domingo, 31 de outubro de 2010

SUBLIME ANTERO

 
                    Intriga como, entre aqueles que queimam incenso na religião das urnas, ainda haja tanto fascínio pela figura de Antero. Parece-me um caso de atracção pelo abismo. 
                    Fazem mal. Repetem o que se verifica com os ataques à Inquisição, por causa da teoria heliocêntrica: o ódio à Igreja cega-os a ponto de não conseguirem ver que o episódio, à volta de Galileu, se alguma coisa de subsistente prova, é que um homem isolado pode ter razão contra o mundo inteiro.

 
Das prosas da célebre Questão Coimbrã, com assinatura do grande poeta açoriano, extraio estas passagens de um arrasador antidemocratismo:

«O escritor quer o espírito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o lugar de censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes, mas elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro.» (1)

(...)

«As grandes, as belas, as boas cousas só se fazem quando se é bom, belo e grande. Mas a condição da grandeza, da beleza, da bondade, a primeira e indispensável condição, não é o talento, nem a ciência, nem a experiência: é a elevação moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma e a dignidade do pensamento e do carácter. Nem aos mestres, aos que a maioria boçal aponta como ilustres, nem à opinião, à crítica sem ciência nem consciência das turbas, do maior número, deve pedir conselhos e aprovação, mas só ao seu entendimento, à sua meditação, às suas crenças!» (2)
 
«(...) não é sobretudo lisonjeando o mau gosto e as péssimas ideias das maiorias , (...)» (3)
 
(...)
 
«Como não buscam a verdade pela verdade, a beleza pela beleza, mas só a verdade pelo prémio e a beleza pelo aplauso, têm de as renegar tantas vezes quantas a beleza não agradar aos olhos embaciados da turba que aplaude, e a verdade ofender os senhores que premeiam e recompensam. Ora, quantas vezes num século premeiam os senhores a verdade sincera e inteira? quantas vezes aplaudem as turbas sensuais e ininteligentes a formosura ideal, límpida e simples?» (4)

A seguir, vibra-se a machadada mais funda:

«Esta, a verdade, quer só dar-se a quem a procura por amor, exclusivamente por sua formosura, não pelo aplauso ou pelo preço que possa render. Ora isto é o que não podem fazer as literaturas oficiais. Seria renegar o seu mesmo princípio, o culto da opinião, e o seu fim, o triunfo ruidoso mas efémero das praças públicas. Falam às maiorias, têm de ser comuns. Dirigem-se ao vulgo, têm de ser vulgares. Especulam com as paixões públicas, têm de as aceitar e lisonjear. Dependem dos ídolos do dia, têm de os incensar. Recolhem juro dos prejuízos e ilusões nacionais, têm de conservar esse capital rendoso. Têm por infalível pontífice o juízo popular, não podem renegar de suas doutrinas, seus dogmas, seus cultos. Hão-de ir sempre ao nível do espírito público, do pensar das maiorias: nunca acima. Serão entendidos, aplaudidos, estimados. Nunca, porém, elevarão, nunca hão-de ensinar, nunca hão-de mostrar mais do que pode ver qualquer dos que estão no meio da turba ...» (5).

E remata nestes termos:

«O povo, a verdadeira nação, isto é, os homens que sentem e os homens que pensam, esses não têm simpatia nem admiração pelos formosos sofismas duma arte brilhantemente estéril, que só serve para entorpecer o espírito adormecendo-o ao som de um canto doce mas fraco, sensual e sem altura. (...). Não querem ser divertidos, mas somente ensinados e melhorados.» (6).

Joaquim Maria Cymbron
 
 
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  1. Bom Senso e Bom Gosto, I.
  2. Ib.
  3. Ib.
  4. A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, III.
  5. Ib., IV.
  6. Ib.
NB.: Os negritos são da minha responsabilidade.

JMC