segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A UM GENERAL CONTRARREVOLUCIONÁRIO


A carta, que segue, foi publicada pela primeira vez no bimensário Novo Século, de 1/15 de Setembro de 1983, pp. 1 e 12 (nesta última, as nove linhas iniciais não fazem parte do texto por mim assinado). A sua desconformidade com o presente vem definida nas notas de pé de página, excepto a primeira que se refere a uma citação de Os Lusíadas.
Reeditá-la aqui pareceu-me útil dado que o escrito nessa altura mantém a actualidade de tudo aquilo que se torna mais premente. O tempo até demonstrou que as previsões estavam certas.
Senti a necessidade de referir o órgão de comunicação social, que publicou a carta, porque convinha a chamada de atenção para a interpolação acima assinalada. Estes incidentes são muitas vezes obra dos jornalistas, que parecem experimentar um certo gozo em mostrar a casta a que pertencem.
Permita Deus que a carta desta vez alcance algum êxito!

 
 Senhor General:

A Nação tem os olhos postos em V. Ex.ª. E olha-o, Senhor General, porque, agora ou depois, V. Ex.ª terá de intervir!  
 
A Pátria sem mácula, a Pátria inocente, esta Pátria, que é a nossa, geme agrilhoada a um sudário de infâmias cometidas por bastardos e por loucos. A Pátria pede desagravo para os crimes de que é vítima e de que a sua consciência não tem de se acusar.
 
Eu sei, Senhor General, que sobre V. Ex.ª e os seus valorosos companheiros de armas têm caído as mais acerbas críticas. Mas, na hora em que a Nação já espera ansiosa o resgate da tria, ime-se ver claro:

Se é certo que o 25 de Abril foi obra de Serrios e de Coriolanos sem outra chama e talento que não fosse a luz infernal da traão, também a verdade obriga a que se diga, que pulularam entre nós, os aprendizes de Catilina, o tendo havido, isso sim, objurgatória de Cícero que nos valesse. A estes inimigos, que por si sós levariam a cabo qualquer obra de destruição, juntava-se a sátira execrável na substância e de gosto formal mais que duvidoso, que era moda e de bom tom praticar-se, chocarreira, nalguns círculos elegantes ou, então, com fumos de literatice, nas tertúlias de um intelectualismo pedante e esotérico. Proceda-se, assim, à reconstituição do quadro da vida portuguesa nos anos que precederam mais de perto o 25 de Abril e logo se verá como toda a nossa sociedade, nas suas instituições poticas, sociais e económicas, enfermava já dos males que são sintoma de uma decomposição próxima.
 
A demissão dos governantes, a fuga das classes dirigentes, que quase só o eram em razão de uma infeliz ínércia histórica, e a felonia sistemática dos grupos economicamente dominantes, tudo isto somado se encarregou de arrasar o que, de muito positivo, um estadista de polpa --- Oliveira Salazar --- levantara com a cautela, que lhe impunham as apertadas condições em que se movia, e tamm com o tacto, que só homens de génio possuem. A decadência de caracteres era, pois, imensa e quase geral: a corrupção minava os alicerces do edifício laboriosamente erguido.

Deste modo, era impossível que vingassem os clamores dos que ainda tinham, em justa conta, a noção do «amor da Pátria, não movido de prémio vil, mas alto e quase eterno.» (1) O mau exemplo vinha de cima e o seu contágio ameaçava tudo e todos: poucos eram os que lhe escapavam. Aqueles que protestavam (e já rareavam os que, para tanto, conservavam a necessária coragem e o discernimento suficiente), o maior número deles e, porventura os de melhor qualidade, estavam, havia muito, afastados por vontade própria do regime vigente ou, então, como com outros sucedia, nunca tiveram nada a ver com ele: tanto maior, portanto, o cdito que deveriam merecer. Não aconteceu, porém, assim. Homens de boa fé, gente válida, todos eles passaram a ser olhados como importunas Cassandras, que não interessava ouvir, quando não se podia calá-los. Neste quadro, o desastre previa-se. Caminhava-se a passos largos para a capitulação ante Danaos et dona ferentes, que o mesmo é dizer perante o inimigo de fora e o de dentro.
 
Houve, portanto, um inimigo interno. Todavia, o lado pelo qual, de um modo mais directo, saiu a punhalada contra a Pátria, foi justamente esse donde, por definão, se esperava a sua maior defesa. Mas, nesse grémio, nem todos são traidores! Melhor: aí, não há traidores, porque os sicários da Pátria, ao renegarem Portugal, negaram-se como militares visto que «este Reino é obra de soldados».

Se pela mente do lendário Mousinho, aquele que, nalguns aspectos, foi bem um Nun’ Álvares póstumo, se pela sua mente, repito, ao deixar que estas palavras tombassem de uma forma lapidar, perpassou a ideia, que eu acho justa, da tríplice dimensão em que se pode exercer o nobre mester de soldado, Portugal é, com efeito, obra de soldados: é-o pela milícia do espírito; é-o pela milícia do pensamento; e é-o, ainda, pela milícia da acção. Pela milícia do espírito, é obra de soldados no apostolado dos seus mártires, dos seus confessores, dos seus santos e dos seus homens de Igreja; é-o também pela milícia do pensamento, no esforço transformador daqueles que, arrancando das suas raízes uma cultura, que aí jazia latente, a desenvolveram, e foram depois semear junto de outros povos; finalmente, é-o pela milícia da acção, na tenacidade dos seus navegantes e no arrojo dos seus combatentes, no mérito de tantos que passaram cumprindo em silêncio e, obviamente, no esplendor dos seus heróis.

Contudo, este Reino, que já formou em quadrado cerrado, apresenta hoje as suas linhas rotas: Portugal sofre, prostrado, de uma doença minaz; a Nação ouve o ranger de uma corda de esparto; a Pátria treme, apavorada, ao bater das asas de umas aves de rapina. Se queremos curar Portugal do cancro que o rói --- a partidocracia --- e que lhe será fatal, se não acudirmos a tempo; se desejamos salvar a Nação do algoz --- o comunismo ---, que a executará sem dó nem piedade; se, por fim, suspiramos por livrar a Pátrta das garras de uns abutres --- a plutocracia internacional ---, que hão-de procurar saciar os seus apetites vorazes naquilo que dela restar (2), se ansiamos verdadeiramente conseguir estas coisas, então uma vez mais, cumpre-nos ser soldados a fim de continuar este Reino.
 
Mas ainda tenho que lhe dizer, Senhor General!

O povo soberano escolheu uma maioria que, por não ser absoluta, não teve coragem de ser governo e, coligada, não chegará a governar coisa que se veja (3). Quem mo assevera? --- Não é somente a hostilidade que logo se começou a desenhar da banda comunista ou vinda de sectores próximos dela; é sobretudo a prática constante dos valorosos barões de Abril, em circunstâncias como esta: imediatamente após a vitória do MFA se falou na pesada herança fascista; em 1976, Mário Soares, quando tomou posse o I Governo Constitucional, juntava-lhe em ar de queixa. a depredação gonçalvista; sobe a Aliança Democrática ao poder, após um interregno de governos de iniciativa presidencial, e ouve-se a mesma lamúria a respeito da gestão socialista; agora, Soares regressado de novo ao galarim dos negócios públicos, voltou a apontar um estado caótico (4).
   
Estes agoiros, que periodicamente se vão repetindo, levo-os eu na conta, não de profecias da desgraça, mas sim como um lavar de mãos de criminosos, que agem com premeditação ou, noutros casos, o grito de pânico dos incompetentes, assustados com a vastidão da tarefa em que livremente se meteram. Há, neste juizo, demasiada severidade? --- Não o creio, porque se pararmos a fazer um balanço desapaixonado de Portugal do pós-25 de Abril, logo veremos esta verdade nua e crua: se estávarnos mal (e muitos erros havia, inegavelmente), muito pior vamos. A queda tem sido contínua e vertiginosa. E tudo isto é demasiado para ser mera coincidência.
 
Eis a razão, Senhor General, por que escrevo a V. Ex.ª. Se houvesse condições para uma genuina representação nacional, nunca eu me adiantaria a pedir a V. Ex.ª aquilo que vou pedir. Porém, essas condições não existem e tempo para as criar, também não: em seu lugar, depara-se-nos a democracia, conceito estranho a toda a tradição política portuguesa, e que filosoficamente nada exprime, porque é um perfeito absurdo. A distância a que a encontro quando a comparo com a demofilia, ou seja, o amor ao bem comum mostrado pelos nossos Reis, até ao advento das doutrinas iluministas, é tal que, embora contrariadíssimo, não posso, por indeclináveis exigências do estilo epistolar, apresentá-la aqui. Mas se, por um imperativo de ordem formal, tenho de sujeitar-me a não me alongar mais, direi, ainda e tão-somente, que isso até se torna escusável por uma razão já de categoria substancial: é que, Senhor General, os momentos que se avizinham são os da hora da milícia da acção. Assim, a parada terá de ser sua (5).

Arranque, pois, V. Ex.ª. Prepare-se para dotar o País de um governo de autoridade efectiva (ainda há, em Portugal, homens capazes de desempenhar a correspondente função dentro desse quadro).

Aponto então, a V. Ex.ª, o caminho da ditadura? --- Pois que dúvida há? A não ir por aqui, vejo bem próxima a tirania da rua, que é sempre canalha, a que logo se seguiria o jugo comunista, formal ou sob a capa de um presidencialismo eanista (6).

Deus guarde V. Ex.ª!


Joaquim Maria Cymbron



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  1. Lus. I, 10, vv. 1-2.
  2. Estas linhas foram escritas antes da queda do muro de Berlim. Nessa altura, o modelo político e económico do Leste ainda era visto como um perigo real. Agora, há quem creia que foi arredado para o armazém das velharias e, portanto, que se extinguiu a ameaça que ele representava. Ilusão nefasta, que vai acarretar terríveis consequências se não abrimos os olhos e reagimos a tempo. O comunismo continuará vivo, enquanto o dinheiro pesar cada vez mais na balança de todos os valores. Fiel à táctica de sempre, o comunismo não desempenhará contra o capitalismo o papel do antagonista que combate o seu inimigo, mas será alguém que o acompanha na rota de destruição da pessoa humana, porque tanto se é escravo debaixo do chicote, como de salários, reformas e outras condições económicas asfixiantes, que atiram connosco para o limite da sobrevivência.
  3. Há pouco tempo, subira ao poder a coligação que ficou conhecida como Bloco Central.
  4. O discurso não mudou de então para cá: o que deixa o lugar, é sempre o malfeitor!
  5. Tropa sem comando é o mesmo que um corpo sem cabeça; mas chefe sem soldados nada faz. Por isso, mais angustiante do que saber se há chefe militar disposto a levantar-se pela Pátria, é a incógnita da resposta a esta pergunta --- onde está hoje a tropa? Já naquele tempo não reagiu, suportou quantos enxovalhos lhe deitaram em cima. Terá tomado consciência de que a situação nos coloca uma questão de vida ou de morte colectiva? Se os militares não aparecem, o estado de necessidade levará à criação de forças populares! Ora isto é extremamente grave: a guerra conduzida por exércitos regulares já é um duro flagelo; do outro modo, será uma catástrofe de muito maiores proporções. Mas que em breve se terá de optar, lá isso é certo.
  6. Mais uma vez se remete o leitor para a data em que foi escrita a carta, e se lembra que era Presidente da República Ramalho Eanes, um homem que pisa bem todos os tabuleiros do xadrez político. Não é simples peça decorativa, contrariamente ao que muitos julgam, e não há que admirar se ele voltar à ribalta política, agora que é apoiado pelo bastião de um liberalismo que se diz católico --- Opus Dei. Liberalismo católico é como democracia-cristã: uma contradictio in terminis. Assim como o Cristianismo não pode ser democrático, também o liberal não é católico. Serão democratas, uns; liberais, os outros; e até os há que são ambas as coisas. Mas de cristãos e católicos, só a capa. O liberalismo, em economia, dá o capitalismo: daí que Ramalho Eanes possa vir a ser a figura viva da sujeição da nossa Pátria à plutocracia mundial!


JMC