sábado, 15 de dezembro de 2007

A ECONOMIA À LUZ DA METAFÍSICA


O gosto ou deleite é o sentimento que brota da alma, quando contemplamos o belo, o qual é objecto de estudo da estética.

Amor é o apetite que nasce dentro de nós, sempre que se vê o bem. Chama-se ética a ciência que analisa este atributo.

O êxtase é o arrebatamento que vivemos de cada vez que a nossa inteligência alcança a verdade. Cumpre à ontologia defini-la.

A verdade, a bondade e a beleza do Ser têm um carácter de universalidade e de necessidade absolutas e são, por isso, perfeitamente objectivas. Só se captam se virmos o Ser na sua unidade transcendente. A unidade do Ser provoca no nosso espírito uma sensação de equilíbrio, dá-lhe a justa proporção das coisas.

Quando esta harmonia se rompe e nos esquecemos que o Ser possui determinada multiplicidade (contra o que afirma o racionalismo), ao mesmo tempo que apresenta certa unidade (o que é negado pelo empirismo), torna-se inútil buscar o que ele tem de verdadeiro, de bom e de belo. Com efeito, quer o empirismo, quer o racionalismo são incapazes, isoladamente, de perscrutar por forma satisfatória os deslumbrantes horizontes da metafísica.

Os princípios de identidade, de causalidade e de finalidade, que reflectem os atributos transcendentais do Ser, estes primeiros princípios metafísicos encerram, como se verá melhor, a condenação dos sistemas económicos dos tempos modernos. Há quem prescreva, como remédio para este mal que se arrasta, parecendo que se eterniza, aquilo que designam por terceira via e que mais não é do que a confusão do sincretismo. Quanto a mim, só na tradição se acha resposta adequada a este candente problema. E não falo em tradição por nos devolver um modelo que precedeu socialismo e capitalismo: isso atirava-nos para os braços do conservadorismo, que nunca deixa de ser grosseiro uma vez que é relativo. Eu remeto para a tradição, porque ela transporta, in se, a carga preciosa dos valores ônticos que se impõem ao nosso entendimento e ao nosso querer.

É sobre esta base que importa reconstruir o edifício económico, tão danificado por sucessivos abalos. Essa tarefa repousa em pontos muito inequívocos.

Analisemos pois o fenómeno, segundo os ditames da tradição:

Donde provém a riqueza? --- Dos bens existentes e do trabalho realizado pelo homem. Falhando um destes elementos, não há riqueza.

A natureza, tal como o homem a encontra e em cujo processo de transformação não interveio nem intervém, constitui a causa material extrínseca da riqueza; o trabalho é a sua causa formal; o produto deste trabalho utilizado para novas transformações dá-nos a sua causa instrumental eficiente; o sujeito, que trabalha, tem a nobilíssima dignidade que cabe a toda a causa eficiente principal; e o bem-estar material do homem, ordenado à sua perfeição espiritual, proporciona a causa final.

A causa material extrínseca e a causa instrumental eficiente preenchem o conceito vulgarmente designado por capital. Mas porque não se pode precindir de nenhuma das causas acima enunciadas sob pena de não termos riqueza --- a própria causa final tem de se fazer sentir, mesmo desvirtuada, visto que «omne agens agit propter finem» (1) ---, somos forçados a concluir que capital e trabalho são indispensáveis na produção de qualquer bem económico, sem nunca esquecer a altíssima condição de quem é seu agente: a pessoa humana, categoria máxima de toda a realidade que aqui tratamos.

Pondo de parte o homem e o trabalho por ele desenvolvido, assim como o aspecto teleológico da produção de bens económicos, os outros factores de riqueza --- e que, em si mesmos, já são riqueza --- constituem aquilo a que se chama património.

O património é a face estática da riqueza. Esta, no seu aspecto dinâmico, toma o nome de rendimento.

O rendimento assume quatro modalidades: salário, quando é a remuneração da actividade exercida pelo trabalhador; juro, se é contrapartida daquilo que o capitalista investe; renda, quando corresponde a valores económicos na raiz de cujo desenvolvimento se situa a propriedade sobre imóveis; lucro, se é a paga dos bens devidos ao empresário, no meio da incerteza que este suporta.
 
Todos estes agentes --- trabalhador, capitalista, proprietário ou empresário --- todos eles (e convém não perder de conta que nada impede a reunião, na mesma pessoa, de mais de uma daquelas qualidades), todos, sem excepção, impulsionam as mudanças que se dão no circuito económico e, por esse facto, merecem ser compensados através de réditos.

Para um juízo ético sobre tais formas de enriquecimento, é indiferente a distinção. Não há necessariamente qualquer desordem nelas: todas são legítimas desde que se observe uma correcta proporção entre aquilo que se presta e o que se acumula; e qualquer delas é imoral, se esse equilíbrio se desfaz.

Exposto isto, detenhamo-nos um pouco mais sobre o laço que une capital e trabalho:

A sua união é tão estreita que não conseguem existir um sem o outro. O insuspeito Marx não duvidava reconhecer que «o trabalho não é a única fonte (...) da riqueza material» (2) e logo, invocando William Petty, acrescentava que «o homem é o pai dessa riqueza e a terra é a mãe» (3). Noutro lugar da mesma obra, afirma que é impossível «produzir botas sem cabedal» (4) e que «(...) hoje, como no primeiro dia da sua aparição na cena do mundo, o homem é obrigado a consumir antes de produzir e enquanto produzir.» (5)

O trabalho, isolado do capital, é como o escultor que nada cria, porque o separaram da pedra bruta, da qual devia sair, com vida, a estátua sonhada. Por outro lado, de que serve o capital, se não der frutos? E como dará frutos, se não for trabalhado? É pois o trabalho que dá forma ao capital, mas, sem este, o trabalho também não teria onde actuar. Cindir trabalho e capital é um pecado ontológico levado ao campo da economia. No domínio do pensamento, a ruptura da unidade do Ser provocou os erros do empirismo e do racionalismo, correntes que se perfilam numa relação de antagonismo, sem encontrar remédio por mais que o procurem, porque cada uma delas está amputada do que a outra tem.

Em economia, essa quebra de harmonia trouxe-nos as falácias do capitalismo, a que se opuseram as utopias socialistas. Nenhum destes modelos se pode oferecer como solução alternativa. As promessas de salvação, como as apregoam, são de realização impossível. Ambos se revelam incapazes de brindar os povos com a felicidade que anunciam. A estrutura de um e de outro padece de um gravíssimo vício de origem --- a já assinalada falta de unidade ontológica.

Este duelo há-de prosseguir enquanto os filósofos voltarem costas à lição perene da escolástica e os políticos ignorarem o exemplo das corporações medievais, experiência que mereceu os mais rasgados elogios a próceres do comunismo, que não ocultaram as excelências daquele sistema laboral (6). O confronto só acabará quando se operar a integração do elemento formal no elemento material da realidade económica. Porém, enquanto isso não ocorrer, importa lembrar que o comunismo, na sua base de uma economia socialista, é mais humano do que o capitalismo, porque o trabalho é uma actividade do homem, ao passo que o capital está na natureza, onde o homem, que não o criou, vai encontrá-lo. Portanto, numa escala de dignidade, vale mais o comunismo do que o capitalismo porque o trabalho é superior às coisas. No entanto e independentemente desta hierarquia, a conclusão será sempre a de que ambos os elementos --- trabalho e capital --- são factores imprescindíveis à produção de riqueza.

Quando se convencerão os povos que o apregoado antagonismo entre capitalismo e socialismo é um formidável embuste, porque qualquer destes dois sistemas, no enunciado abstracto dos seus princípios motores, está privado daquilo que o outro possui, consequência da insuperável falha que veio quebrar, como acima se referiu, a unidade ontológica da realidade económica? Quer dizer: um e outro são sistemas incompletos. Na base, tal antagonismo não existe, porque a ideia de que um sistema exclui o outro, é uma ideia falsa! E a sua falsidade é tão evidente que se torna difícil acreditar que não seja maldosa. A tragédia está na luta desesperada em que cada um, aparentemente, se esforça por suprimir o outro, em lugar de confessar o elo indestrutível e indesmentível que os une. Não está, pois, o remédio na disjuntiva capitalismo ou socialismo  Os que se pronunciam a favor da existência de um antagonismo porque, afiançam eles, um deste sistemas é remédio do outro, por este modo desprezam, esquecem ou, numa astúcia muito maldosa, ocultam aos olhos do vulgo que a causa formal actua sobre a causa material, de maneira a formar o todo económico. Isto é: o capital, que é objecto da propriedade, sem ser trabalhado, é massa informe, destituída de qualquer utilidade; em contrapartida, o trabalho, se não tiver bens onde possa exercer a sua acção, perde a sua razão de ser. Significa isto que os dois elementos, volta a insistir-se, são imprescindíveis para a criação de riqueza. Este entendimento, presidiu à constituição das corporações, esses organismos modelares da vida económica, cuja existência a Idade Média conheceu.
Regressamos, assim, ao ponto de partida: a riqueza é o produto do capital informado pelo trabalho. A sua distribuição, portanto, tem de passar por estes dois factores e contemplar todos os agentes económicos envolvidos no ciclo da sua produção.

"As coisas são de quem nelas trabalha", tornou-se num estribilho que não é invulgar ouvir no grémio socialista. Esta ideia constitui mesmo um dos pilares da sua doutrina. É uma sentença que encerra alguma verdade. Porém, tal como está enunciada, deixa a impressão de que só quem trabalha é dono das coisas que trazem a marca do seu esforço activo.

De qualquer modo, a frase citada é proferida com frequência. Bastante defeituosamente, mas é. Ao menos, seria razoável esperar uma atitude coerente por parte dos seus autores. Mas nem isso acontece. Quando a gente conta que eles surjam a censurar mais-valias, repudiem heranças, recusem doações, enfim, virem costas a todo o tipo de liberalidades, é vê-los cada vez mais sôfregos de bens que não derivam de trabalho por eles realizado. Agarram-se gulosamente à riqueza que lhes foi parar às mãos, sem que tivessem mexido um dedo para a sua produção; e negam-se a repartir lucros por todos quantos interferem na génese dos proventos que lhes tocam. Impávidos na teoria económica que soltam das suas bocas enganosas, não vêem consequências de maior em afirmar que as coisas são de quem nelas trabalha, pois, nisto de dividir, o quociente nem sempre é o mesmo --- quando chega a altura só os privilegiados aparecem no divisor.

Não lhes chamemos poços de ganância. É uma injustiça! Eles são os novos franciscanos. Não estão famintos de dinheiro: o que têm é que os seus hábitos de vida traduzem um estilo novo de entender a grandiosa ascese escondida na regra humilde do poverello de Assis.

Por banda do capitalismo, assiste-se ao culto da liberdade de mercado. Mas a liberdade, de que falam, é a que permite o triunfo saído de um jogo de forças, que se chocam dentro do maior relativismo de valores e em condições muito próximas, pela sua correspondência e pelo que têm de equivalente, às vividas na lei da selva. Os descamisados, que o liberalismo económico gera, vão engrossando as fileiras do exército de reserva industrial, um dos pontos de apoio da estratégia marxista que, naqueles deserdados da fortuna, cheios de revolta tantas vezes justa, descobriu uma força difícil de travar, da qual se serviu para a concretização dos seus propósitos.

Uns e outros --- socialistas e capitalistas --- idolatram, com o mesmo fervor, o metal luzente. No socialismo, temos um regime penitenciário, onde, debaixo da ameaça do chicote, se anda por caminhos previamente definidos e só por aí. O capitalismo, aparentemente, dá outra soltura até que o assalariado percebe que tem de aceitar as condições de trabalho oferecidas, sob pena de nem isso conseguir e morrer à míngua de sustento. A sujeição é de diferente espécie, mas é do mesmo grau --- viola brutalmente os direitos da pessoa humana. Ou noutros termos: a violência tanto pode partir de um patrão que pune o empregado, a  quem, pelo menos precipitadamente, acusa de pouco diligente ou prevaricador, como daquele que o põe na rua em circunstâncias idênticas!

Desenganemo-nos: só se avançará na justiça social com o regresso à ordem tradicional, porque é a única que pode pôr-se conforme à natureza das coisas!
 
Joaquim Maria Cymbron
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  1. S.Tomás de Aquino --- Summa Theologica I, q. 44, a. 4.
  2. Karl Marx --- O Capital, I, Delfos, 7.ª ed., p. 21.
  3. Ib.
  4. Op.cit., p. 103.
  5. Ib.
  6. Karl Marx: «As leis das corporações da Idade Média impediam metodicamente a transformação do mestre em capitalista, limitando por éditos rigorosos o emprego de artífices que não pertencessem ao seu ofício. A corporação guardava-se igualmente com um zelo ciumento de toda a incursão do capital comercial (...). O comerciante só era suportado a título de retalhista, podia comprar todo o tipo de mercadoria, exceptuando o trabalho. Quando circunstâncias exteriores necessitavam de uma progressiva divisão do trabalho, as corporações existentes subdividiam-se (...) ou então formavam-se novas corporações ao lado das antigas, sem que ofícios diferentes fossem reunidos na mesma oficina. A organização corporativa excluía portanto a divisão manufactureira do trabalho, embora desenvolvesse as suas condições de existência, isolando e aperfeiçoando os ofícios. Em geral, o operário e os seus meios de produção ficavam soldados um ao outro como o caracol à sua casca.» (Op.cit., p. 225). Mais adiante, lê-se: «(...) o aparecimento do capitalista apresenta-se como resultado de uma luta vitoriosa contra o poder senhorial com as suas prerrogativas revoltantes, e contra o regime corporativo com os entraves que punha ao livre desenvolvimento da produção e à livre exploração do homem pelo homem.» (Ib., p. 443). Continuando, diz aquele autor: «A classe assalariada, que surgiu na última metade do século XIV não formava então, como no século seguinte, mais do que uma pequena parte da população. A sua posição estava fortemente protegida, nos campos, pelos camponeses independentes, na cidade pelo regime corporativo dos ofícios. (...). Uma grande parte do produto nacional, transformada mais tarde em fundo de acumulação capitalista, entrava ainda então no fundo de consumo do trabalhador.» (Ib., p. 459). Já no ano de 1848, Marx anunciara que os proletários «tentam recuperar pela força a posição perdida do artesão da Idade Média.» (MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA, Publicações Nova Aurora, Lisboa, 1976, p. 53). Posteriormente, Friedrich Engels vem depor como segue: «A indústria do artesanato medieval, local e corporativo, impossibilitava a existência de grandes capitalistas e de operários assalariados por toda a vida, tal como os cria, necessariamente, a grande indústria moderna, o actual desenvolvimento do crédito e a evolução correspondente das formas de troca, a saber: a livre concorrência.» (ANTI-DÜHRING, Edições Afrodite, 2.ª ed., p. 185).
JMC