terça-feira, 16 de outubro de 2012

A ARTE DO MANDO


Há mais de quarenta anos, a bordo de uma LFG navegando no Cacheu, seguia uma força de fuzileiros que, daí a poucas horas, desembarcaria para entrar em acção.

Na câmara do navio, naqueles momentos que precediam um curto sono, encontrava-se reunida a oficialidade que ia participar na operação. Discorria-se sobre os mais diversos assuntos, em ameno tom coloquial. Eis senão quando o Comandante daquela força, casualmente, declara diante de todos qual seria a sua reacção punitiva a determinado facto abstracto, se este se viesse a concretizar em área da sua competência. Alguém deixou escapar que isso contrariava o disposto na OSN. Sem se impressionar, o Comandante respondeu prontamente: «Aqui, não conheço a OSN. A OSN sou eu!»

Certa filosofia sempre se sentiu arripiada perante quem revela tanta confiança na própria força. Por mim, nunca soube se os seus cultores agem por convicção, se por inveja. Muito provavelmente será por inveja, porque não é qualquer um que pode mostrar a segurança do autor da frase que citei. É preciso possuir autoridade natural e ser dotado de prudência, a mais caprichosa das virtudes morais porque sem ela nenhuma das outras existe.

Nunca vi este Comandante abusar do poder. E quando se é feito desta têmpera, que falta fazem os regulamentos escritos? A lei, com excepção da lei eterna, existe para o homem e não o homem para a lei. É por estar vertida no papel que a ordem estabelecida é mais justa do que aquela que se vai criando na prática constante do dia-a-dia? Haja decoro!

O CJM, o RDM, a OSN ou quaisquer outros diplomas jurídico-militares daqueles tempos tinham uma valia indisputável, mas nem tudo isto somado chegava para conduzir homens ao combate. Vai-se à luta à voz de quem é Chefe. E o Chefe não impõe nada, nem é eleito; o Chefe impõe-se e é aceito como tal! Quando muito, se as circunstâncias requerem acto mais sonoro, o Chefe é aclamado! Mas a aclamação do Chefe, como sucedia em Cortes aos Reis da antiga monarquia portuguesa, não tem efeito constitutivo da sua dignidade, mas sim de reconhecimento dela!

Da memória de um episódio vivido na Guiné, falei da noção que tenho do que é o Chefe. Pouco escrevi, porque há conceitos que ou se colhem por intuição, ou de nada servirão os mais extensos e minuciosos tratados, para além do duvidoso mérito de conseguirem pôr à prova a capacidade da paciência de quem os lê.

E também lembrei o passo dos nossos Reis em Cortes, para ilustrar a feição juridica que assume a cerimónia da aclamação. De resto, aqui principia e aqui deve terminar toda a aproximação porque, nos dias que correm, a única assimilação possível entre Rei e Chefe é a de que Portugal está órfão de Rei que seja um Chefe: por direito dinástico, não se vislumbra uma só figura com dimensão para tão alta e exigente missão!


Joaquim Maria Cymbron