira a um reduzido núcleo de senhores --- a sinarquia judaico-maçónica.

A partir dos finais do século XVIII, a rasoira da Revolução proclamou, em força, o primado do indivíduo sobre a sociedade, aniquilando aqueles grupos naturais, onde se encontravam albergadas as garantias fundamentais. Esses grupos constituíam os corpos intermédios. E, por cima deles, o Rei colhia os votos dos procuradores, pesava-os e, investido de um poder, independente na ordem política, mas moralmente limitado, decidia. Hoje as sociedades, depois de duros golpes, apresentam-se atomizadas, e o homem, reduzido a um isolamento assustador, está à mercê desse Leviatão que, há bastante tempo, vem sendo o Estado.

O mal, porém, é antigo. Deitou raízes com a dialéctica falaz dos humanistas e foi crescendo e fortalecendo-se com o tempo. Entre nós, é o verbo inflamado de João das Regras que, veículo do direito de Pisa e de Bolonha, introduz a ideia absolutista do poder real. O chanceler de D. João I, matreiro, perfeitamente sabedor do modo como havia de utilizar o direito para alcançar os fins pretendidos, cortou nos privilégios da nobreza, sufocou as autênticas liberdades populares e, com isto, lançou as bases do cesarismo.

D. João I abriu, em Portugal, uma época a todos os títulos nova. As circunstâncias particularíssimas da sua elevação ao trono permitiram ao astuto João das Regras exercer sobre ele fortíssima influência. Discípulo fiel dos mestres de Itália, o chanceler não se cansava de ensinar o Rei no sentido de que quod principi placuit, legis habet uigorem (11). E assim este monarca, fundador de uma dinastia, foi comparsa mudo de um processo tendente a neutralizar, sufocando-a nas suas isenções, uma classe que até aí fora elemento vivo no corpo da nação e factor de equilíbrio nas normais oscilações do poder político --- a nobreza. Com D. Afonso V ainda ela despediu os últimos clarões do seu antigo fulgor, para começar a agonia no reinado seguinte e acabar de estrebuchar sob o pulso férreo do tirano Pombal, quando em Belém, numa cinzenta manhã de Janeiro, o vento soprando espalhou o cheiro acre de uma hedionda matança. Extinto este braço da sociedade, instalava-se a monarquia cesarista, excesso tão revolucionário como os desmandos que haviam de sair dos imortais princípios de 89.

O trinómio --- rei, nobreza, povo --- expressava harmonia nos seus factores até que o segundo foi mortalmente atingido. O direito romano justinianeu, introduzido pelos legistas, que o iam buscar aos centros renascentistas, tirou força à nobreza, deu-a aos reis, ignorou as camadas populares e preparou assim o caminho do absolutismo cesáreo. Deitada a nobreza por terra, os reis já não precisavam ligar-se ao povo. Não tinham rivais: eram agora os únicos senhores, podiam exercer toda a espécie de prepotências. E o povo, um organismo privado dos seus naturais aliados, que se iam sucedendo no trono, ficou à mercê de todos os abusos sob um jugo cada vez mais pesado.

Mas os reis também vieram a morrer nas malhas do absolutismo. Se o povo tinha neles um amigo quando se sentia vexado ou oprimido pela nobreza, não é menos certo que os reis possuíam no povo um esteio se algum barão, atrevido e insolente, esquecia que eram os monarcas os primeiros entre os nobres --- daí a velha crença firmada na máxima de que, em Portugal, Rei e Povo sempre tinham andado de braço dado. Desfez-se o pacto: os reis deixaram de dispensar protecção ao povo; e o povo, um dia, foi atirado contra os seus defensores de outrora.

A Revolução começou por decepar um dos braços do Estado. Não tardaria a cercear as regalias e liberdades administrativas e profissionais. Costume e forais ficavam sepultados debaixo da pesada pedra que é a lei elaborada em nome da soberania popular. O costume é uma das fontes de direito que a ciência jurídica e política reconhece. Os romanos definiam-no como um tacitus consensus populi, longa consuetudine inueteratus. Um tacitus consensus populi --- com efeito, o costume é a via pela qual se manifesta, talvez da forma mais inilidível, o sentir do povo, do povo autêntico, não do povo que «saiu à praça vociferando que é rei porque é povo.» (12)

Retomemos o fio da nossa exposição, no ponto em que a interrompemos, isto é, no tempo de D. João I.

Três reinados a seguir ao rei de Boa Memória, colhia Portugal o fruto sazonado das lições daquele soberano, porque tinha o monarca absoluto perfeito. Valeu-nos a Providência porque era um homem que possuía em elevado grau a consciência da missão que lhe cabia. Absolutista, como produto normal da época que lhe deu o ser e, inquestionavelmente, porque a isso o inclinava o seu próprio temperamento, era sobretudo um português amante da sua Pátria. E o Império que criámos, ficámos em grande parte a devê-lo à sua extraordinária visão, ao seu fino tacto e ao seu génio político. Mas as suas qualidades, porque eram pessoais, morreram com ele.

O Iluminismo ainda vinha longe, acabando contudo por chegar, rodeado de grande pompa exterior. E, entre nós, aparecia o despotismo engalanado na figura de Sebastião José. Quem era este homem, a quem alguns teimam em dar estatura descomunal, divinizando-o por obras cujo mérito não teve, e louvando-o por actos desumanos e atrozes ?

Odiando a Igreja (13), expulsava os jesuítas (14), mandava queimar o Padre Gabriel Malagrida e convertia a Inquisição em instrumento da sua mentalidade regalista. Num processo, quase insólito no seu barbarismo e na sua iniquidade, chacinava, ou condenava a prisão perpétua, o melhor da nobreza portuguesa. Através da Lei da Boa Razão feria de morte o costume. E, discípulo fiel de D. Luís da Cunha (15), repetia entre nós o colbertismo do conde da Ericeira, ao mesmo tempo que abatia o que restava das corporações. Tinha as mãos livres, podia fazer quanto quisesse (16).

Terminou o seu governo (seria ironia atribuí-lo ao Rei), com a morte do monarca. Caído em desgraça, foi desterrado para Pombal, onde acabou os seus dias livre do rigor dos tribunais pela clemência de D. Maria I.

No final do reinado desta soberana, Portugal via-se pisado pelos exércitos napoleónicos até que, com o auxílio de uma Inglaterra, invejosa da estrela do Corso, temerosa da hegemonia que este ia firmando, e desejosa de acabar com o seu poderio, conseguiu empurrar o invasor para lá da fronteira. Enquanto isto sucedia, a família real demorava no Brasil para onde se retirara quando Junot entrou no Reino. Passados alguns anos, D. João VI, já rei, regressa a Lisboa depois de muito instado. Na capital do Império, deparam-se-lhe os ânimos exaltados e vive-se um clima de insegurança, resultado da Revolução de 1820. Esse acto, aparentemente, era uma reacção ao regalismo absolutista. Mas, como era de prever, os prometidos horizontes de uma rasgada liberdade não surgiram.

O País caminhava para uma confrontação, que o ia mergulhar numa sangrenta guerra civil, e seria somente o prelúdio de mais convulsões, de outra guerra, de pronunciamentos militares sem conta, de alguns magnicídios pelo meio, de golpes de estado e de quedas de ministérios, enfim, de uma desordem que, até aos nossos dias, não arredou pé. Mesmo nos períodos de acalmia, uma acalmia mais aparente que real, essa desordem era uma larva à espera de desenvolver-se nas mais venenosas formas.

A paz podre, que caiu sobre Portugal e o asfixia, bem parece antecâmara de um pavoroso cataclismo social. Para prevenir esse mal, a Pátria precisa conhecer a causa dos seu males passados, presentes e aqueles que se podem adivinhar. Já aqui dissemos qual é e repetimo-lo resumidamente: trata-se do desgraçado mito da soberania popular, porque é ele que emerge sempre como denominador comum de todos os sistemas que foram impostos ao mundo civilizado e não pouparam o povo português: o absolutismo regalista, ou as doutrinas liberais, ou ainda as ideologias totalitárias. Estes sistemas são contrários ao direito natural e aos mandamentos divinos. Desmentem o ser histórico de Portugal e da sua gente.


PODER POLÍTICO E MONARQUIA


Numa época em que os descendentes de reis se vulgarizam e as pessoas vulgares, levadas pela ambição, se julgam reis, poderá parecer risível terçar armas pela Monarquia. Mas nós estamos dispostos a isso e nela confiamos sem desfalecimentos de qualquer espécie.

Que entendemos por Monarquia? Não damos este nome, decerto, às monocracias vitalícias ou quase vitalícias dos consulados, nem ao regalismo cesarista, ao estilo da Roma imperial; afastamos igualmente desta categoria aquelas sociedades atomizadas, que entre os diversos órgãos do poder, contam um a que chamam Coroa. Para nós, a Monarquia é a comunidade onde existe a realeza, com um poder próprio e forte, cume de uma nação organicamente estruturada nas suas diversas ordens e onde as autarquias geográficas e profissionais estão bem vivas. Assim, o poder político segue uma escala hierárquica e há uma representatividade tão integral quanto é viável.

Sendo os povos formados por pessoas e estas, consideradas uma a uma, intrinsecamente livres porque gozam daquela autonomia que lhes foi concedida por Deus, a nenhum poder humano é lícito ignorar esse dom. A Monarquia não calca este direito fundamental do ser humano. Preocupando-se com a pessoa, não consente, todavia, que ela se encha de si mesma, mas serve-lhe de auxílio, orientando-a para o fim último --- o de adorar e servir a Deus.

A causa de todo o poder é Deus. Mesmo quando se trata de governos degenerados, sendo aí mera causa acidental de um poder inicialmente bom e do qual a maldade dos homens abusou. Negá-lo é pecar contra o Espírito.

Que é o poder na Monarquia? Esta pergunta, para ser respondida, requer que primeiro se defina o que é o poder político em geral. E precisar os contornos do poder político é o mesmo que falar na teoria da soberania.

Vemos a soberania como a vontade servida por um poder supremo e independente, orientada para o estabelcimento de uma ordem. Povo com gente capaz disto, é povo com uma organização política que o distingue no concerto dos demais povos porque lhe empresta uma individualidade muito particular.

Para quem, como nós, se mantém fiel aos ensinamentos da tradição bíblica (17), foi monárquica a primitiva organização da vida em sociedade, embora se tratasse de uma sociedade muito especial --- a doméstica. Mas, para a exposição daquilo que agora pretendemos, vamos fixar-nos em matéria que a experiência actual pode comprovar, prescindindo do que afirma o texto sagrado.

De passagem, apenas assinalamos que a quebra da ordem monárquica é, quanto a nós e como se torna fácil supor, ilegítima. Porém, o argumento lógico (embora de uma lógica que nunca perde de vista a perspectiva católica da vida), esse argumento reservamo-lo para o capítulo seguinte. Não nos demoraremos, pois, com aspectos que respeitam mais a um problema da legitimidade de origem. Neste momento, é nosso intuito tratar apenas do exercício do poder soberano. Referiremos o único critério que reputamos válido para dizer se este, ou aquele poder, é justo ou injusto. E deste modo mostraremos como nos afastamos de todas as falácias que a Democracia vem tecendo ao redor do conceito de soberania.

A soberania, segundo dissemos poucas linhas atrás, manifesta-se como a vontade consciente servida por um poder supremo e independente, orientada para o estabelecimento de uma ordem. Os que isto fazem são os detentores da soberania e saem do grémio de toda a comunidade, mas só a Deus devem o poder. O resto da comunidade propende a aclamá-los.

Alcançada essa ordem, procuram os seus realizadores criar na consciência do grupo em que se integram a ideia de que são obrigatórias as regras estabelecidas. Quer isto dizer que todas as situações políticas de situações de facto que começam por ser, tendem a transformar-se em situações de direito.

A legitimidade do ius positum mede-se em função de valores transcendentes. Rimo-nos da pretensa infalibilidade dos oráculos das maiorias porque as coisas devem ser apetecidas por serem boas e não são boas por serem apetecidas: admitir isto seria perfilhar uma moral de valores nietzcheana, o que é manifestamente errado. Com efeito, se o chegar à bondade absoluta das coisas e, por conseguinte, à sua verdade e unidade não está, no campo dos factos, ao alcance de ninguém, muito menos o será pela maioria que constitui o rebanho dos ignaros quase cretinos. Se acontece que a maioria se aproxima dessa bondade, devemos atribuí-lo a sucesso casual.

Simultaneamente, não podemos esquecer que todo o poder constituído perde legitimidade se exerce mal a sua autoridade. E a revolta contra esse poder fica justificada pela moral teológica e pelo direito (18). Os que mandam têm obrigação de realizar o Bem Comum. E sempre que tal fim é deliberadamente postergado pelos governantes ou que estes se mostram incapazes de o realizar, há não só o direito como também nasce o dever de alterar a ordem que vigora. Da comunidade sairão os que a vão salvar, animados do espírito daquele princípio, já formulado, de que os titulares da soberania pertencem ao grémio dessa mesma comunidade.

Montesquieu julgou encontrar o salus populi repartindo o poder de maneira que o resultado final seria a defunção do mesmo (19). Rousseau, categoricamente, proclamou a soberania indivisível (20), embora viesse depois a distinguir entre a força e a vontade do corpo político em termos tais que a soberania assim concebida alberga dentro dela o fermento da própria destruição (21).

A divisão dos poderes está intimamente ligada às ideias individualistas; a ordem tradicional tem em conta o homem situado nos grupos sociais da mais diversa natureza, e obedece a uma cadeia hierárquica, onde se delegam competências, mas em que não há fracções separadas.

O poder monárquico é, sem dúvida, aquele que melhor respeita esta exigência da unidade na variedade. E é talvez o único a consegui-lo. Apresenta, por este modo, o maior obstáculo à desagregação, mesmo que entre as pequenas comunidades que integram a Pátria lavre o germe da discórdia porque, na Monarquia, é vertical a disposição do poder soberano, expresso através das forças vivas da nação.

É também a ajuda mais sólida para formar e garantir a continuidade da consciência nacional. Reage-se assim, eficazmente, aos efeitos deletérios das teses do internacionalismo político, sem cair na cegueira dos nacionalismos fanáticos.


REGRESSO À ORDEM TRADICIONAL

A perda do sentido do sagrado levou a um exagero horroroso, aliás previsto e desejado. O Estado deixou de secundar a Igreja Católica e decretou o divórcio entre ambas as instituições.

A Revolução rompeu a aliança entre os dois poderes: o espiritual e o temporal. Investiu depois em toda a linha --- semeou a discórdia na sociedade civil e visou o trono de S. Pedro. Esta ofensiva deu de si o materialismo, espécie viciada de uma religião nova. O processo revolucionário avança em direcção à meta ambicionada.

A ameaça é assustadora e o perigo é real. Mas há um reduto inexpugnável, onde podemos sempre acolher-nos. Esse reduto são as palavras de Cristo: «Et ego dico tibi, quia tu es Petrus et super hanc petram aedificabo ecclesiam meam, et portae inferi non praeualebunt aduersus eam.» (22).

Esta certeza não obriga a deixar de lado a Política. Em certa medida, até a requer. Defendemos, assim, que a Política pode ser um instrumento de redenção, embora distinto da Religião pela natureza dos seus meios e fins específicos. Se efectivamente desejamos que o seja, temos de escolher a ordem temporal que se mostra fiel à Igreja de Roma, única depositária do Verbo da Salvação. E essa ordem é a ordem da Legitimidade.

Como se comporta o legitimista? --- Deste modo: adorando a Deus; querendo à Pátria; e dando voz pelo Rei.

O legitimista aclama o Rei, o qual, no uso pleno das prerrogativas que lhe são inerentes, é penhor seguro das liberdades, dessas liberdades consagradas pela lei e pelo costume. A realeza é a forma que determinará a matéria --- a sociedade --- para a transformar nesse todo especificamente novo que a nação monárquica constitui.

O Rei é o chefe natural da Nação. Restabelecida esta aliança, ergue-se, de novo, o quadro mais adequado para o povo português encontrar a perdida razão da sua existência.

Acima do Rei, está a Pátria. Ela é descanso dos nossos maiores, abriga-nos a nós e espera pelos que virão. Mais que um ser físico do instante que passa, é uma entidade moral que se desenha no tempo --- é a comunidade de avós, pais e filhos unidos pela mesma força, abraçados na mesma crença e confiados no mesmo destino que a todos transcende.

Falámos do Rei, tratámos da Pátria. Em frente de nós, por cima de nós, abre-se a majestade infinita de Deus, que é o Alfa e o Ómega.

Neste eixo --- Deus, Pária, Rei --- está a dimensão da Legitimidade. Esta dimensão dava uma ordem e essa ordem verteu-a o Portugal antigo nas suas Leis Fundamentais, que eram algo vivo e não mero documento de prosa mais ou menos sofrível.

No enunciado simples e discreto daquelas Leis palpitava uma constituição genuína. Porque os diplomas preparados para reger a sociedade portuguesa, a partir de 1820, apesar de toda a sua ressonância, não foram senão maus aparelhos ortopédicos moldados nos aleijões da Revolução Francesa.

Já definimos o eixo da Legitimidade --- estende-se pela fé em Deus, pela devoção à Pátria e pelo amor ao Rei. Vivendo a Legitimidade, vive-se a lealdade ao Rei, posta ao serviço da Pátria, com os olhos fitos em Deus.

É esta a linha da política que reputamos ortodoxa: reflexão, estratégia, acção. Seguimo-la com a monarquia legítima, que nos descobrirá a Tradição. E a Tradição não morre, visto que reflecte o Ser uno, verdadeiro e bom em movimento, como já tivemos ocasião de explicar no início deste manifesto.

Se não carregássemos a tara do pecado original, a Tradição espelhar-se-ia, com fidelidade, no testemunho que cada geração fosse deixando após a sua passagem. Não acontece assim. E, por isso, a Tradição deve ser objecto de constante esforço de uma procura animada pelo desejo de alcançar a verdade ontológica. Só deste modo admitimos a Tradição.


EXORTAÇÃO FINAL

Portugueses:

A nossa Pátria separou-se do resto da Península. É um facto político que passou por três duras provas. S. Mamede marca as aspirações de um povo que nasce; Aljubarrota afirma a certeza de uma consciência nacional que já não aceita escambos de identidade; e o 1.º de Dezembro de 1640 confirma uma vontade atávica --- a de manter Rei natural, como cumpre a povo livre e independente.

Começou pequeníssima; estendeu-se pelas quatro partidas do mundo, animada de zelo apostólico; e numa triste Primavera, apesar dos cravos que floriam (ou talvez por causa disso), foi vilmente atraiçoada por bastardos sem lei e sem pudor.

No açougue dos conluios internacionais, os magarefes sucedem-se a ver quem retalha mais. Mesmo assim, não desapareceu. A sua identidade metafísica permanece. E nós podemos restituir a Pátria amada ao caminho da sua missão histórica.

Forças temíveis, que se escondem nos abismos profundíssimos do Mal, desejam enterrá-la. Essas forças são aquelas que, sobre os escombros da civilização que vão abatendo, se preparam para levantar o governo de um Estado Universal monstruoso.

A esses perversos desígnios temos de opor-nos. Que nos é pedido, então? --- A resposta ao chamamento para uma cruzada sublime:

Trata-se de restaurar Portugal. Portugal restaura-se expulsando os corpos estranhos, como o expulsámos em Aljubarrota; em 1640; e em 1810. Portugal refaz-se repetindo todos estes exemplos e conseguindo aquilo que, desde a queda do Rei legítimo, há quase dois séculos, não temos sido capazes: conseguindo a ablação dos tumores causados por sistemas de ideias que se instalaram no organismo da sociedade portuguesa. É necessário extirpar esses cancros, porque uma nação não está só invadida quando exércitos de fora talam o seu território, ou grandes fluxos migratórios alteram o seu equilíbrio demográfico: pode está-lo tanto ou mais sempre que os espíritos se apresentem turbados por doutrinas de importação. É este fundamentalmente o estado de Portugal e nós temos o dever de impedir que ele se prolongue.

A Pátria sofre porque posta diante do espelho da sua memória não se reconhece nele: procuremos seguir os nossos valores tradicionais e já veremos como o Portugal de amanhã volta a identificar-se com o Portugal de antanho. Esta é a restauração que se impõe; para esta tarefa é que temos de preparar-nos.


VIVA A MONARQUIA LEGÍTIMA!
VIVA PORTUGAL CATÓLICO!


Joaquim Maria Cymbron
____________________________________________________
  1. Éditions Grasset & Fasquelle , 1977, p. 12.
  2. Du Contrat Social, Livre I, chapitres V-VI.
  3. Ib., Livre IV, chapitre II.
  4. Ib., Livre I, chapitre V.
  5. A este respeito, não se perderá nada se reflectirmos sobre o que sustenta Rousseau --- Discours sur l' origine et les fondements de l' inégalité parmi les hommes, Flammarion, Paris, 1992, p. 257: «(...) puisqu' il est manifestement contre la loi de nature, de quelque manière qu' on la définisse, qu' un enfant commande à un vieillard, qu' un imbécile conduise un homme sage et qu' une poignée de gens regorge de superfluités, tandis que la multitude affamée manque du nécessaire
  6. Referimo-nos, como é óbvio, ao seu enunciado de princípios, não a práticas que é uso classificar de mais ou menos democráticas. Isto mesmo transparece no texto deste Manifesto , um pouco mais adiante.
  7. Interrogamo-nos também se, naquelas nações onde a dita Democracia funciona de forma mais ou menos satisfatória, não andaria tudo melhor sem ela. Cremos bem que sim, mas consideramos tal problema como uma questão que não diz respeito a quem, primordialmente, busca uma solução nacional.
  8. A República, trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, Fundação Calouste Gulbenkian, 8.ª ed., Liv. VIII. 
  9. Napoleão, esse génio administrativo mau e militar exterminador, teve talvez em Rousseau o seu profeta sinistro. «Il est encore en Europe, un pays capable de législation ; c' est l' île de Corse. (...). J' ai quelque pressentiment qu' un jour cette petite île étonnera l' Europe.» (Op.cit., supra, nota 2, Livre II, chapitre X). Aquele que alimentou, em grande dose, o pensamento revolucionário, que veio a explodir em 1789, prenunciava o advento do seu mais destro executante. Com Robespierre, Danton, Marat ou um dos raivosos, a Revolução Francesa não iria possivelmente além de umas crises frenéticas. Foi Napoleão, quem sagaz e persistentemente a cimentou. Convém recordar ainda a lição de Donoso Cortés, que o qualificou como «la Francia hecha hombre para propagar la idea revolucionaria.» (Discurso sobre la dictadura, O.C., II, BAC, Madrid, MCMLXX, p. 313).
  10. Portugal Contemporâneo, Livro Primeiro, cap. II, 3.
  11. D. 1. 4. 1.
  12. Camilo Castelo Branco --- O Bem e o Mal , VII.
  13. M. Menéndez Pelayo --- Historia de los Heterodoxos Españoles, Liv. VI, capítulo 2, I: «Hoy es el día en que más se sienten los efectos de aquel régimen, que empezando por dar a Portugal un esplendor ficticio, acabó por anularle sin remisión y convertirle en el país más "progresista" de la tierra, en el sentido grotesco que tirios y troianos damos en España a esta palabra. (...) Abatió al clero por odio a Roma y al catolicismo, como quien había bebido las máximas de la impiedad en los libros de los enciclopedistas, por cuyos elogios anhelaba y se desvivía.»
  14. Ib.: «Pombal tenía la monomanía antijesuítica; (...) murió en 1782, y los enciclopedistas le pusieron en las nubes "por haber librado a Portugal de los granaderos del fanatismo y de la intolerancia", frase de D' Alembert
  15. Oliveira Martins --- História de Portugal, Livro Sexto, V: «O marquês de Pombal, representante eminente e audaz do naturalismo do século XVIII, aprendido nas missões de Inglaterra com D. Luís da Cunha, que decerto o educou (...).»
  16. O mais insuspeito elogio das corporações talvez se encontre no Manifesto Comunista, quando, sobre os operários se lê isto: «(...) tentam recuperar pela força a posição perdida do artesão da Idade Média.» (Marx/Engels, op. cit., trad. de Manuel L. Martins, Publicações Nova Aurora, Lisboa, 1976, II). Ver também de Marx, sobre a acumulação primitiva, O Capital, trad. de António Dias Gomes, I, 7.ª ed., Delfos, 8.ª Secção, cap. XXVI - cap. XXVIII. É curioso analisar este trecho.
  17. Nada há na doutrina da Igreja que proíba uma interpretação literal do Génesis. Sobre este ponto, leia-se a encíclica Humani Generis, de Pio XII.
  18. S. Tomás de Aquino, O.P. --- Summa Theologica, II-II, q. 42, a. 2: « Ad tertium dicendum quod regymen tyrannicum non est iustum: quia non ordinatur ad bonum commune, sed ad bonnum privatum regentis (...). Et ideo perturbatio huius regiminis non habet rationem seditionis: nisi forte quando sic inordinate perturbatur tyranni regimen quod multitudo subiecta maius detrimentum patitur ex perturbatione consequenti quam ex tyranni regimine.» Escute-se também Francisco Suárez, S.I . --- Defensio Fidei III, I Principatus Politicus, cap. III, 3: «(...) si rex iustam suam potestatem in tyrannidem verteret (...) posset populus naturali potestate ad se defendendum uti
  19. De l' Esprit des Lois, Livre XI, chapitre IV et chapitre VI.
  20. Du Contrat Social , Livre II, chapitre II.
  21. Ib., Livre III, chapitre I.
  22. Mt. 16, 18.
  23. Apoc. 1, 8; 21, 6; 22, 13.
JMC