terça-feira, 20 de novembro de 2018

A ILUSÃO DA GREVE


Greve, para os puristas da língua, é galicismo. Num portugês estreme devia dizer-se parede em lugar de greve. Ora uma parede dá logo ideia de separação, de divisão.
Quando ouvimos falar que, entre duas pessoas unidas por laços de amizade, se levantou um muro ou uma parede, tal notícia pode significar muita coisa menos a continuação de boas relações. Isto, no mínimo.
De forma análoga, a greve desencadeada (ou levantada a parede, como se prefira) mostra que a boa paz e harmonia social se deterioraram e só vem exacerbar um estado mórbido, contribuindo assim para que todo o edifício económico abale.
Há menos de um mês, o STAL convocou à greve. Parece que teve resposta muito ampla. E proveito? Se o houve, para quem foi?
Esta greve é apenas um minúsculo episódio numa história mais que centenária. Por isso, não será dela que se vai tratar. Foi mera ocasião das reflexões que seguem.


Convém distinguir a greve que se desenvolve para alcançar melhores condições de trabalho, daquela que se fica por exigir salários mais altos.

A bondade da primeira ainda se pode debater. É, indiscutivelmente, uma medida a tomar in extremis, e que se deve aceitar como recurso de legítima defesa dos direitos ameaçados. Porém, à semelhança desta, só é de pôr em prática quando obedece aos mesmos requisitos: justa causa; organização claramente definida; recta intenção; e, por fim, necessidade e proporcionalidade do meio que é empregue.1

Quanto ao segundo tipo de greves, desde já se dirá que contém, no seu bojo, uma formidável mentira. A greve desta categoria, se observa os preceitos em uso há larguíssimo tempo, tende para o desastre dos próprios que a levam a cabo. E isto, já sem falar dos consequentes danos laterais sempre ligados a qualquer perturbação do habitual viver comum. Cumpre, no entanto, reconhecer que um justo salário – que não é propriamente o mesmo que um aumento de salários – se pode e deve integrar numa melhoria de condições para o trabalhador pelo estímulo que disso tira. Simplesmente, essa meta não se logra palmilhando o infeliz roteiro da greve!   

Sobre a greve como meio de combate a reivindicar melhores salários, é que se discorrerá e, a seu respeito, pergunta-se:

Concluída a greve, que visa salários mais robustos, que resta de palpável? Temos que os trabalhadores, que lutaram por melhores salários, satisfeitas as suas reivindicações, vêem aumentado o seu poder de compra. Em princípio seria um resultado muito positivo se não fora o que isso vai desencadear no universo laboral. É que a subida de salários provoca invariavelmente um movimento que alastra por toda a economia e ainda pela sociedade inteira, a qual também se ressente dos resultados assim produzidos.

Realmente, após este passo e para repor o equilíbrio, assistiremos a iniciativas de outros ramos económicos que irão empurrar os seus contingentes de profissionais por igual trilho. Quer dizer: completado o círculo, a posição relativa entre cada sector da actividade laboral volta a ser precisamente a mesma.

Damos por incontroverso que, de entre os promotores e participantes em greves, muitos estão pugnando, com recta intenção, pela melhoria da sua situação material. Destes, não nos é permitido afastar a existência de uma ignorância desculpável, quanto à malícia habilmente escondida na complexidade que envolve este método de luta. Concedamos até que, pela sua acção, buscam que o desfecho de uma greve venha reflectir-se na saúde geral da economia, se atingem a vitória – ponto este que já não é tão líquido e abre a porta a sérias dúvidas, dúvidas que estão fundadas na própria essência do que a riqueza é e como surge.

Com efeito, riqueza não é senão capital com trabalho incorporado. Estes dois elementos, tão distintos, têm de caminhar a par, porque ambos são factores de riqueza. É, pois, de proscrever e do modo mais radical, o crime de os lançar, um contra o outro, numa briga sem sentido. Ao mesmo tempo, neste conúbio, é proibido deslocar o homem, titular do trabalho (chamemos-lhe assim), para lugar subalterno. Uma vez que o homem é a causa eficiente na produção económica, logo por aí, neste como nos outros campos da sua vida terrena, ele guarda o posto de excelência.

Na sua origem, o capital é simples matéria bruta, que o homem encontra, mas não cria: o seu autor é Deus. Entretanto, temos que é o homem quem desenvolve trabalho; o capital não lhe custa pena, porque lhe é oferecido na natureza criada por Deus, conforme se acabou de afirmar. Por aqui, já se antevê a maior nobreza do trabalho em relação ao capital. Nunca, pois, será lícito esquecer esta primazia do trabalho, pese embora a certeza de que in ordo generationis, o capital provém directamente de Deus, enquanto o trabalho é acção do homem. Todavia, não se há-de esquecer que a prioridade se fixa por ordem de grandeza espiritual e não por precedências de uma origem com maior ou menor antiguidade no tempo. Nestes termos, há no trabalho uma causa final, que não se acha no capital – a glorificação do Criador!

A forma importa mais que a matéria, porque daquela é que esta recebe o rosto. Por sua vez, na ausência do homo faber não poderia a forma actuar. Pelo que o autor supera a forma que por ele é imprimida à matéria. Está feita a obra. Neste trajecto, o autor da obra é o trabalhador, o qual, repita-se agora e sempre, ocupa o posto primacial dentro do processo económico. Há dúvidas sobre isto? Quem as tiver, abra os olhos e dispa-se de preconceitos marcadamente burgueses!

Sigam juntos, portanto, os dois elementos da riqueza a que se aludiu  e que são os que há. Em união e nunca desavindos, pondo diante de todos nós a imagem harmónica de uma perfeita articulação. Porém, se alguma eleição cabe fazer, essa preferência irá forçosamente a favor do trabalho.2 A explicação está dada. Só não a vê, quem não quer.

Regressando à greve, repise-se a opinião já formulada: não é admissível negar que fracções da população, mais ou menos numerosas, venham agindo, movidas de boa fé na crença de que aquele procedimento é meio eficaz para defesa dos seus direitos. Aos que formam esse grupo, muitos ou poucos é indiferente, se dirigem estas palavras.

A linha desenhada pelo percurso de qualquer greve é o desmentido categórico das teorias, que proclamam este meio como o único capaz para que o assalariado obtenha a paga justa do seu trabalho. O progresso económico só aparece quando a produção sobe. A este crescimento, junta-se uma maior riqueza, e é esta que tem virtualidade de proporcionar a concretização desse belo sonho. Cautela, porém: há sonhos mentirosos! A justa repartição da riqueza só se efectua quando e onde esta existe; e, para que exista riqueza bastante a enfrentar necessidades cada vez mais exigentes, é imprescindível que a produção aumente o seu volume.  

O crescimento da economia depende do capital e do trabalho, recorde-se. Já atrás ficou dito. Como agora se trata de um fenómeno que respeita exclusivamente ao mundo do trabalho, deixemos de lado o capital para nos centrarmos sobre o outro factor de riqueza.

Logo se verá como a greve, na medida em que se limita a conseguir maiores remunerações, não pode realizar as lídimas ambições de quem trabalha. Redunda num ciclo vicioso.

Se verificarmos bem, onde vão dar os aumentos de salário? Desembocam numa dinâmica com resultado em tudo igual ao que sucederia, se os detentores do capital decidissem trocar entre si o dinheiro incessantemente acumulado, ao longo de sucessivas operações realizadas no estilo que lhes é próprio. «Money which begets money, tal é definição do capital na boca dos seus primeiros intérpretes – os mercantilistas.», anunciou Marx.3 No entanto, esta permuta será infecunda, porque é sabido que «a classe inteira dos capitalistas de um país não pode tirar benefício de si mesma.», escreveu o mesmo autor.4 Como sobrevivem, então? Na vertigem de uma depredação voraz e contínua, vão arrancar as suas mais-valias de quem os serve com o suor dos seus rostos, a troco de contrapartidas muito pouco ajustadas, quando não é caso de bradarem aos Céus.

Por isso, assim como a classe de capitalistas, fechada sobre si mesma, não pode enriquecer, também os que se consideram espoliados não esperem amuar mais dinheiro ao canto da lareira só com melhorias salariais. Incorrer neste erro não conduz a outro desfecho que não seja o de perpetuar um conflito. A solução nunca se deve buscar nas greves desta natureza, porque a resposta imediata da classe economicamente dominante será a de endurecer as suas condições de oferta de trabalho, na proporção exacta das vantagens conquistadas pelos movimentos grevistas. No final, todos perdemos!

Daqui, ser difícil compreender a pasmosa cegueira dos que sustentam, como direito dos trabalhadores, o recurso a uma táctica de luta que pouco ou nada lhes juntará. E é de esperar que por muito felizes se dêem, se saírem ilesos dos manejos da classe que eles frequentemente censuram com carradas de razão. Assim é lícito que através de uma observação exterior, sem julgar do foro interno, fiquem a pairar, pelo menos, duas interrogações: Há o desejo sincero de resolver questões laborais, por parte da gente que advoga esse meio de reivindicar direitos a melhores retribuições pecuniárias para quem trabalha? Ou será que se procura somente incitar a lutas que não são solução de coisa nenhuma, porque apenas têm como finalidade arrastar indefinidamente os problemas para benefício de propósitos inconfessados?

Por outro lado e na sua pureza abstracta, a ser viável o desenvolvimento da teoria que informa o acerto da luta por melhores salários, cedo ou tarde, essa estratégia conduziria ao aparecimento não de uma classe solidamente investida nos direitos que se arroga, mas sim na irrupção de uma casta tanto ou ainda mais privilegiada e despótica do que aquela que vieram derrubar, no cumprimento do ideário que professam. A este respeito, não subsistam dúvidas: causas idênticas, num ambiente ele próprio também idêntico,  produzem efeitos idênticos!

A Rússia, de há cem anos, foi talvez a nação onde se atingiu o mais alto grau de intensidade e de apuro na táctica de movimentar grandes massas de trabalhadores. Os bolchevistas, mestres insuperáveis na ciência de tratar a greve como uma arte, mostraram ao Mundo como funciona uma estratégia de assalto ao poder,5 na qual as greves assumiram e assumem papel de relevo. Neste campo, só é possível comparar-se-lhes o que ocorreu na Alemanha nacional-socialista, diferindo apenas nos caminhos percorridos e na filosofia política que inspirava o seu modo de operar.

Sobre a matéria aqui versada, cabe ainda advertir que o fenómeno histórico, que teve palco em terras russas, constitui um quadro que teima em repetir-se. Desta vez, tudo indica, essa transformação verificar-se-á no seio das economias mais avançadas, confirmando assim as previsões de Karl Marx. O capitalismo será então vencido pelas suas contradições internas, que são múltiplas e reais. Simplesmente, isto oferece todos os dados para se concluir que nada mudou – teremos, então, o que já foi dito: uma classe, com práticas mais ou menos refinadas, substituirá outra na crueza da opressão infligida à que cai, com a qual aprendeu a brutalidade que então, assim espera, será a sua vez de aplicar.

Vem a propósito, completar esta previsão que, de resto, não é segredo para quem estuda e analisa tais capítulos da economia. No ponto em que parámos, torna-se oportuno abrir um pequeno intervalo e, aproveitando a pausa, interpor um trecho curtíssimo, de certa maneira já implícito no que se escreveu. E não será pelo seu laconismo que deixará por esclarecer a mensagem que transporta.

Essa mensagem declara como possíveis duas categorias de greves: há a greve selvagem, que conduz à ditadura proletária, como a História mostra; e há a greve do amadorismo romântico, aquela de que os estrategos das greves do primeiro tipo se riam e continuam troçando dela. É que eles não desconheciam, antes nem agora, a sua inocuidade para a sociedade burguesa, precisamente aquela que alguns sindicatos de trabalhadores dizem estar a combater. Acima, tocou-se no logro a que leva esta greve, apenas idónea para funcionar como válvula de escape e dar, aos que assim pugnam, a falsa impressão de que fizeram muito. Não se voltará ao assunto. O suficiente ficou dito.

Fechada esta interpolação, retomemos o fio do discurso:

Não raro, insista-se de novo, sucede que a revolta e a indignação dos que trabalham são justas. Temos de reconhecer que são relegados para o lote dos deserdados de uma fortuna que é comum, e que está longe de ser repartida com equidade. Mas o confronto, como ele é procurado pelos agitadores sociais, não é via adequada para o objectivo legitimamente pretendido.

Sobre o que se discorre, não é correcto manter o princípio de que os conflitos são inelutáveis pela simples razão de que existem. Chama-se, pois, a atenção para o facto de que neste âmbito, como nas demais relações em que o homem é actor, esses conflitos deviam desaparecer e que é possível chegar a esse termo.

As diferenças enchem de cor o universo, mas não implicam que haja um antagonismo necessário: onde existe antagonismo, certamente há diferenças; porém, estas nem sempre pressupõem qualquer espécie de choque. Na verdade, a vida é composta de categorias, que se conjugam e dispõem ordenadamente para um fim determinado. Só nega a complementaridade aquele que anda arredado daquilo que o rodeia. Num grau de abstracção, que se situa em plano superior, percebemos a variedade que é o mais límpido testemunho da transcendente unidade do Ser.  

Dinheiro que gira sempre nas mesmas mãos a ninguém dará saúde económica. Foi referido atrás e volta a lembrar-se. Essa circulação é o ponto nevrálgico onde bate certeiro o ataque dirigido ao capital. De facto, o mundo capitalista, virado para si mesmo, não amontoa riqueza até porque, desacompanhado do trabalho, é impotente para a produzir e, assim isolado, não consegue sobreviver. Para não desaparecer, ao capital só se lhe abre uma via que ele nunca desdenhou: pagar menos do que o valor do trabalho realizado, comportamento, aliás, ao qual já se aludiu!

Querem agora os trabalhadores, que sofrem, teimar em ensaios de um modelo que está roído de podridão dos pés à cabeça? – É um erro colossal, que não os tirará da agonia experimentada por uns e que lançou outros num estado próximo da letargia. Esse erro disforme bem se pode ter na conta de um suicídio profissional!

Desejam conquistar a dignidade que se lhes deve? – É, de todo em todo, pertinente aspirar a esse resultado, porque ele é merecido. Mas que saibam: o caminho para o triunfo não passa por greves onde se grita por mais dinheiro.

A organização laboral tem de ser revogada de alto a baixo e de uma ponta à outra: nem o capital sufocando o trabalho; nem este ignorando aquele! Quem recusar esta saída, cria condições para que nasça um monstro: corpo dividido ao meio e em que cada metade está privado da outra que o devia completar.

O capitalismo veio e nada resolveu; o socialismo opôs-se-lhe e também não curou os males. São sistemas que parecem enfrentar-se e, nessa hostilidade simulada, se esforçaram para que ninguém desse pela imperfeição que toca aos dois: a cada um deles falta o que o outro possui. Isso mesmo se acabou de assinalar.

Neste momento, o que importa acrescentar é que a solução para este angustiante problema se não reduz à intervenção de uma política, que se limite a modificar a legislação sobre o tema que se vem tratando. A resposta encontra-se num patamar mais elevado: a mudança requer uma reforma profunda de mentalidades e instituições.

O vocábulo revolução, o que mais gostosamente acudirá à boca de muitos, não será sensato usá-lo. Não convém esquecer que essa palavra, tomada universalmente, é sempre condenável.6 Pelo que se tem por deslocado o seu emprego, na altura precisa em que se tenta apontar uma linha salvadora para este drama. Por isso é que se substitui por outro – restauração – e assim, o que urge fazer (nisto como em tudo), é restaurar a ordem natural, há bastante tempo violada.

Joaquim Maria Cymbron 

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  1. Mais uma vez, valham-nos os ensinamentos do Anjo das Escolas para encontrar resposta aos problemas que afligem a humanidade. As greves, como distúrbios sociais que são, pedem tratamento equivalente ao que é dado a outros conflitos que os homens travam entre si. Por isso, não admirará que se faça remissão para a doutrina elaborada por S. Tomás de Aquino, onde este grande teólogo e filósofo se debruça sobre os vícios opostos à paz (Summa Theologica, II-II, q. 40, a.1; q. 42, a.2, ad.3).
  2. Do valor do trabalho na produção económica, entre muitas outras fontes, temos as palavras que S. João Paulo II nos legou na preciosa Encíclica Laborem Exercens, maxime §§ 7, 12, 13, 14 e 15. Dificilmente, busque-se onde se buscar, se irão encontrar trechos mais esclarecedores no que respeita a este ponto específico.
  3. O Capital I, cap. IV, Delfos, 7.ª ed.
  4. Ib. cap. V.
  5. Foi Lénine, através da III Internacional, quem deu o toque genuinamente revolucionário à praxis socialista, enchendo-a de uma mística inconfundível. Entre nós, destaca-se Cunhal como intérprete fiel e hábil da dialéctica marxista-leninista. É modelar a lição que nos deixou nos trabalhos preparatórios do VI Congresso do PCP (Rumo à Vitória, Edições Avante). Terminou num insucesso não obstante a lucidez, até hoje inigualável, que esse documento mostra entre as mais forças oposicionistas do xadrez político nacional, tal como esse tabuleiro se apresentava no período que antecedeu o 25 de Abril. Quando soou a hora crítica e decisiva, no Verão Quente de 1975, entre dois peões da Revolução Universal – a democracia burguesa e a democracia proletária – aconteceu que Kissinguer decidiu avançar o primeiro deles.
  6. Revolução, na acepção absoluta e não relativa do termo, é a sucessão de desacatos à Lei Eterna, e que teve Lúcifer à testa dos anjos rebeldes. De resto, é na sua linha que também se insere toda a conflitualidade do mundo económico-laboral.


JMC