domingo, 29 de novembro de 2015

JUSTIÇA E DIREITO

O texto, que segue, também pode ser encontrado no meu outro blogue.  Hesitei longamente onde devia publicá-lo: decidi-me por o fazer nos dois espaços, porque ele tem notas que lhe permitem encaixar bem num ou noutro sítio.
E isto para não dizer que era imperativo pô-lo aqui e lá! 
 

Duas palavras, dois conceitos e muita confusão à volta deles. Muitos pretendem identificar um termo com o outro. Andam mal. Por isso, erra quem disser que os Tribunais administram Justiça em toda a extensão deste vocábulo e na sua acepção íntegra; e erra, porque comummente o que fazem é ditar o Direito. Quando isto ocorre já nem tudo é mau, porque vezes há em que aqueles órgãos de soberania viram as leis do avesso e, não contentes com a façanha, não se ficam por aqui: vão mais longe, o que bem se nota quando soltam aos quatro ventos a notícia de ser Direito o que não passa de um grosseiro simulacro. Não será, no entanto, esta adulteração que porá estorvo à divisória entre Justiça e Direito, na sua linha teorética.

Porquê esta delimitação?
 
A primeira das palavras, que servem de cabeçalho, é de definição mais que difícil, porque, em estrito rigor, é de definição impossível. Com efeito, Justiça é um dos atributos divinos; como tal está repleta de um valor absoluto; e, portanto, nada mais que isto se pode afirmar dela. Sabemos que é um ideal a perseguir, meta que o homem nunca atingirá na sua plenitude. Por conseguinte, também as sentenças dos Tribunais só parcialmente poderão dar-nos uns vislumbres de Justiça. E até isto requer um corpo de magistrados isentos e sabedores, o que, infelizmente e pelo que toca a Portugal, é cada vez mais raro contemplar.
 
Quanto ao Direito, apenas é lícito conceder que se trata de um veículo de realização tendencial de Justiça, precisamente aquela que está ao alcance dos Tribunais. Como se vê, é distinto. Desde logo e sem curar da diferença de essência, que é profunda, ao Direito e à Justiça separa-os a distância que vai do meio para o fim: o Direito é, pois, um bem instrumental ao serviço de um valor perene. A diferença de natureza, na relação que estes termos mantêm, já marca muito. Nem essa diferença se desfaz, se uma aturada busca de Justiça animar o Direito: por mais louvável que isso seja, a verdade é que, para o efeito aqui tratado, tal busca não apaga a fronteira conceptual que tem o Direito a um lado e, do outro, a Justiça. De facto, não a anula, nem sequer a atenua no plano especulativo, acabando antes por salientá-la ainda mais.
 
Neste enunciado da sua pureza abstracta, parece irrefutável que a falta de conformidade entre os dois conceitos já é bem visível. Contudo, se continuarmos a desenhar o confronto, depressa se verá como essa disparidade se há-de tornar mais sensível.
 
Vale a pena fazê-lo:
 
Se Justiça e Direito tivessem igual identidade, teríamos formalmente duas consequências opostas como possíveis: ou a Justiça mudava de face, ao sabor das reformas jurídicas; ou era força aceitar que o justo encontra plena consagração na lei, se não preferíssemos sustentar que o legislador é justo, o que vem a dar no mesmo. Ora um mero exercício de análise, a par da realidade dos factos, mostram como estão desmentidas ambas soluções. Com efeito, a ideia de ser o Direito expressão acabada da Justiça, não é de admitir porque então cabia perguntar para que se muda a lei se ela é justa. E assim é que, enquanto a Justiça permanece, os sistemas de Direito sucedem-se no tempo e no espaço, significando isto que  a sua transitoriedade é prova de como ele não passa de um bem imperfeito. De modo que, como acima já se aflorou, teríamos que a cada ordenamento jurídico, no tempo ou no espaço, corresponderia uma Justiça distinta. Completo absurdo! Sabe-se que até os mais agnósticos e os maiores agitadores proclamam e aceitam a existência de princípios de Direito, que se impõem como sendo de observância para todos e desde sempre. Essas regras pretendem fazer Justiça e, por este modo, saciar a sede que todos temos desse termo, que é superior ao Direito porque se situa na esfera de tudo o que constitui o fim supremo do homem. Nesse caso, os princípios de Direito, a serem respeitados por todos, espelhariam uma imagem de Justiça. Mas todos sabemos que é um núcleo de valores muito restrito e que, de modo algum, comporta generalização. Apesar disto, porque no conteúdo destes princípios existe consonância entre o que o Direito defende e o que se afigura justo no âmbito assim delimitado, não há inconveniente em assimilar os dois conceitos, cuja antítese vem sendo estabelecida. A expressão verbal dos imperativos categóricos, ali formulados, é clara emanação da mais incontroversa e incontrovertida Justiça, com ela mantendo uma correspondência total, que ninguém ousou contestar até à data.
 
Ficou dito que ao Direito falta a característica de bem necessário que é atributo da Justiça. Esta é um valor que transcende o que é finito e contingente. Tem natureza de uma absoluta necessidade; o Direito é meramente contingente. Por isso, o Direito finda e a Justiça sobrevive. Se o Direito é instrumento para um objectivo chamado Justiça, quem quererá o meio se já alcançou o fim?
 
Não será demasiado temerário adiantar que uma das causas originantes da balbúrdia que vai dentro dos nossos Tribunais, que uma delas, repita-se, está no abandono da tradição jurídica portuguesa. Vai de moda a pandectística germânica: o povo alemão deve merecer-nos subido respeito pelos valiosos predicados que exibe nos múltiplos ramos do conhecimento, onde o da ciência do Direito não é excepção. Porém, isto não exclui o apreço pelo que é património nosso.
 
Se os nossos magistrados se ficassem  pela sistematização da matéria legislada, bem estaria porque é demais conhecida a inclinação pela ordem que aquela gente tem, e o escrúpulo que nisso põe. No resto, é um alarde de erudição entrajada numa roupagem de gosto bastante duvidoso e sem qualquer cunho nacional. A velha Escola de Direito Peninsular foi marco relevante do altíssimo expoente que, entre nós, atingiu o culto pelo Direito. Sem nenhuma sombra de dúvida, esta Escola levantou uma das mais belas construções que o mundo jurídico conheceu. Eram maioritariamente Espanhóis, mas não temos por que nos envergonhar, visto que, no grémio daqueles Mestres, elevam-se figuras como a de D. Jerónimo Osório ou a de Frei Serafim de Freitas, nomes que atravessam os séculos e formarão sempre no meio das maiores glórias da dogmática do Direito. A Escola, que também serviram, é motivo de lídimo orgulho para estes autores, de lídima cepa lusitana, e quem colheu proveito dos seus ensinamentos terá sempre dificuldade em avaliar, na justa medida, a intensidade do benefício recebido.
 
Porém, o esquecimento dos velhos estilos de uma jurisprudência genuinamente portuguesa, ao mesmo tempo que se deixa de parte a nossa doutrina, se não for até o desprezo por estas fontes de um Direito com as  fortes raízes que lançou no passado, e mais conforme ao nosso ser histórico, infelizmente nenhuma destas duas coisas é o pior dos males presentes na vida dos Tribunais de Portugal. Sofrem de descaracterização. Todavia, este aleijão não acontece só por debilidade dos protagonistas. É certo que essa fraqueza existe. Mas nem tudo é fruto de um ou vários acidentes, nem do acaso das circunstâncias: a degenerescência, que cresce dia a dia, obedece a um escopo criminoso que não está tão bem escondido como pensam os seus fautores --- é o claro projecto de derrube da ordem, não da estafada ordem democrática que é anomia, via aberta para quaisquer excessos, solo ubérrimo de todo o tipo de promiscuidade, triunfo garantido da iniquidade, enfim, esse cancro pavoroso que rói o tecido social, aqui ou onde se instalar e crescer. Trata-se, isso sim, do propósito de instalar uma ordem que soa a império da subversão, porque tudo que se vem desenhando, no tabuleiro político do nosso desgraçado País, é um atroador grito de revolta contra a Lei Divina. E esta Lei é a ordem válida, a única com legitimidade suficiente para exigir o acatamento que lhe é devido por  obrigação natural de todos os homens, vivam eles em Portugal ou nos antípodas!
 
Mas não pára aqui a fúria destruidora dos esteios de uma ordem escorreita nos domínios do poder judical. Facilmente se compreende. Deitados por terra os Tribunais, é profundo o abalo de todo o edifício político de um povo. Passam os regimes e outras são as estruturas, bem como a composição dos órgãos de soberania. De todos? --- Não, porque um há que foge à regra! Os Tribunais podem ter novos guiões, se há lei nova, mas as suas faces visíveis não mudam. Quer dizer: neles, algo perdura. É precisamente deste elemento de continuidade que eles tiram a sua força e, por isso, são actualmente o alvo político mais apetecido da Revolução Universal. Portugal oferece um quadro que é um bom paradigma dessa estratégia demolidora.
 
Senão, vejamos:
 
Erguem-se vozes estultas bradando que o Direito não é uma ciência exacta. Rotundamente falso! Ignorância nalguns; e muito cómodo para outros, que assim têm porta franca para os seus caprichos e para os seus excessos. O arbítrio já campeia mais do que a conta moralmente aceitável: se a mistificação alastra, será a apoteose do delírio.
 
Tamanho dislate permite que o combatamos com uma demonstração ad absurdum. Mas o bom senso manda percorrer outra via.

O Direito é, obviamente, uma ciência exacta sob pena de não ser ciência no autêntico sentido da palavra. A persistir no desconchavo de o considerar como ciência não-exacta, o caminho a tomar seria de pregar com ele para o rol de algumas práticas autodenominadas como ciências, mas que têm, ao menos, a honestidade de temperar este abuso acrescentando ao nome de ciências o qualificativo ocultas. Sempre na suposta validade do que bem parece ir além de um primaríssimo erro de análise, porque nalguns toca as raias de uma mentira colossal, não resta outra alternativa do que  pespegar com o Direito para o meio dos mais celebrados compêndios de charlatanaria.
 
Não tem o Direito a pretensão de ser uma ciência com o grau de precisão que outras ciências revelam, nem possui a evidência que estas oferecem aos olhos dos que as estudam e, até, dos que meramente experimentam os efeitos anunciados nas suas normas. Mas esta nota de inferioridade, que o distingue das ciências experimentais como são as ciências da Natureza, e que, em plano bem superior, surge como contraste que deixa a nu especialmente quanto o Direito se afasta da Matemática, essa nota, insista-se, não lhe rouba dignidade científica.
 
Só mentes completamente transtornadas pela malícia ou alheadas dos mais elementares processos dialécticos são capazes de negar ao Direito a estrutura de ciência exacta, que ele possui. A norma jurídica repousa numa base, cuja aplicação conduz a um resultado bem definido. Este processo lógico tem um notório corte silogístico, e sabe-se como o silogismo está dotado de peculiar firmeza --- a Verdade nele contida é insusceptível de levar volta porque o silogismo não a descobre, apenas a expõe com o máximo rigor de que a mente humana é capaz. 
 
Se o Direito não fora uma ciência exacta, qual a finalidade do recurso processual? Quem recorre, fá-lo porque não se conformou com uma decisão. E que pede o recorrente? --- A revogação do decidido! Mas esta pretensão que sentido tem se não se reconhece exactidão à ciência do Direito? --- Teimar que o Direito não possui o determinismo, que acompanha qualquer domínio do saber humano na dose necessária para torná-lo digno de enfileirar entre as ciências exactas, não é só reduzi-lo à condição do charlatanismo, como já foi referido, porque é também colocar os Tribunais em pé de igualdade  com uma vulgar barraca de feira, onde se rifam sentenças. E o melhor será, então, que cada um reúna um bom pecúlio para, com ele, acenar ao feirante e esperar que um novo Mercúrio ou fados misteriosos lhe dêem o que almeja.
 
Decisões, que violam o Direito logo à partida, não são segredo para ninguém; por outro lado, não se desconhece que, de entre essas, as impugnadas em recurso, sofrem frequentemente censura imerecida; e que, muitas vezes, tanto se erra abaixo como acima. Acaso está nesta volubilidade de julgados, ainda por cima insubsistentes, o motivo pelo qual se recusa ao Direito a qualidade de ciência exacta? Será que a versatilidade das sentenças provenientes dos Tribunais legitima juízo tão desastrado?
 
Salta à vista que o desencontro de decisões judiciais já autoriza a concluir que, pelo menos, umas não serão nem rectas nem prudentes porque, se  ocorre oposição entre elas, resulta imposível que sejam todas reflexo fiel da lei. E, por cima disto, o juízo de reprovação que suscitarem terá sempre de assentar numa apreciação suprapositiva, que há-de situar-se junto a um padrão de valores transcendentes, aquele que obrigou os Romanos, numa sabedoria edificante, a chamar ars boni et aequi 1 à nobre ciência do Direito. Ars boni et aequi, eis o mote que é legado daqueles povos do Lácio e que não se compreenderia, se nele não se visse a clara alusão a um foco de luz imorredoira, que tudo aquece e ilumina, bem ideal, como já acima se disse, e que dá pelo nome de Justiça.
 
A realidade jurídica desenvolve-se a partir de normas bem ordenadas, obedecendo a uma sistematização de experiência multissecular e com um objecto perfeitamente definido. Não se manifesta, contudo, numa sucessão de processos mecânicos: ela arranca do homem para  o homem e, daí, o seu  intenso drama. Ao dizer drama, quer-se, com esta palavra, assumir o significado que já o latim foi buscar ao grego: acção, uma acção, acrescente-se, que pode acabar em tragédia, não por culpa do Direito, mas apesar dele. E é isto que faz o seu enorme encanto: certamente que o Direito não deixa de ser uma pérola de alta cotação só porque espíritos broncos ou maus, ignorantes do valor que as suas rudes mãos seguram, o tratam como artigo de fancaria, quando não o atiram à fossa mais próxima que o caminho trilhado lhes proporciona. Desta profanação do Direito, são os Magistrados que se situam na primeiríssima linha dos responsáveis. Coisa singular, ou não será?
 
Convém distinguir dois tempos na lei: a lei publicada; e a lei aplicada. No primeiro tempo, a lei é, ou devia ser, um foco a alumiar os seus destinatários. Tem, pois, uma função pedagógica: mostra os terrenos que pisamos e, neles, indica-nos o caminho a tomar. No tempo seguinte, a lei corrige os aleijões resultantes da sua violação. Eis a altura em que se espera da lei que se revele na plenitude da sua força. É verdade que apenas pode aplicar-se o que dispõe a lei, mas aqui a lei aplicada já é acto, enquanto antes é mera potência. E quem traz a lei passiva da inércia dos códigos à actualidade palpitante da vida quotidiana? --- São os Magistrados! É quando eles se mostram réus do mal que semeiam, como seriam dignos de uma aura radiosa se outro fora o seu proceder.
 
Na ciência do Direito, é parte determinante a vontade humana. Porém, mais, muito mais do que no autor da lei, a intervenção da vontade está patente na função judicante. É precisamente na discrepância vivida nestes dois momentos --- a feitura da lei e a sua aplicação --- que se verifica o desatino do repúdio pelo Direito como ciência exacta. Aproveitar a incerteza que a actividade jurisdicional nos traz, umas vezes por lapso e noutras com mera culpa ou intenção deliberada, utilizar essa imprevisibilidade, repise-se, para negar ao Direito o carácter de ciência, por inteiro, não é seguramente um despropósito de proporções menores do que poderiam ter os que procurassem  apoucar a Física, depois que a teoria dos quanta veio mostrar a disteleologia daquele ramo do saber. A esta posição, tanto como despropósito, poderíamos chamar-lhe risível. E o que se diz da Física, igualmente seria lícito afirmar de qualquer outra ciência, só pelo facto de nenhuma, no âmbito do seu objecto, ter elaborado um sistema definitivo.
 
Não foi por casualidade que atrás se falou na Escola do Direito Peninsular. A sua trave-mestra era o objectivismo, contrário ao relativismo subjectivista que já se vinha instalando e, progressivamente, ia contaminando as mentes. Este vício do pensamento é que impede o observador atento, por mais escrupuloso que seja, de ver a causa profunda do que há de ignoto no horizonte tanto das Ciências Físicas como do Direito, um desconhecido que jamais findará. O erro descomunal deste desvairo filosófico está em crer que é possível ao homem tornar-se criador da Verdade, e de que não há nas coisas outra Verdade do que aquela que ele próprio lá coloca. Arvorado o sujeito cognoscente em norma da Verdade, conseguiu-se a inversão total do que dispõe uma sã gnoseologia, a qual nos manda buscá-la naquilo que é objecto do nosso conhecimento, em lugar de a plasmar nuns moldes que a nossa razão gerou. Na raiz deste desvio criteriológico, adivinha-se o legado fatal de Kant. A cisão que, desde a escola do filósofo de Königsberg, se vem operando no Ser, foi o remover da barreira que tolhia o avanço à arbitrariedade no campo da Moral e da Liberdade, para não falar de outros valores outrora acatados e seguidos pelo homem no convívio que o ligava ao seu semelhante. Como era inevitável, as consequências perniciosas deste corte, imediatamente se fizeram sentir no foro jurídico. Tudo estremeceu, no Direito e fora dele, e deste cataclismo ainda o homem não se recompôs, nem parece que o venha a lograr enquanto se teimar no rumo traçado.
 
Se nisto assentarmos, e sinceramente não se vê meio de contraditá-lo, facilmente se há-de concluir que o Direito só não é uma ciência exacta para aqueles que se decidem pela subjectividade feudatária do relativismo, porque nesses é aquilo que cada um quer e como quer, hoje, amanhã e depois. Enganam-se redondamente: a Verdade está na coisa e essa é imutável; o que varia é a apreensão que dela temos. Esta diferença é suficiente para vincar a distância que separa o relativismo do objectivismo. Em contrapartida, os que alinham sob a bandeira do objectivismo, estão cientes de que na procura da Verdade, inteligível de iure conquanto de facto sobre sempre algo que não se chega a tocar, nessa procura, recorde-se, não estamos impedidos de obter certezas legítimas. Ora estas certezas também vivem no mundo do Direito, conferindo-lhe deste modo categoria de ciência exacta.
 
Neste duelo entre relativismo e objectivismo, importa  sublinhar o que invocam os defensores do relativismo. A reserva, que opõem ao objectivismo, funda-se numa argumentação que, a não ser produto de um distúrbio mental, é então uma posição ditada por má fé. Com efeito, quando apontam para a irrefutável oscilação das teses científicas, calam o mais elementar:
 
Por mais que o nosso conhecimento se estenda, há ainda muitos outros segredos escondidos que o espírito humano, na sua avidez de saber, pressente e corre a desvendá-los. A estas descobertas, outros arcanos sucederão até que o homem, alcançado o seu fim sobrenatural --- a visão beatífica de Deus ---, vem a achar-se saciado. Portanto, a já assinalada instabilidade da dogmática científica, por um lado, nada prova a favor do relativismo, nem destrói, pelo outro, o que há de consistente no objectivismo. Sendo que isto tanto se vive no mundo físico como no Direito ou em qualquer outra parcela da vasta área do saber humano, tira-se daqui a inilidível certeza da aptidão do homem para participar no conhecimento da obra da Criação com todas as leis que a regem.
 
Participar no conhecimento do Ser, como já se deixou entender, não é o mesmo que arrogar-se a autoria do que foi criado. A plenitude da Verdade, que as coisas encerram, está com o seu obreiro. Mas excluída a vocação do homem à bem-aventurança eterna, não há grandeza mais elevada que esta sua capacidade para penetrar nas esferas sublimes da sabedoria, seja ela especulativa ou prática. A pugna entre a autonomia do homem diante de um conjunto de valores, onde se manifesta uma matriz kantiana, contra a qual se levanta a heteronomia propugnada pela filosofia cristã, tem por desfecho este antagonismo insusceptível de conciliação, enquanto se mostrar irredutível a pertinácia de quem labora em erro. Pouco ou muito que isto desgoste as mentalidades modernas, a ortodoxia do pensamento não pode ceder diante do que é falso. Em tempo algum! Em nenhuma circunstância! Talvez desapareçam civilizações e culturas inteiras; cidades e impérios poderão cair; da matéria, mais ainda ruirá; mas o que é espiritual há-de resistir e dele será o triunfo final!
 
Antes de terminar convém ainda que, por uns curtos instantes, nos debrucemos sobre um aspecto impossível de não cuidar:
 
A organização judiciária reclama uma distinção no seio da Magistratura: Juízes e Procuradores. Restringida a análise aos primeiros, é hora de dizer que não há-de ser o Juiz um mero aspirante ao poder. E o poder de que vierem a investi-lo, não deve tomar outra natureza que não seja a de uma arma com uma única missão --- desempenho de um sacerdócio! A Judicatura, pois, pressupõe dignidade e essa dignidade não está ao alcance de todos. Os que a exercem, formam um dos corpos mais aristocráticos que são conhecidos, e a pirâmide, em que se estrutura, dá-lhe uma hierarquia muito própria. Goza de total independência: alheio ao irresponsável sufrágio das urnas, intocável por quem governa, cada Juiz é rei e senhor dentro do seu Tribunal. Não monta o grau em que aquele se situa: da base ao vértice da pirâmide ou em sentido inverso, cada Tribunal é couto dos Juízes, seus titulares. Escalonamento tão perfeito não o possui, em Portugal, nenhum outro órgão de soberania, nem creio que o haja numa qualquer outra sociedade, cujos pilares tenham a estulta veleidade de se firmar sobre as areias movediças da Democracia! Entre nós, no plano temporal, apenas a instituição militar é hoje capaz de revelar uma constituição interna tão robusta e tão invulnerável como a que suporta o corpo dos nossos Magistrados Judiciais. Mas até as Forças Armadas, antano tão ciosas da autonomia que a dimensão de um quase-Estado dentro do próprio Estado lhes dispensava, já não conseguem ufanar-se por deter a mesma força e independência de que gozam os Juízes.
 
Esta força e esta independência não têm de assustar: ponto é que os Juízes façam um recto uso delas. Por tudo isto é que a querela à volta do Direito como causa instrumental da Justiça, não se resume a um problema de fria metodologia, porque é simultaneamente uma questão moral. Essa questão tem a ver com a formação cívica dos Magistrados mais implicados na administração da Justiça, aqueles que, nessa função, têm a palavra resolutória --- os Juízes! E a tarefa de incutir aos Juízes um sentido de honra e de integridade, deve ser a principal preocupação de todos, em especial dos que já sentiram os arrasadores efeitos dos desmandos que provêm da viciosa falta daquelas noções, mormente quando se faz notar a ausência quase absoluta de isenção.
 
Nos dias que correm, a sociedade humana, toda ela, está atacada de uma doença que pode ser letal: padece do que é, talvez, a maior crise de inteligência rectamente ordenada, que alguma vez a tenha afligido. O eixo de valores, ao qual se arrimaram os nossos maiores, foi primeiramente deslocado; acelerou-se uma crise de pensamento, já latente e da qual derivou o vazio moral; e, deste, depressa se resvalou para a desolação do cepticismo e do desencanto por tudo que é portador de uma semente de vida. De um pólo ao outro da Terra, ouve-se um grito necrófilo. Parece que a vida cede o seu lugar à morte. Ora isto deve repugnar, principalmente àqueles que tiveram a graça de nascer numa civilização que floriu na Fé da vitória sobre a morte!
 
Desta decadência não escapam muitos Juízes, como repetidamente se vem denunciando, explícita ou implícitamente, ao longo do tema central aqui abordado. Por culpa própria ou alheia, o que não interessa agora apurar, porque, neste passo, apenas se aprecia o tristíssimo enquadramento onde eles desvirtuam a sua missão de uma forma ou de outra, esses Juízes, frise-se de novo, firmaram e continuam a firmar uma certidão de falta de idoneidade para o exercício de tão excelso quanto espinhoso é o cargo que não merecem desempenhar. Ainda que, porventura, não seja esta degradação a de maior intensidade de todas que afligem a vida nacional, ela é, por certo, a mais inquietante porque os seus efeitos repercutem ampla e profundamente por todos os sectores da comunidade. E o índice de culpa do seu mau comportamento, quando aquela manifestamente lhes cabe, é o mais elevado, para lá de toda a dúvida, porque a função que cumprem é, também, a mais proeminente na vida temporal de qualquer sociedade civilizada.
 
Apesar de tantos sinais desanimadores, a esperança numa Justiça mais conforme à pureza do seu ideal não está morta. Ela refugia-se na certeza de que ninguém abomina uma equitativa aplicação do Direito: pelo contrário, todos apetecemos uma ordem com essa particular fisionomia.  Se, na verdade, ambicionamos atingir este fim, urge iniciar uma reforma de mentalidades. E nunca será demais lembrar que pode ser enorme a diferença que vai do uso de uma beca ao carácter daquele que a veste. De facto, nem sempre há correspondência entre o hábito externo e a personalidade de quem por ele é coberto. Em estilo mais prosaico: não tem igual sabor falar de um Sr. Juiz, ou de um Juiz, que é um senhor. Este desajuste traduz a origem e a explicação de muitos males!
 

Joaquim Maria Cymbron
 
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  1.  D. 1, 1, 1 pr.
JMC