segunda-feira, 4 de agosto de 2014

PRINCÍPIOS INEGOCIÁVEIS

 
Princípios inegociáveis? Ignoro o que sejam! Haverá, porventura, princípios negociáveis? Em bom rigor e são critério dialéctico, julgo que qualquer princípio é inegociável, sob pena de trair a sua natureza de princípio. Assim penso, e conto vir a demonstrar como é correcto.
Tanto quanto alcanço, princípios, princípios sem mais --- e não sei de outra espécie, insisto, --- são os fundamentos sobre os quais assentamos a construção de uma doutrina, autênticos alicerces do edifício onde se guarda o sistema político, económico ou social que temos como justo. Ali se encerra a nossa filosofia de vida no que é temporal, sem nunca esquecer a vocação sobrenatural, esse convite à salvação eterna que a todos foi dirigido. Se a razão natural basta para atingir a certeza da existência de Deus (1), a fortiori pode o homem conhecer, com verdade lógica, os princípios mais adequados ao preenchimento do exemplar divino. São princípios imorredouros e, nessa qualidade, não sofrem qualquer tipo de arranjos espontâneos ou forjados.
 
Por isso, a doutrina, que acatamos, ou está conforme à verdade, ou anda afastada dela: no primeiro caso, são intangíveis os princípios em que fundamos as nossas crenças; na outra hipótese, também nada existe para negociar, porque a única opção, que se oferece, é corrigir o que há de errado com o propósito de encontrar o caminho da verdade perdida.
 
Àquele que se deixa assaltar pela dúvida de que são inegociáveis os princípios que formam as bases da sua mentalidade e da sua maneira de estar no mundo, se for honesto só lhe resta uma saída: rever os seus princípios, e se resultar que decaiu na convicção da bondade do credo até aí professado, crie então outra escala de valores, e apresente-se com nova identidade moral, assumindo o nome que lhe couber. Agora, sustentar que apenas meia dúzia de princípios merecem o estatuto da intangibilidade, eis aí algo que não hesito em repudiar.

Todos os princípios, na sua génese, na sua marcha e na sua finalidade, devem reconduzir-se à Unidade, à Verdade, à Bondade e à Beleza do Ser. Estes atributos transcendentais, os quais pela sua universalidade são absolutamente necessários, conferem ipso facto um valor indefectível aos princípios que neles encaixam, sem excluir nenhum. Uma simples excursão por terrenos da ontologia, e temos tudo o que a razão põe à nossa disposição, com suficiência plena, para resolver o problema da ascese pessoal ou do convívio com o semelhante.
Pergunto:

Contidos nos atributos enunciados, que espanto pode causar que todos os princípios tenham a mesma categoria? Com que autoridade se separam uns dos outros? Será demasiado pedir que se compreenda que há pontos de apoio, dos quais o agente arranca com o objectivo de tocar o cume da santificação, a que está chamado no plano misericordioso de Deus? Ora esses pontos são outros tantos princípios. Efectivamente, «(...) hoc nomen principium nihil aliud significat quam id a quo aliquid procedit;» (2). Como podem, pois, negociar-se se o seu objectivo é servir a efectivação dos princípios que alguns (e, neste segmento, bem) decretam que não permitem a mínima renúncia?
Quem se despir de preconceitos, terá de conceder que, no domínio do temporal, o Legitimismo é o único sistema capaz de responder ao que se quer preservar com a observância dos chamados princípios inegociáveis. Tem a exclusividade? --- Se atendemos à primazia da qualidade, a resposta é forçosamente afirmativa, porque é aquele que, se for aplicado observando a sua pureza abstracta, tanto quanto o homem pode aproximar-se do ideal, perfaz melius et conuenientius a nobilitante missão de orientar a cidade terrestre em direcção à cidade celeste.

Alianças escoradas nestes princípios, ditos inegociáveis, não servem a ninguém porque descaracterizam todos. É tamanha a amálgama que, a certa altura, não se defende nada: nem os princípios inegociáveis, nem os negociáveis, aceitando como válida tão triste e infeliz distinção. Os que se encontram em comunhão connosco, crendo no que classificam como princípios inegociáveis, se estão de boa fé, que se juntem a nós; se aguardam o contrário, será porque querem algo mais, e não têm de admirar-se se concluirmos que então se desvanece a sua recta intenção.
No esforço contínuo de penetrar na essência das coisas, não vejo outro direito além de poder requerer condições a fim de dar matéria e forma ao que é nosso dever realizar.

A obrigação de cumprir só na monarquia se manifesta com luminosa clareza, porque essa obrigação se reflecte na primeira figura da grei pelo simples facto do nascimento. Em mais nenhuma instituição humana, a consequência entre nascimento e serviço é tão estreita e inexorável.
O herdeiro do trono, por força do berço que o acolheu, recebe o encargo de servir, reinando; cada homem, ao renascer para a Graça através do baptismo, contrai outro vínculo que parece o oposto do anterior: reinar, servindo. Parece, disse eu. Mas não é. A sequência verbal não é suficiente para que dela se conclua pela diferença --- no fundo, é do mesmo que se fala porque Rei posto e gente comum, todos são herdeiros da promessa que dá o prémio onde houver serviço: só a servir é que se reina; e apenas se chega à coroa da bem-aventurança, quando se serviu. E o que daqui resulta há-de sempre ser para glorificação de Deus Omnipotente, sem o que se constrói em vão.

Se é verdadeiro o juízo de que viemos para servir --- e é piamente que nele acredito--- temos provada a excelência da forma monárquica para regimento dos povos. Falei de forma monárquica, a que se plasma nos moldes da monarquia tradicional, a única digna desse nome. Porque nos simulacros a que dão o nome de monarquia, não se descortina ponta de serviço real. Não o descortinamos, nem podemos avistar pela razão de que serviço pressupõe responsabilidade, e os reis dessas monarquias são irresponsáveis por definição constitucional. Ou antes: por defeito constitucional, um aleijão que algumas vezes transforma em pigmeu quem poderia ter sido um gigante.
No dia em que me convencer de que é negociável o princípio monárquico, será porque ou enlouqueci, ou perdi a noção do significado das palavras. Ao mesmo tempo, partindo da firme opinião de que nenhum princípio é negociável, sob pena de que, se o fosse, seria tudo menos princípio merecedor de veneração como desde o início venho sustentando, também não há razão para fugir a uma aliança circunstancial. O todo informe, desfecho fatal onde desembocarão os que se revolvem na incredulidade da existência perene do princípio legitimista, um princípio indestrutível como todos os princípios que não se dispõem a perder o foro daquilo que são --- princípios ---, passando à tranquibérnia do que calha dizer, esse amontoado sem rosto que nos permita saber de quem se trata, esse monstro colossal, insisto, não é propriamente o mesmo que lutar ombro a ombro. Momentos há, nos quais o combate lado a lado é não só lícito como até obrigatório.

De resto, a dicotomia princípios inegociáveis-princípios negociáveis gera um contraste, falso no seu âmago, e perigoso na sua prática. É uma situação muito próxima da teoria do mal menor. No entanto, para acertar ideias, cabe sublinharo que o mal menor, apesar da repugnância natural que desperta em nós, sempre tem a seu favor uma causa escusante: a não-exigibilidade, a qual não se verifica na questão aqui abordada, pelo menos com igual frequência e na mesma intensidade. Em contrapartida, o fabuloso confronto, que nos absorve, surge com uma nota agravante e que é o de ser mais enganador, porque tem a dose de alguma sedução. Com efeito, no momento de optar pelo mal menor, tem-se consciência do erro que comporta a nossa decisão; quem deixa para trás os pretensos princípios negociáveis, voga nas ondas de um mar de aparente bonança, mas corre o risco de soçobrar porque esqueceu o rumo de bom porto.
Nunca dei, nestas estranhas coligações, por nada de inegociável fora dos dogmas de quem não comunga connosco em toda a linha: os outros princípios, esses são negociáveis e, portanto, prescindíveis. Isto é uma desastrosa ilusão, porque é grande, mesmo enorme a probabilidade de acabar em tragédia. Antevejo --- e Deus me perdoe se é temeridade --- que ou fazemos o mesmo que Ulisses, ou, arrastados pelos cantos de novas sereias, iremos navegando de encontro às rochas que nos hão-de fazer naufragar.

Os anos e o estudo que os vem acompanhando confirmaram o que, talvez por índole temperamental, eu já intuíra: a rigidez nunca é vício próprio;  está sempre com os outros. E o meu passado não regista um episódio de cedência por parte dos que apregoam a sua própria flexibilidade. Por isso, surpreende-me a facilidade com que gente provadíssima na defesa da ortodoxia e da mais inconcussa fidelidade à Tradição se deixa embalar por melopeias, que são outras tantas embustices.
Ao longo destas linhas, mais de uma vez confessei abertamente a minha devoção política ao Legitimismo. Também ficou explícito como entendo que é um princípio inderrogável e o motivo por que o é:

Do direito, dispõe-se; o dever é para ser escrupulosamente observado. O peso deste fardo aumenta, à medida que se vai subindo na hierarquia do século. Ocupando a mais alta posição na escala humana da esfera temporal, a autêntica majestade real está condenada, em sumo grau, ao dever de servir. É a sua uia crucis, mas é igualmente por onde se vai desdobrando o caminho da sua ascensão à Glória. Como Salomão, saiba o Rei pedir sabedoria para exercer com êxito a sua espinhosa tarefa! (3)
Regresso, pois, à correspondência entre o direito e o dever. Acabei de afirmar que a razão de ser do direito está subordinada ao exercício do dever. Na curtíssima relação, que estabeleci, deixei categoricamente gravada a ideia de como o homem, mais do que titular de direitos, é sujeito de deveres. Nada mais acrescento a este respeito, porque se então as minhas resumidas palavras não convenceram, também não será agora pela extensão que virá o acordo.

Para mim, a ordem desta composição é evidente. E da evidência  não pode dizer-se que dispensa demonstração: a evidência nega a demonstração, porque dela se parte para provar o que se pretende. E até, no plano moral, não se tem notícia de santo que brade por direitos, mas sim preocupado pelas faltas cometidas e sempre animado da vontade de melhorar. Santo ou herói desprendido, que ambos são modos de santidade, nada pedem nem esperam em troca. Dão-se por inteiro para acrescentamento da Fé e em prol do comum. Leiam-se os hagiológios, compulsem-se os anais militares e nenhum desmentido ali se encontrará ao feito irrecusável que é o de uma dedicação constante a Deus e ao próximo, rota de sacrifício esta quantas vezes marcada pela oblação da própria vida.
É altura de concluir:

Os princípios não se negoceiam como se fossem mercadoria, cujo preço oscila ao sabor das flutuações próprias da lei da oferta e da procura. Há princípios genuínos e, a par destes, correm máximas que nos confundem, porque são trapaças inconscientes ou maldosas. Quem falar em princípios inegociáveis, na eventualidade de emitir um juízo certo, abre porta à existência de princípios negociáveis. Ora já se viu como todos os princípios têm de germinar, desenvolver-se e terminar na Verdade. Nessa medida são inegociáveis. A valer a opinião da existência de princípios inegociáveis, essa mesma opinião transportaria o morbo do relativismo. De facto, esta desgraçada divisão dos princípios não consegue impedir que se levante a interrogação de ser também negociável o princípio lógico-formal que afirma a sua suposta realidade: se a resposta for negativa, entra-se num processo indefinido; se se decidem pelo sim, então nada disseram. Pelo que não tem dignidade de princípio senão aquilo a quo aliquid procedit (4), que é coerente e que está acima de qualquer transacção!
 
  
Joaquim Maria Cymbron

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  1. ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Dz. 1806.
  2. S. Tomás de Aquino, O.P. --- Summa Theologica, I, q.33, a.1.
  3. 1 Rs. 3, 9.
  4. V. supra, 2.

JMC