quinta-feira, 15 de agosto de 2013

O LIBERALISMO E A REPÚBLICA


Comemora-se hoje a solenidade da Assunção de Nossa Senhora ao Céu. É um dos mais festivos dias da liturgia católica, este em que celebramos um dos momentos da Sua vida, todos eles entranhadíssimos no Orbe Católico.
É meu propósito dedicar à SS.ma Virgem as linhas que seguem, no que nelas houver de virtude, e pedindo-Lhe ao mesmo tempo que interceda pela terra portuguesa!


Jaz Portugal órfão de Rei. E é uma triste orfandade porque não há Rei de facto, nem de direito. 

O cabeçalho das palavras, que aqui deixo, pode arrastar à ideia de que a responsabilidade deste infortúnio é toda do liberalismo e do sistema republicano. Está errado: eles têm culpa do desfecho produzido, grande culpa até, mas não uma culpa exclusiva. Parte da culpa que não lhes cabe é da responsabilidade de quem, na altura própria, devia ter levantado a bandeira da monarquia genuína para voltar à tarefa da restauração legitimista, sem o ter feito. E a omissão desse dever teima em manter-se. 

Aliás, não é uma coroa encimando o escudo nacional que dará corpo à bandeira que não se ergueu, uma vez que corpo sem alma é matéria informe. Portugal só regressará à Tradição, se recuperar a força anímica que o tornou na Nação Fidelíssima. A culpa de uma orfandade real descobre-se, em primeiro lugar, numa linha dinástica que está longe, muito longe mesmo da majestade, do esforço posto na luta e do amor ao sacrifício dos nossos antigos Reis; vêm depois os áulicos, mestres na lisonja, indiferentes ao destino da Pátria, sobrenadando no meio da procela desde que lhes garantam a sobrevivência de uns títulos bolorentos; e, por fim, de forma mais difusa, aparecemos todos os que, até hoje, nos mostrámos incapazes de cumprir as nossas obrigações. Enquanto isto durar, o que se vir e ouvir a respeito de uma realeza extinta, ou é canto fúnebre de sufrágio de mortos, ou não passa de um folclore de péssimo gosto.

O liberalismo autointitulado de monárquico recolheu o património da Revolução Francesa, na qualidade de herdeiro fiduciário, e por morte transmitu à República o fideicomisso que recebera. Não foi, contudo, a República algoz do liberalismo pretensamente monárquico? Não é isto suficiente para a tornar indigna de suceder? De forma alguma, porque não cometeu qualquer crime contra aquele de quem proveio a herança: acelerando as condições para a defunção do liberalismo que aqui tratamos, e criando outras, a República apenas foi cúmplice no suicídio gradual daquele sistema, mostrando-se com isso fiel executora da vontade do autor da sucessão --- o espírito revolucionário da Bastilha. A parcela de violência verificada na passagem do acervo, já muito dilapidado, é de regra nos casos em que o cedente, embora cônscio da obrigação que sobre ele impende, se aferra aos bens deixados para reverterem a favor de terceiro. Não se andará muito longe se pensarmos que são como rixas dentro de uma mesma família. Brigas tanto mais acesas quanto é igual ou próximo o grau de maldade existente de um e de outro lado. Estas desavenças são normais entre parentes carregados pelo peso enorme de uma hereditariedade que é má.

Se considerarmos falso que tudo se processou dentro de uma sucessão superiormente traçada, também aí não se quebra a sequência. Teremos então que a República, que parecia não passar de uma simples bastarda desejada, se chocou com o liberalismo por forma acidental. Levada pela sua índole, que é promíscua, agitauit connubia more ferarum e apareceu nas vestes da oclocracia, que nos esmaga fisicamente e nos destrói moralmente. Nem quarenta anos de continência foram suficientes para a lavar do pecado: o incesto praticado tinha de gerar uma filha de coito danado.

Escusado será indagar de que lado está a razão, porque razão, nos agentes daqueles desmandos, sempre foi palavra de significado desconhecido. O que conta é a linha que não se quebra: tão herdeiros são uns como os outros, apesar de uma legitimidade nula por mais que a legalidade os cubra de títulos sucessórios. São efectivamente herdeiros, mas herdeiros oriundos, sem qualquer excepção, de uma união condenada pela ética. Daí o serem ilegítimos de origem. E carecem ainda da legitimidade que mais conta --- a de exercício --- defeito esse visível no modo como usam o poder usurpado: servem-se dele como o proprietário frui o bem de que é dono, esquecendo a função social do seu direito.

Num livro, todo ele respirando cabala da primeira à última página, essa ocupação a que alguns concedem foros de ciência, mas que não é propriamente para ser levada a sério, e apesar do esoterismo que costuma acompanhá-la, não obstante isto que não é nada pouco, dessa obra colhe-se um ensinamento precioso e cujo acerto é indisputável: vivemos sob o império da plebe, entendida a plebe como o clero, a nobreza e o povo que se encontram em grau degenerado (1).

A plebe é a comunidade política cedendo aos instintos mais vis da natureza animal de cada homem. A sociedade bestificou-se. E a legião hoje dominante empesta cada vez mais os ares com o hálito mefítico que exala. Impera pela fatalidade da penúria moral a que chegámos, mais do que por qualquer outra razão. Direito, entendido este como o poder legítimo na raiz da sua origem, na forma como se exerce e, sobretudo, nos fins para que se ordena, isto é, um direito verdadeiro, uno e bom, desse direito nem ponta dele. Méritos pessoais, não se enxerga nenhum!

A turbamulta trepou e foi instalar-se no topo da hierarquia do Estado: encontra-se na Presidência; passeia-se por S. Bento; senta-se nas cadeiras do Governo; e o mais aterrador é que já se espalha dentro dos muros do que devia ser o santuário inviolável de qualquer poder soberano, o seu último bastião --- os Tribunais. Porém, não é toda esta gente que detém realmente o poder: grande parte dela é submissa e deixa-se levar por forças ocultas. Num quadro destes, que podemos esperar, principalmente quando uma podridão nauseabunda rói a sociedade civil, coberta de chagas pestilenciais que os autênticos senhores do poder já nem conseguem esconder nos seus conventículos secretos? A consanguinidade pútrida, que une liberalismo e república, não podia deitar frutos diversos dos que temos diante dos olhos. Para isso foi projectada e levada à prática.

No entanto, quando pensamos que a iniquidade trepou ao cume que é possível alcançar, reparamos que falta qualquer coisa. De resto, a falar verdade, na iniquidade ou com ela, não se sobe; apenas se desce.

E nem outra coisa podia acontecer. A iniquidade é negação de Justiça, está privada desse valor, o qual, nessa qualidade, não conhece limite porque se reconduz a Deus, o Ser Infinito por excelência. Daqui, que seja impossível ao vício tocar no fundo: os defeitos podem estar mais ou menos privados de perfeição, mas há algo que sempre sobra. De outro modo, seria ir atrás do nada, tarefa interminável ou, caso se prefira, busca infrutífera porque o nada não existe. Temos assim que o Mal não conhece a profundeza máxima, nem nunca a atingirá. E não é assim por ser infinita a sua profundeza: o que é infinito é o Bem de que o Mal é privação. Sustentar o contrário seria equivalente a afirmar a coexistência de duas forças com o mesmo grau de poder, e que apenas se distinguiriam por se opor uma à outra.

Essa gnose não é somente uma heresia religiosa nem uma heterodoxia filosófica: ela é, acima de tudo, um atentado à mais elementar lógica; constitui a dialéctica de um absurdo que surpreende; e choca de tão primária que é. Nem a maldade é capaz de sustentar tão monstruosa ideia, porque, se em consciência o fizesse, seria não somente má como principalmente estólida.  Com efeito, só o puro transtorno mental pode conceber um Infinito dividido em metades que lutam entre si. E, nessa disputa, a desenhar-se vitória para uma delas, o resultado desse conflito significaria desequilíbrio de forças, o que contradiria a base da doutrina dualista. Isto é: quando há choque entre virtude e vício, é certo que, na dimensão temporal, cada uma dessas porções antagonistas não pode, ipso facto, ser infinita; nem o Infinito se quebra sob pena de ser o que se quiser menos infinito.

Facilmente se depreende como tudo isto não vai além de um delírio mais ou menos febricitante, sendo de realização impossível o que nele se proclama. O Infinito não tem igual, porque é o Absoluto! Logo, quando se diz que a desordem chegou a um ponto no qual o caos não pode ser maior, labora-se num erro de nefastas consequências. Para baixar, como resulta do que acaba de expor-se, a escada oferece sempre mais degraus!

O passado das convulsões sociais é um cortejo de transformações, onde a ambição invejosa, como elemento motor, não está certamente ausente. Não se desejando de modo algum defender que o trajecto foi igual em todos os passos dados, sirva de exemplo o padrão de civilização no qual Portugal se formou: ao aristocrata deu-lhe para ser rei; o burguês quis viver à lei da nobreza; o descamisado procura o dinheiro que telinta no bolso dos ricos.

E o ideal da igualdade, que papel joga no meio deste drama? Nas bocas dos seus actores, assume destacado relevo a parte que ali toma. Custa a acreditar. A igualdade que liga os homens é a da vocação de santidade com que Deus nos criou a todos. Mas a plebe é crente? A plebe já nem blasfema: a plebe ignora Deus! Pelo que a igualdade de que falarem será tudo menos a igualdade do Evangelho. E fora desta igualdade, qualquer outra será pura ilusão de uns e, noutros, uma descarada mentira.

Qual das revoluções apontadas trouxe a igualdade aos povos? Chamar-se-á isso à desolação de uma miséria crua e que o tempo torna mais extensa, que só não está em perfeita simetria com a opulência porque esta é cada dia mais restrita em número? Será igualdade encherem-se os vencedores dos privilégios contra os quais se insurgiram? Ou pretende dar-se esse nome à descida de uns para que outros subam? Isto é disposição  vertical, justa ou injusta consoante está ou não ao serviço do bem comum. E só nesta escala pode a insubordinação dizer-se legítima, se vem para combater a tirania e salvar a comunidade.

Acabam de ser enunciadas duas condições para que se recorra à rebelião: causa iusta e intentio recta. Falta o terceiro requisito: auctoritas principis (2). Ora este, ainda que não fora a degradação a que assistimos, seria precisamente o de maior melindre: neste momento, quem é o príncipe? No reino da Monarquia, não há. Já foi dito e não vale a pena insistir. E fora dessas fronteiras? É verdade que chefe para um povo, sempre se descortina; o contrário é que não. Todavia, ainda se achará, no conjunto de pessoas ao qual o vocabulário corrente continua a chamar povo português, aquela coesão mínima que permita considerá-lo como grei humana? Suposta esta existência, pode ser que brote o chefe. Deus o permita!

Mesmo assim apetece perguntar se as ruas de acerba amargura, que penosamente vamos percorrendo, não serão o caminho da expiação de um pecado social. Caiu em desuso falar de pecado, até do pecado individual, mas a verdade é que aquele pecado existe: é o esquecimento grave e agudo da lei divina por parte significativa de um povo. A menos que entre nós se encontrem os dez justos que seriam suficientes para livrar Sodoma e Gomorra do castigo que sofreram, tenha-se presente a certeza de que o pecado social se paga já neste mundo. Se for o caso, a redenção só poderá vir de uma catarse colectiva. Catarse difícil de conceber, se olharmos para a eficácia que procuramos e que é, no fim de contas, o que importa. E justamente por ser nestes termos difícil de conceber, porque exige muito e porque o povo (a existir ainda tal figura) está debilitadíssimo, não parece que a suspirada catarse venha a ser coroada de êxito sem uma intervenção miraculosa.

Que tem o milagre a ver no meio de um negócio humano, como é este exemplo de um dos  desconcertos saídos do ventre da política? --- Tudo! Porque a ligação entre o natural e o sobrenatural é íntima, permanente e indestrutível. Alguém haverá tão insensato e temerário a ponto de tentar estabelecer o divórcio entre Deus e a Sua obra? Está porventura o escultor proibido de talhar a estátua como lhe apraz; o pintor de cobrir a tela com o que lhe dita a inspiração; o escritor de escrever como mais gosta; ou o compositor de encher a pauta com as notas que soam dentro de si? Quem se atreve ao desatino de o afirmar?

Qualquer destes artistas, concluída a obra, eliminará as imperfeições que lhe descobrir, o que até poderá suceder longo tempo depois de a ter terminado. Agem deste jeito, porque eles próprios mudam. Deus não precisa de prazos, nem corrige o que saiu de Suas mãos, porque é Acto Puro e à Sua providência não escaparam as ocasiões e os momentos em que  interviria no governo do mundo com um influxo especial. É isto o milagre.

Naquilo que nos ocupa e aflige: neste caso, o milagre será como o gesto de um Pai extremoso, que carrega nos braços o filho depauperado e o transporta de regresso a casa!


Joaquim Maria Cymbron 
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  1. António Telmo --- História Secreta de Portugal, Editorial Vega, Lisboa, 1977, p. 28.
  2. S. Tomás de Aquino, O. P. --- Summa Theologica, II-II, q. 40, a.1.
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