quinta-feira, 29 de março de 2018

UIVOS DE LOBO


Passei de raspão por um blogue já meu conhecido. As raízes desse conhecimento não são positivas. Parei para analisar o texto que segue, após o qual junto as palavras que acho adequadas.

10 fevereiro 2018

D. Manuel Clemente

Para quem conservava a imagem de prestígio de D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa, ex-bispo do Porto que parecia enfileirar na nobre corrente de prelados esclarecidos e brilhantes da cidade Invicta (1), como tal tendo arrebatado a medalha de honra da cidade e o título de cidadão da cidade do Porto, intelectual a que parecia rendida uma certa elite cultural do país, que viu na atribuição do prémio “Pessoa” uma consagração merecida, a sua posição acerca do acolhimento pela Igreja dos denominados “recasados” (ou seja, católicos divorciados que voltaram a casar-se) representou o desmoronar estrondoso do pedestal em que estava alçado.

As suas declarações advogando a abstinência sexual dos “recasados” que não conseguissem ver anulado o seu casamento religioso são do mais cavernícola que já se ouviu nas hostes mais reaccionárias da Igreja.

Publicado por Artur Costa (19:46

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Da alcateia saiu mais um uivo: não é o primeiro que ouço, nem será o último que dali virá. É natural: não têm outro falar!

Ao mesmo tempo, sabe-se perfeitamente como os lobos gostam da vulnerabilidade e mansidão das presas. Também não há que espantar. E, se o zagal andar longe, é certo que o banquete oferece menos riscos. Por isso é que a alcateia quer um rebanho de cordeiros e que ninguém os guarde. É o modo que têm para neles cevar um apetite sanguinário.

Esses cordeiros hão-de, pois, ser dóceis e nem balir podem: outra reacção fere a majestade do lobo, cuja ferócia o faz supor-se rei e senhor de brenhas e povoados.

Do meio do brejo, outras bocarras se abriram e vá de ulular tanto ou ainda mais. Se bem atentarmos, veremos que o quadro lobo-cordeiro, transposto para o universo humano, apresenta iguais proporções.

No currículo do autor da nota, que serve de abertura a esta peça, consta a sua subida a Procurador-Geral Adjunto no Supremo Tribunal Administrativo, após o que ascendeu a Juiz-Conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça, onde veio a jubilar-se. Até há pouco tempo, o simples facto de pertencer à Magistratura, sobretudo quando lá se fez carreira tão longa e destacada, era título venerando. Hoje, só raramente se poderá dizer o mesmo.

Com efeito, como é possível esperar o respeito da sociedade civil para com a Magistratura, se membro tão qualificado no seio daquele corpo escreve a meia dúzia de linhas que são objecto do que aqui exponho, e logo conclui que o Patriarca de Lisboa desceu da torre de marfim, a que subira enquanto Bispo do Porto, porque as suas «declarações advogando a abstinência sexual dos “recasados” que não conseguissem ver anulado (2) o seu casamento religioso são do mais cavernícola que já se ouviu nas hostes mais reaccionárias da Igreja.» (3) A atitude aqui denunciada traz consigo um ensinamento: o estilo não é exemplo único e constitui o macabro cortejo de investidas muito ao gosto de alimárias desta casta.

O passo arrojado de emitir juízo sobre o que Sua Eminência disse não está vedado a ninguém. Mas não cabe ao primeiro garnacha inspirado dá-lo, esmagando com as cardas da sua bota o que encontra no caminho. Há limites que, uma vez ultrapassados, tocam as raias do que é vil. Por outro lado, se no discurso não consegue ir além da procacidade vulgar do primeiro mariola de esquina, mostre ao menos alguma sensatez, e não se restrinja a um excerto tirado de uma nota do Patriarcado de Lisboa. Títulos garrafais da Comunicação Social são quase o equivalente de vozes públicas em direito processual penal, e têm um objectivo expresso: destinam-se a semear a confusão. O efeito destes rumores em juízo é nulo, porque nem atendidos são (4). O Ex.mo Conselheiro, autor deste comentário, tinha obrigação institucional de ser mais cauteloso. Se lesse com olhos de gente, logo veria que o Senhor D. Manuel Clemente é ele próprio quem abertamente declara que é seu desejo cumprir a exortação do Santo Padre e com esse fim aludirá «directamente a três documentos autorizados: a Amoris Laetitia, a correspondência entre os Bispos da Região Pastoral de Buenos Aires e o Papa Francisco e as indicações dadas aos sacerdotes da Diocese do Papa (Roma) pelo seu cardeal-vigário.», recomendando que se leiam esses «documentos na íntegra.» (5)

O Senhor D. Manuel Clemente pronunciou-se no exercício do seu múnus pastoral, que lhe incumbe por direito divino positivo e também pela lei eclesiástica. Fê-lo pregando a doutrina que tem como justa e, na falta de prova em contrário, cabe a nós presumir que terá usado da prudência que é timbre da Igreja que serve (6). Por mim, não ouso devassar o foro interno de cada um.

Nenhuma censura, pois, formularei às palavras de Sua Eminência.  Lembro que não pertenço à alcateia. Eis porque aquilo  que escrevo incidirá pratica e prevalentemente sobre a falsidade e sobre a maldade revelada pelo indigno magistrado. Não me atrevo a ir mais além.  Estou privado da competência da autoridade e da autoridade da competência, que parece terem fugido ambas para um domínio quase ou mesmo ferino.

Desconheço se este Juiz-Conselheiro tem fé. A avaliar por precedentes, dos quais estou ao corrente, será quando muito a fé daqueles que querem moldar a religião ao credo que dizem professar. Portanto, com essa fé de circunstância ou sem ela, é impossível argumentar com ele apelando ao que ensina a Teologia Dogmática. Desloquemo-nos então ao campo profano. E, aqui, não se deve esquecer que a Igreja Católica Apostólica Romana, não só é um Corpus mysticum de instituição divina, mas assume também a natureza de uma sociedade perfeita, fazendo jus à categoria de sujeito de DIP.

Por conseguinte, abre-se via para reflectir que o Patriarca de Lisboa não é um qualquer presbítero. Como Bispo, que é, ensina o Concílio Vaticano II que «Episcopus, plenitudine sacramenti Ordinis insignitus (…)» (7); e, na qualidade de Cardeal, participa no Conclave «cui competit ut electioni Romani Pontificis provideat (…)» e junta-se aos demais Cardeais que «(…) Romano Pontifici adsunt sive collegialiter agendo, (…), sive ut singuli, (…) eidem Romano Pontifici operam praestando in cura praesertim cotidianam universae Ecclesiae.» (8)  Neste universo, o Senhor D. Manuel Clemente é, pois, figura primacial e é também o mais alto prelado português.

Este antigo magistrado tem correligionários em número indeterminado, colegas ou não da mesma profissão. Todos eles se gabam de ser universalistas. Um espírito universal muito viciado, que esquece a unidade transcendente do género humano. Não é preciso fé sobrenatural para acreditar nesta verdade: basta ser-se intelectualmente honesto porque é uma verdade que a simples razão natural pode alcançar. Uma vez descoberta e admitida esta verdade, é imperioso aceitar uma identidade de regime em todo o género humano que se pretenda coeso e disciplinado. Nenhum homem; nenhuma classe; nenhum povo; nenhuma cultura; ou nenhuma civilização pode aspirar a que reconheçam a sua dignidade, se não respeita o semelhante.

Pelo exposto, é que não hesito em sustentar que as palavras usadas pelo Ex.mo Conselheiro são de uma incivilidade clamorosa. E seria deslustrante da minha parte prosseguir sem acrescentar que a sua agressividade se reveste de uma nota de cobardia. De antemão se sabe que os eclesiásticos não replicam a afrontas, pelo menos ao jeito que é de esperar da parte de qualquer secular. Pelo que, receio de uma reacção judicial é praticamente nenhum; e, à margem dos Tribunais, torna-se de todo impensável! Tal como o lobo, ao avizinhar-se do redil desguarnecido, também o fundibulário em questão não precisa de tomar cautela.

Este Juiz-Conselheiro, sempre que sai do seu território, melhor faria se desse repouso à fome devoradora que o toma. Como julgador que é nas lides forenses, ficasse pela sua esfera, porque já reza o ditado que não tem esfera nenhuma quem salta fora da sua. Quando passa a mover-se em terreno que habitualmente não pisa, aí corre perigo de se atolar. E irá tanto mais ao fundo, quanta é a ruindade que tem no corpo.

Ainda há poucos meses, se levantou formidável berreiro à conta de um acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Num clima de grande despudor, com alguma histeria pelo meio, pouco faltou para pedir a cabeça do Venerando Desembargador, que firmou a sentença juntamente com a referida colega, poupada às iras populares sem que talvez a própria saiba porquê.

Vigorando, em Portugal, a separação da Igreja e do Estado, um Estado que é inconfessional, torna-se óbvia a inexistência de uma subordinação moral daquele à Igreja. Em contrapartida, não se julgue o laicismo autorizado para impor a Roma a sua fria e desoladora mentalidade. A Igreja não agradece esse presente, porque mesmo entre aqueles que, por desgraça, não recorrem ao tesouro da Revelação, ninguém de perfeito juízo  assume uma filosofia de negação ou, se se preferir, uma escala de valores que é uma escala do nada. 

Com que autoridade ululou a besta-fera, de que se vem falando, contra um pilar da Igreja Católica? Autoridade, não se sabe quanta possui: a institucional não existe; e a intrínseca requer provas. Contudo, há fortes indícios de que o lobo tem um objectivo bem claro: trucidar raivosamente tudo quanto faz despertar o seu instinto depredatório. Ou não tivéssemos que nos haver com um lobo cerval, sedento do sangue que pulsa nos valores tradicionais que ele quer secar.

Quando antes me declarei sem legitimidade para criticar a nota atacada pelo escandalizado e irritadiço Juiz-Conselheiro, deve entender-se esse defeito no que toca a um juízo de valor transcendente. Não existe, pois, nenhum obstáculo que me impeça de apreciar a exortação do Patriarca de Lisboa, num plano secamente objectivo de conformidade ou não-conformidade à posição sustentada pelo Papa. É isso que me esforcei por realizar. E, nessa ordem de coisas, não hesito em dizer que o Senhor D. Manuel Clemente não se desviou um milímetro do magistério pregado pelo Pastor Universal da Igreja, nem este proferiu algo que afrontasse a Fé.

Um católico, que não renegou da Santa Madre Igreja, não critica os seus pastores. Se está inquieto, guarde no íntimo a sua angústia e, com humildade, procure na oração que o Espírito Santo ilumine e conforte os trabalhadores da vinha. E porque Deus também actua por causas segundas, peça no século que o esclareçam. Julgá-los, nunca. Tudo isto, sem esquecer um só momento que, no que concerne ao Romano Pontífice, nenhum poder humano tem autoridade para o chamar a juízo (9).

Não obstante os muitos pecados a que me acorrento, creio ser filho leal da Igreja. Por isso, não termino antes de acrescentar mais umas palavras:

A catequese pastoral aplica ao concreto do nosso dia a dia os mandamentos superiores da lei natural, a par do que a Revelação anuncia, o acervo dogmático define e os sagrados cânones estabelecem dentro da generalidade e abstracção próprias de toda a norma de direito. Com efeito, já S. Tomás de Aquino ensinava que « (…) etsi in communibus sit aliqua necessitas, quanto magis ad propria descenditur, tanto magis invenitur defectus. (…) In operativis autem non est eadem veritas vel rectitudo practica apud omnes quantum ad propria, sed solum ad communia: et apud illos apud quos est eadem rectitudo in propriis, non est aequaliter omnibus nota. (…) Sic igitur patet quod, quantum ad communia principia rationis sive speculative sive practicae, est eadem veritas seu rectitudo apud omnes, et aequaliter nota. Quantum vero ad proprias conclusiones rationis speculative, est eadem veritas apud omnes, non tamen aequaliter omnibus nota: (…) Sed quantum ad proprias conclusiones rationis practicae, nec est eadem veritas seu rectitudo apud omnes; nec etiam apud quos est eadem, est aequaliter nota. (…) quanto enim plures conditiones particulares apponuntur, tanto pluribus modis poterit deficere (…).» (10) Ora é esta mesma catequese que a Igreja, em obediência à sua vocação de origem e à sua constituição hierárquica, já pregou e há-de pregar. Se a exposição da doutrina pode alterar-se, a sua essência permanece imutável como é próprio da Verdade!

De novo, chegou aos nossos ouvidos e aqueceu-nos o coração a lição do Doctor Uniuersalis. O seu magistério, mais uma vez, foi observado à risca e continua incólume.

Ficou dito acima que não é previsível uma reacção do Patriarcado a tão soez destempero como é o que tem assinatura de um Juiz-Conselheiro e aqui foi abordado. A razão primordial assenta na formação moral do clero. E dia em que isso faltasse, a esta classe sobraria sempre um fundamento lógico: para o que demonstra tão brutal condição, a melhor resposta é o silêncio!

Cresci educado nos princípios de uma moral sã e de cuja validade nunca duvidei nem duvido. Mas não resisto em disparar uns zagalotes, quando o alvo pertence a uma espécie danada!


Joaquim Maria Cymbron
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  1. O autor deste excerto labora no erro histórico do liberalismo. O Porto foi devastado no decurso das desatradas e desastrosas guerras fernandinas; nele entrou Soult em 1809, por ocasião da 2.ª invasão francesa; e as tropas da Quádrupla Aliança, ocuparam-na ao abrigo do estabelecido na Convenção de Gramido, que pôs termo à guerra civil da Patuleia. Três, pelo menos, foram as vezes em que o solo do Porto foi pisado por tropas estrangeiras. Quando saiu invicto, isso sucedeu no conflito que dividiu miguelistas e pedristas. É lamentável facciosismo ir buscar um título, só parcialmente verdadeiro, a um dos episódios mais crus da nossa história. Não fico, todavia, surpreendido por esta inclinação: são deslizes do bando que é seu antepassado político e cuja herança ele recolheu.
  2. Apenas uma observação de pormenor, mas que se impõe. Um casamento canónico não pode ser anulado, porque é sacramento e um sacramento validamente celebrado nunca perde validade; por isso, o mais que suporta um casamento, celebrado segundo a forma prescrita na Igreja Católica, é uma declaração de nulidade nos casos admitidos pela lei canónica. Quem rubrica esta infeliz nota, ao menos pela sua formação jurídica, há-de conhecer bem a distinção que o direito civil estabelece entre nulidade e anulabilidade. Trata-se de lapso, muito possivelmente. O pior é que, na classe de Magistrados, os lapsos, judiciais e extrajudiciais, vão abundando mais do que a indulgência pode conceder.
  3. O negrito é meu.
  4. CPP art. 130.º, n.º 1.
  5. Patriarcado de Lisboa --- Nota 1. (06FEV18).
  6. Há todos os sinais de ter havido, por parte do Senhor D. Manuel Clemente, o propósito de dar execução pastoral ao que parece informar a doutrina do documento de Sua Santidade o Papa Francisco --- Amoris Laetitia [§§ 291-312]. Não me cabe julgar, conforme disse no texto. Deixei essa tarefa ao seu feroz crítico, se guarda no bojo algo mais do que o temulento apetite de atassalhar.
  7. Lumen Gentium 26.
  8. CIC canon 349. 
  9. Op. cit. can. 1404. Não constitui novidade o que traz este preceito: é reprodução textual do estabelecido no CIC de 1917 canon 1556.
  10. Summa Theologica I-II, . 94, a. 4.

JMC