quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O LIBERALISMO E A REPÚBLICA


Comemora-se hoje a solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu. É um dos mais festivos dias da liturgia católica, este em que celebramos um dos momentos da Sua vida, todos eles entranhadíssimos no Orbe Católico.
É meu propósito dedicar à SS.ma Virgem as linhas que seguem, no que nelas houver de virtude, e pedindo-Lhe ao mesmo tempo que interceda pela terra portuguesa!


Jaz Portugal órfão de Rei. E é uma triste orfandade porque não há Rei de facto, nem de direito. 

O cabeçalho das palavras, que aqui deixo, pode arrastar à ideia de que a responsabilidade deste infortúnio é toda do liberalismo e do sistema republicano. Está errado: eles têm culpa do desfecho produzido, grande culpa até, mas não uma culpa exclusiva. Parte da culpa que não lhes cabe é da responsabilidade de quem, na altura própria, devia ter levantado a bandeira da monarquia genuína para voltar à tarefa da restauração legitimista, sem o ter feito. E a omissão desse dever teima em manter-se. 

Aliás, não é uma coroa encimando o escudo nacional que dará corpo à bandeira que não se ergueu, uma vez que corpo sem alma é matéria informe. Portugal só regressará à Tradição, se recuperar a força anímica que o tornou na Nação Fidelíssima. A culpa de uma orfandade real descobre-se, em primeiro lugar, numa linha dinástica que está longe, muito longe mesmo da majestade, do esforço posto na luta e do amor ao sacrifício dos nossos antigos Reis; vêm depois os áulicos, mestres na lisonja, indiferentes ao destino da Pátria, sobrenadando no meio da procela desde que lhes garantam a sobrevivência de uns títulos bolorentos; e, por fim, de forma mais difusa, aparecemos todos os que, até hoje, nos mostrámos incapazes de cumprir as nossas obrigações. Enquanto isto durar, o que se vir e ouvir a respeito de uma realeza extinta, ou é canto fúnebre de sufrágio de mortos, ou não passa de um folclore de péssimo gosto.

O liberalismo autointitulado de monárquico recolheu o património da Revolução Francesa, na qualidade de herdeiro fiduciário, e por morte transmitu à República o fideicomisso que recebera. Não foi, contudo, a República algoz do liberalismo pretensamente monárquico? Não é isto suficiente para a tornar indigna de suceder? De forma alguma, porque não cometeu qualquer crime contra aquele de quem proveio a herança: acelerando as condições para a defunção do liberalismo que aqui tratamos, e criando outras, a República apenas foi cúmplice no suicídio gradual daquele sistema, mostrando-se com isso fiel executora da vontade do autor da sucessão --- o espírito revolucionário da Bastilha. A parcela de violência verificada na passagem do acervo, já muito dilapidado, é de regra nos casos em que o cedente, embora cônscio da obrigação que sobre ele impende, se aferra aos bens deixados para reverterem a favor de terceiro. Não se andará muito longe se pensarmos que são como rixas dentro de uma mesma família. Brigas tanto mais acesas quanto é igual ou próximo o grau de maldade existente de um e de outro lado. Estas desavenças são normais entre parentes carregados pelo peso enorme de uma hereditariedade que é má.

Se considerarmos falso que tudo se processou dentro de uma sucessão superiormente traçada, também aí não se quebra a sequência. Teremos então que a República, que parecia não passar de uma simples bastarda desejada, se chocou com o liberalismo por forma acidental. Levada pela sua índole, que é promíscua, agitauit connubia more ferarum e apareceu nas vestes da oclocracia, que nos esmaga fisicamente e nos destrói moralmente. Nem quarenta anos de continência foram suficientes para a lavar do pecado: o incesto praticado tinha de gerar uma filha de coito danado.

Escusado será indagar de que lado está a razão, porque razão, nos agentes daqueles desmandos, sempre foi palavra de significado desconhecido. O que conta é a linha que não se quebra: tão herdeiros são uns como os outros, apesar de uma legitimidade nula por mais que a legalidade os cubra de títulos sucessórios. São efectivamente herdeiros, mas herdeiros oriundos, sem qualquer excepção, de uma união condenada pela ética. Daí o serem ilegítimos de origem. E carecem ainda da legitimidade que mais conta --- a de exercício --- defeito esse visível no modo como usam o poder usurpado: servem-se dele como o proprietário frui o bem de que é dono, esquecendo a função social do seu direito.

Num livro, todo ele respirando cabala da primeira à última página, essa ocupação a que alguns concedem foros de ciência, mas que não é propriamente para ser levada a sério, e apesar do esoterismo que costuma acompanhá-la, não obstante isto que não é nada pouco, dessa obra colhe-se um ensinamento precioso e cujo acerto é indisputável: vivemos sob o império da plebe, entendida a plebe como o clero, a nobreza e o povo que se encontram em grau degenerado (1).

A plebe é a comunidade política cedendo aos instintos mais vis da natureza animal de cada homem. A sociedade bestificou-se. E a legião hoje dominante empesta cada vez mais os ares com o hálito mefítico que exala. Impera pela fatalidade da penúria moral a que chegámos, mais do que por qualquer outra razão. Direito, entendido este como o poder legítimo na raiz da sua origem, na forma como se exerce e, sobretudo, nos fins para que se ordena, isto é, um direito verdadeiro, uno e bom, desse direito nem ponta dele. Méritos pessoais, não se enxerga nenhum!

A turbamulta trepou e foi instalar-se no topo da hierarquia do Estado: encontra-se na Presidência; passeia-se por S. Bento; senta-se nas cadeiras do Governo; e o mais aterrador é que já se espalha dentro dos muros do que devia ser o santuário inviolável de qualquer poder soberano, o seu último bastião --- os Tribunais. Porém, não é toda esta gente que detém realmente o poder: grande parte dela é submissa e deixa-se levar por forças ocultas. Num quadro destes, que podemos esperar, principalmente quando uma podridão nauseabunda rói a sociedade civil, coberta de chagas pestilenciais que os autênticos senhores do poder já nem conseguem esconder nos seus conventículos secretos? A consanguinidade pútrida, que une liberalismo e república, não podia deitar frutos diversos dos que temos diante dos olhos. Para isso foi projectada e levada à prática.

No entanto, quando pensamos que a iniquidade trepou ao cume que é possível alcançar, reparamos que falta qualquer coisa. De resto, a falar verdade, na iniquidade ou com ela, não se sobe; apenas se desce.

E nem outra coisa podia acontecer. A iniquidade é negação de Justiça, está privada desse valor, o qual, nessa qualidade, não conhece limite porque se reconduz a Deus, o Ser Infinito por excelência. Daqui, que seja impossível ao vício tocar no fundo: os defeitos podem estar mais ou menos privados de perfeição, mas há algo que sempre sobra. De outro modo, seria ir atrás do nada, tarefa interminável ou, caso se prefira, busca infrutífera porque o nada não existe. Temos assim que o Mal não conhece a profundeza máxima, nem nunca a atingirá. E não é assim por ser infinita a sua profundeza: o que é infinito é o Bem de que o Mal é privação. Sustentar o contrário seria equivalente a afirmar a coexistência de duas forças com o mesmo grau de poder, e que apenas se distinguiriam por se opor uma à outra.

Essa gnose não é somente uma heresia religiosa nem uma heterodoxia filosófica: ela é, acima de tudo, um atentado à mais elementar lógica; constitui a dialéctica de um absurdo que surpreende; e choca de tão primária que é. Nem a maldade é capaz de sustentar tão monstruosa ideia, porque, se em consciência o fizesse, seria não somente má como principalmente estólida.  Com efeito, só o puro transtorno mental pode conceber um Infinito dividido em metades que lutam entre si. E, nessa disputa, a desenhar-se vitória para uma delas, o resultado desse conflito significaria desequilíbrio de forças, o que contradiria a base da doutrina dualista. Isto é: quando há choque entre virtude e vício, é certo que, na dimensão temporal, cada uma dessas porções antagonistas não pode, ipso facto, ser infinita; nem o Infinito se quebra sob pena de ser o que se quiser menos infinito.

Facilmente se depreende como tudo isto não vai além de um delírio mais ou menos febricitante, sendo de realização impossível o que nele se proclama. O Infinito não tem igual, porque é o Absoluto! Logo, quando se diz que a desordem chegou a um ponto no qual o caos não pode ser maior, labora-se num erro de nefastas consequências. Para baixar, como resulta do que acaba de expor-se, a escada oferece sempre mais degraus!

O passado das convulsões sociais é um cortejo de transformações, onde a ambição invejosa, como elemento motor, não está certamente ausente. Não se desejando de modo algum defender que o trajecto foi igual em todos os passos dados, sirva de exemplo o padrão de civilização no qual Portugal se formou: ao aristocrata deu-lhe para ser rei; o burguês quis viver à lei da nobreza; o descamisado procura o dinheiro que telinta no bolso dos ricos.

E o ideal da igualdade, que papel joga no meio deste drama? Nas bocas dos seus actores, assume destacado relevo a parte que ali toma. Custa a acreditar. A igualdade que liga os homens é a da vocação de santidade com que Deus nos criou a todos. Mas a plebe é crente? A plebe já nem blasfema: a plebe ignora Deus! Pelo que a igualdade de que falarem será tudo menos a igualdade do Evangelho. E fora desta igualdade, qualquer outra será pura ilusão de uns e, noutros, uma descarada mentira.

Qual das revoluções apontadas trouxe a igualdade aos povos? Chamar-se-á isso à desolação de uma miséria crua e que o tempo torna mais extensa, que só não está em perfeita simetria com a opulência porque esta é cada dia mais restrita em número? Será igualdade encherem-se os vencedores dos privilégios contra os quais se insurgiram? Ou pretende dar-se esse nome à descida de uns para que outros subam? Isto é disposição  vertical, justa ou injusta consoante está ou não ao serviço do bem comum. E só nesta escala pode a insubordinação dizer-se legítima, se vem para combater a tirania e salvar a comunidade.

Acabam de ser enunciadas duas condições para que se recorra à rebelião: causa iusta e intentio recta. Falta o terceiro requisito: auctoritas principis (2). Ora este, ainda que não fora a degradação a que assistimos, seria precisamente o de maior melindre: neste momento, quem é o príncipe? No reino da Monarquia, não há. Já foi dito e não vale a pena insistir. E fora dessas fronteiras? É verdade que chefe para um povo, sempre se descortina; o contrário é que não. Todavia, ainda se achará, no conjunto de pessoas ao qual o vocabulário corrente continua a chamar povo português, aquela coesão mínima que permita considerá-lo como grei humana? Suposta esta existência, pode ser que brote o chefe. Deus o permita!

Mesmo assim apetece perguntar se as ruas de acerba amargura, que penosamente vamos percorrendo, não serão o caminho da expiação de um pecado social. Caiu em desuso falar de pecado, até do pecado individual, mas a verdade é que aquele pecado existe: é o esquecimento grave e agudo da lei divina por parte significativa de um povo. A menos que entre nós se encontrem os dez justos que seriam suficientes para livrar Sodoma e Gomorra do castigo que sofreram, tenha-se presente a certeza de que o pecado social se paga já neste mundo. Se for o caso, a redenção só poderá vir de uma catarse colectiva. Catarse difícil de conceber, se olharmos para a eficácia que procuramos e que é, no fim de contas, o que importa. E justamente por ser nestes termos difícil de conceber, porque exige muito e porque o povo (a existir ainda tal figura) está debilitadíssimo, não parece que a suspirada catarse venha a ser coroada de êxito sem uma intervenção miraculosa.

Que tem o milagre a ver no meio de um negócio humano, como é este exemplo de um dos  desconcertos saídos do ventre da política? --- Tudo! Porque a ligação entre o natural e o sobrenatural é íntima, permanente e indestrutível. Alguém haverá tão insensato e temerário a ponto de tentar estabelecer o divórcio entre Deus e a Sua obra? Está porventura o escultor proibido de talhar a estátua como lhe apraz; o pintor de cobrir a tela com o que lhe dita a inspiração; o escritor de escrever como mais gosta; ou o compositor de encher a pauta com as notas que soam dentro de si? Quem se atreve ao desatino de o afirmar?

Qualquer destes artistas, concluída a obra, eliminará as imperfeições que lhe descobrir, o que até poderá suceder longo tempo depois de a ter terminado. Agem deste jeito, porque eles próprios mudam. Deus não precisa de prazos, nem corrige o que saiu de Suas mãos, porque é Acto Puro e à Sua providência não escaparam as ocasiões e os momentos em que  interviria no governo do mundo com um influxo especial. É isto o milagre.

Naquilo que nos ocupa e aflige: neste caso, o milagre será como o gesto de um Pai extremoso, que carrega nos braços o filho depauperado e o transporta de regresso a casa!


Joaquim Maria Cymbron 
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  1. António Telmo --- História Secreta de Portugal, Editorial Vega, Lisboa, 1977, p. 28.
  2. S. Tomás de Aquino, O. P. --- Summa Theologica, II-II, q. 40, a.1.
 JMC

sábado, 8 de junho de 2013

O DEZ DE JUNHO EM BELÉM


O Dia de Portugal é uma data venerável. Os primeiros encontros de Belém ainda foram nesse sentido. Mas logo se perdeu o rumo, convidando personalidades que ficariam muito bem a celebrar o 25 de Abril.

Sem o propósito de desfeita para ninguém (não conheço o cenário de todas as comemorações), só vi uma excepção honrosa ao triste quadro de afastamento do primitivo ideal que animou os antigos combatentes. Refiro-me à presença da Dig.ma Viúva do egrégio C.te Oliveira e Carmo e de sua Família; à presença e à participação daquela grande Senhora, exemplo vivo do muito que as Mulheres Portuguesas deram à Pátria, sofredoras e alheias às honrarias do Mundo, confirmação plena de que, por trás de um grande Homem, há sempre uma grande Mulher. Seria injusto, se não destacasse também as luminosas palavras de sua gentilíssima neta: se ela não se encontra isolada no meio da juventude, há razões para ter esperança!

Não voltarei a Belém, se não recuperarmos a intenção com que se arrancou no início. Ao Restelo, sim, mas só para embarcar numa nova epopeia, epopeia do espírito, epopeia da honra e do brio, da dignidade e da honestidade. Enfim, uma epopeia capaz de nos encher novamente daqueles valores morais que engrandeceram Portugal, devolvendo-nos o legítimo orgulho de sermos filhos de uma Pátria bela e nobre.

O resto, o poder temporal, isso virá por acréscimo!

Joaquim Maria Cymbron

sexta-feira, 29 de março de 2013

UM GRITO DE VIDA


     Notável a afirmação de vontade que sacode a França.
    O que ali ocorre não é questão meramente nacional e, por consequência, assunto interno daquele país. Apesar de girar à volta de uma lei francesa, o seu objecto é mais profundo e salta fronteiras: diz inegavelmente respeito ao mundo inteiro.
    Portanto, resolvi deixar aqui um curto texto aplaudindo o que lá sucede. É uma homenagem a quem protagoniza aquela luta. Esses tornaram-se credores da gratidão de quantos aspiram à ordem natural.
    Travando-se o combate em solo francês, parece-me que em língua gálica é que devo expressar a minha admiração por quem o leva a cabo com tanta determinação.

La France – pas celle de la Bastille, celle de Robespierre, celle du Petit Corse, celle d’ une Europe prostituée – mais la France de Clovis et de Saint Louis, la France de Jeanne d’ Arc, la France de la Vendée, la France fille aînée de l’ Église, enfin, la France authentique, cette France n’ oublie pas son baptême.

Ce combat,  c’ est le combat de la philosophie de l’ Être opposée a l’ anéantissement. Il est pourtant le combat de la civilisation contre la barbarie.

Çà, c’ est bien la vraie France: s’ il faut dépaver, elle dépave; s’ il faut marcher en règle, elle marche; s’ il faut monter au sacrifice, elle monte. Comme les martyrs, comme les Chouans!

 

Joaquim Maria Cymbron

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

OS VENTOS DE ROMA



Um exército batendo em retirada não é a mesma coisa do que um exército em debandada. É provavelmente a mais difícil de todas as manobras militares e a que exige maior coragem.


O exército, que inicia uma retirada, nem por isso desiste de lutar. Posto diante de um movimento do inimigo, ameaçando a destruição total das suas forças, esse exército apenas se prepara para novos combates que lhe abrirão o caminho da vitória. Prefere perder uma batalha para ganhar a guerra.

Quando é este o quadro que determina a retirada, estará louco ou é traidor o Comandante que não a ordene. De igual modo, se há-de comportar o Chefe que sinta diminuídas as suas capacidades e por isso entregue o mando das suas tropas ao que mais condições reúna para recolher tão pesado encargo. Com esta atitude mostra que se encontra de perfeito juízo e dá provas de humildade.

O governo da Igreja é o comando do mais formidável exército deste Mundo. E porquê? Todos o sabemos, homens de boa vontade e quem, para desgraça sua , não quer sê-lo: a Igreja trava a mais feroz e rude peleja que pode existir, porque a Igreja trata da salvação das almas opondo-se assim ao Anjo da Perdição. Este combate durará até à consumação dos tempos, porque o ódio de Lúcifer ao Criador não se extingue: não podendo derrubar Deus, procura atingi-lo no que mais querido Ele tem, ou seja, a criatura humana.
Quando o Chefe do povo de Deus se decide a colocar nas mãos de quem lhe suceder os títulos da sua potestade, não fica atrás do cabo de guerra que manda o exército retirar ou pede para ser substituído. E devemos ficar muito mais sossegados do que os soldados daquele exército, porque o novo Pescador de Homens goza da mesma promessa feita por Cristo a Pedro (1).
Por índole e formação, acredito piamente nas aparições de Fátima e nos imensos tesouros espirituais que ali se encontram. Limito-me a acrescentar que Fátima, longe do esoterismo e da cabala, de que muitos gostam de a rodear, nos traz com meridiana clareza uma notícia que, penso eu, encherá de legítimo gozo e consolará todos os devotos daquele santuário: numa das mensagens que a Virgem Santíssima transmitiu aos videntes, foi-nos legada a garantia de que em Portugal sempre se guardaria o dogma da Fé. Parece-me que este privilégio não será exclusivo dos Portugueses, porque são filhos de Deus todos os seres humanos e por todos Cristo derramou o Seu bendito sangue, conquanto nem todos aproveitem esse sacrifício (2). Daqui, o ser-me muito difícil compreender a inquietação que se vive nalguns meios, os quais fundados no que dizem ser o conteúdo do terceiro segredo, vêem nesta resignação de Bento XVI o prenúncio da chegada do Antipapa, de mistura com todo o cortejo de vaticínios funestos que tal evento arrastará consigo. 
Não há dúvida de que grandes convulsões se preparam no campo político, económico e social. Isto parece-me claro e certo no domínio do que é temporal, porque é matéria de um conhecimento racional, tirado da lição que a vida nos vai oferecendo. Efectivamente, os homens não são os mesmos nas idades que passam umas após outras, mas espaçadamente voltam ao mesmo. A história é, por isso, uma escola de como se pode ler, no tempo pretérito, o que o futuro nos reserva. Mas prever o dia a dia da Igreja, até que esta complete o trajecto que lhe falta cumprir em direcção à Terra da Promissão, isso exige muito mais do que a ciência humana é capaz: requer inspiração divina que só à autoridade de Roma cabe ratificar.
Eleito por um conclave assistido pelo Espírito Santo, alma do Corpo místico de Cristo (3), Bento XVI, também iluminado pelo Espírito Santo, aceitou a eleição. Recuso-me a crer que a sua decisão de resignar não tenha sido, por igual, inspirada desde o Céu. De contrário, seria um trânsfuga, pelo que não fariam sentido todos os transportes de um carinho que justamente lhe vem sendo dispensado.
Ao invés de muitos que descobrem sinais apocalípticos nos últimos acontecimentos de Roma, confio que assim como veio João Baptista a preparar os caminhos do Messias, também Bento XVI seja o precursor do Papa que há-de começar o ingente trabalho da restauração.
Virá um dia em que todos renunciaremos aos poderes que tivermos, poderes mais ou menos limitados, segundo Deus nos dotou ou nos permite usá-los: esse dia é o dia da nossa morte. A diferença está em que os governantes no domínio do que é temporal deixam o destino das comunidades, onde foram dirigentes, nas mãos dos que lhes sucedem, os quais podem desbaratar o activo da herança. Ora isto não acontece com o Papado, se olharmos ao que é verdadeiramente necessário à saúde do povo de Deus.
Se Sua Santidade voltasse atrás, aí seria motivo para ficarmos seriamente preocupados. Um Papa não sai porque lhe gritam “rua!”; nem fica porque lho pedem. Uma resolução, em matéria tão grave como esta, não é o mesmo que um ensaio de popularidade no estilo do que costumam fazer os políticos demagogos.
Honremos Bento XVI com a nossa submissão, até ao termo do seu Calvário, não como quem se vê diante do facto consumado, mas em total conformidade à vontade do Pastor Universal, sem discutir o mérito da iniciativa que tomou.
Guardando a dignidade de Papa emérito, Sua Santidade não cria na Igreja nenhuma bicefalia porque, relativamente ao seu sucessor, nunca poderá ir além do que era Paulo para Pedro: o primado está com Pedro, como foi então e continuará até que Cristo venha recolher a sua porção, e receba do Pescador as chaves que um dia lhe entregou.

Fé e esperança, porque não se afundará a barca que transporta os herdeiros do Reino.

Assim Deus me salve!



Joaquim Maria Cymbron
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  1. Mt. 16, 18.
  2. A respeito disto, entre muitos fundamentos, o grande Concílio Tridentino é claro e peremptório: Dz. 794; 795; 827 (aqui,  anatematizando quem negar a doutrina subjacente ao que se sustenta no texto); ib.,1096 (Inocêncio X, no meio de muitas censuras, acaba por chamar herética a uma proposição de Jansénio que ousa contrariar o alcance universal da satisfação dada por Cristo) ; ib.,1294 e 1295 (onde Alexandre VIII continua o ataque aos erros dos seguidores do Bispo de Ypres).
  3.  Muito perto de nós, sem o mínimo desvio à linha do magistério eclesiástico e dentro da mais pura tradição patrística, o Concílio Vaticano II confirma o exposto (LG, 7).
JMC



quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

NO METROPOLITANO DE PARIS

 
Não há dúvida que sem dinheiro a vida é impossível. Mas nem tudo na vida se reduz a dinheiro: estão nesta categoria todos os bens que não são quantificáveis. Conto aqui um episódio, que é bom exemplo do que acabo de afirmar e o qual, apesar de vivido em circunstâncias particularmente duras, nem por isso deixa de constituir uma das lembranças mais gratas de toda a minha vida.

À data do desastre --- 25ABR74 ---, encontrava-me em Angola à espera de entrar nas Forças de Intervenção do Comando-Chefe daquela Província. Era a minha segunda ida a África para defender aquele terrão. Escusado será dizer que o sonho de poder continuar o combate, até que se alcançasse uma paz justa, ficou anulado pela traição que se conhece.

Entretanto, dava-se o 28 de Setembro na Metrópole. A 03OUT74, era eu detido, em Luanda, por ordem de Rosa Coutinho. Assim estive poucos dias (três semanas e mais qualquer coisa), mas com a nota muito incómoda de ter passado esse período praticamente isolado e sem saber quanto tempo ia durar o que veio a ser um cárcere curto.
 
Quando me libertaram, passei à África do Sul e daí, decorrido mês e meio, voei para Madrid. Em Espanha, mandaram-me para Barcelona, onde estive uns quatro meses. No rectângulo português, ia viver-se o Verão Quente. Antes de entrar nele, tive de deslocar-me a Paris.

E é aí que sucede o que me propus narrar. Todo este relato teve a finalidade de mostrar um quadro que, dadas as razões, não era nada agradável, o que ajudará  a compreender a emoção sentida por mim na ocorrência que segue.

Percorria eu os corredores do Metro, bastante atribulado, quando começo a ouvir uma música lindíssima. Saía das cordas de um violino: Brahms? Beethoven? Sempre confundi os dois, nalguns trechos. O compositor até podia ser um terceiro. Mas, para o efeito que trato, isso de nada interessa: sei é que a música parecia caída do Céu. Já não me lembro se caminhava na direcção de onde vinha o som. É provável que eu tivesse feito um desvio, tal a magia daquele momento.

O certo é que ia caminhando para lá, e nisto, à medida que descia umas escadas, começo a ver a figura de um homem que arrancava aquelas notas de tanta beleza. Era cego. Tinha aos pés, como é costume nestes casos, uma caixa onde se via dinheiro. Aproximei-me e, em termos genéricos, disse-lhe que me encontrava ali condicionado por causas muito especiais, não podendo levar-lhe nenhum socorro material. Acrescentei ainda que, mesmo tendo os bolsos a abarrotar, supunha que não conseguiria pagar-lhe o conforto que recebera com a música por ele tocada.

Não menos comovido que eu, retorquiu-me num tom que parecia mais agradecido do que ficaria se eu o tivesse coberto de moedas!

 
Joaquim Maria Cymbron