quarta-feira, 11 de julho de 2012

MERCENÁRIOS DA GUERRA E MERCENÁRIOS DA LEI


A 27 de Julho de 1974, António de Spínola, então Presidente da República, assinava uma lei onde se dispunha que «o princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar, consagrado no n.º 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação.» A lei continuava, estabelecendo que «o reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos e a derrogação da parte correspondente do artigo 1.º da Constituição Política de 1933.» E terminava, selando a traição nos seguintes termos: «Compete ao Presidente da República, ouvidos a Junta de Salvação Nacional, o Conselho de Estado e o Governo Provisório, concluir os acordos relativos ao exercício do direito reconhecido nos artigos antecedentes.»
Agora que se aproxima o dia em que mais um ano passa sobre tão criminosa decisão, pareceu-me oportuno colocar neste blogue uma peça de minha autoria, escrita quando ainda corria o ano de 1972 (o texto, fora alguns retoques de ordem formal, reproduz a versão originária) (1).
Nas linhas que seguem, vê-se como o inimigo, de portas adentro, já açacalava os grifos!


Quem não foi, pela tarde do dia 5, ao 1.º Tribunal Militar Territorial de Lisboa, perdeu um espectáculo magnífico. Teria ouvido falar o célebre Dr. Manuel João da Palma Carlos, figura notabilíssima nos meios jurídicos e cuja fama, até há muito, se estendeu pelos mais diversos cantos.

Que bem falou ele! Sobretudo que argúcia na sua argumentação, que coerência no seguimento das suas afirmações, que pureza de juízos e de princípios, que limpidez de voz e de sentimentos, enfim, que prodígio!

Por seu intermédio, tomaria conhecimento de que aos territórios portugueses de além-mar não cabe outra designação que não seja a de. colónias, qualificação banida há coisa de poucos anos por obra de uma simples penada. Causa, no entanto, estranheza que o Dr. Palma Carlos não tivesse completado o seu esforço louvável de fazer história político-constitucional. Esquecimento ou economia de tempo, com certeza.

E que dizer do entusiasmo que o mesmo senhor mostrou quanto à messiânica lei que passará a vigorar a partir de 1 de Outubro próximo? É também fruto de uma penada, mas a aparente contradição resolve-se se tivermos em conta o carácter íntegro e probo do ilustre causídico, muito acima da mais leve suspeita.

Teria notado, ainda, a fina diplomacia com que expressou ao Digno Promotor de Justiça o seu pasmo por o ver a ele, oficial do Exército, citar tantas vezes a lei, técnica que fatalmente empana o brilho e torna desnecessariamente morosa qualquer explanação perante a barra do Tribunal. Isto pode ser uma defesa, Senhor Dr. Manuel João da Palma Carlos! É que nem todos possuem como V. Ex.ª o privilégio de uma palavra que não conhece o caminho do sofisma, de um raciocínio que poderia pecar por tudo menos por ser falacioso.

Igualmente tocante a compaixão que mostrou pelos Juízes, obrigados a debruçarem-se sobre um caso já apreciado. E então numa pessoa que, como ele, nunca interpôs recursos nem apelou de sentenças, não só é tocante como justo.

Mais à frente ficaria a saber que o Dr. Palma Carlos nutre pelo Réu uma admiração muito especial, por ter este provado não ser da estirpe de um Murupa nefando e de alguns outros «que contra suas pátrias, com profano coração se fizeram inimigos.» Creio, todavia, ser lamentável a escassez de referências e penso, seriamente, que o Réu ganharia bastante mais, se houvessem sido recordados nomes como os de Henrique Galvão, Humberto Delgado, Mário Soares, etc.

E, por fim, talvez não conseguisse dominar uma lágrima rebelde que teimasse em lhe saltar aos olhos, disfarçar um frémito de emoção que lhe percorresse o corpo, ou manter a serenidade repelindo uma onda de pavor, conforme a formação e sensibilidade que possuir, ao ouvir as derradeiras palavras do Dr. Palma Carlos. Simplesmente arrebatador, quando voltado para os Juízes, lhes lembrava a grave responsabilidade que é o julgar, porque muitas vezes, na ocasião em que menos se espera, podemos ser todos réus da História.

Desfecho condigno de uma dissertação forense!

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Senhor Dr. Manuel João da Palma Carlos, palavra que gostei de o ouvir! Falou fluentemente, V. Ex.ª, o que não quer dizer profundamente. Mas, nesta era de filmes de tese, livros de tese, colóquios de tese, é bom desanuviar.

Espero, contudo, que levará a bem que me alongue um pouco mais. Deixei propositadamente para esta altura, pela natureza delicada de que se reveste, um ponto que V. Ex.ª tratou:

V. Ex.ª considera o Réu idealista. E como isto é predicado que merece aplauso está também V. Ex.ª de parabéns. Com efeito, só espíritos broncos dirão que V. Ex.ª age nesta conjuntura, como de resto em todas as outras, por dinheiro, honra ou glória; só gente mesquinha se comprazerá em não acreditar que foi V. Ex.ª impelido para esta árdua e espinhosa missão, como o tem sido para todas as da sua carreira, levado apenas por um entranhado amor à Justiça. Neste passo, sossegue pois V. Ex.ª, e declare-se totalmente identificado com o Réu.

Senhor Dr. Manuel João da Palma Carlos, ninguém ignora que o Réu aprendeu nas escolas de Fidel e do próprio Che, uma gente em cuja boca andava e anda o grito de «Vitória ou Morte!». Repare V. Ex.ª que é ele, são eles que nos dão as regras. Sob esse aspecto não os podemos acusar de serem traiçoeiros.

Li há meses o seu opúsculo Perigo e Honra de ser Advogado. Sinto-me irresistivelmente tentado à seguinte conclusão: há, na realidade, um ou outro advogado a quem não cai bem a veste talar; melhor fora que lhe chamassem arlequim togado.

É chegado o momento de terminar. À semelhança do imortal poeta açoriano, quando escrevia Bom Senso e Bom Gosto, lamento não poder assinar, como desejava, nem admirador, nem respeitador. Aqui começa e aqui finda, porém, toda a semelhança, porque nem eu devo ser comparado a Antero, nem V. Ex.ª se confunde com Castilho.

Joaquim Maria Cymbron
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  1. Política, II Série, n.º 2 --- 16 a 30 de Junho de 1972
  2. JMC

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