segunda-feira, 22 de novembro de 2021

O REGRESSO DO MONSTRO

Está de volta o vírus matador? Pelo que foi posto a correr, parece que sim. E que é mais de recear: o que se anuncia; ou o anúncio que se faz? Quanto a mim, não há que ver: a resposta está no segundo termo da alternativa!

Ao arrazoado dos políticos, em volta de um mal por enquanto indefinido, já ouvi chamar discurso apocalíptico. Reprovo esta aproximação – o Apocalipse é possivelmente o livro de mais difícil leitura de toda a Bíblia, mas o Apocalipse não é, por certo, nenhuma Torre de Babel.

E como se reage a esta Torre de Babel? Por mais que isso possa contrariar alguém, direi que esses o fazem de forma bastante redutora.

Senão, vejamos:  

Ai de nós, porque vai a pique a economia! É o que mais se ouve nas hostes adversas às cadeias que a loucura de uma pandemia montada criou para nos pear a todos! Por mim, é este o brado de aflição: Deus nos acuda, porque nada mais se vê a não ser um desastre material!

Acaso é a economia a base de tudo que temos a viver? – É certo que o ar não chega para sustento do homem. Mas reduzir o statu uiae dos mortais a um mero processo que garanta a continuidade física de cada um de nós, coloca-nos num ponto sem horizontes de futuro. Insistir neste caminho, será privar-nos de uma dimensão situada muito acima do que nos é exibido no frio quadro de umas colunas do deve e do haver, tábua emocionalmente inexpressiva e carregada de uma nota bem contingente. Portanto, anda desumanizado o que se oferece aos nossos sentidos e, principalmente, se não for capaz de provocar-nos um deleite maior do que aquele que podemos atingir no gozo dos valores materiais. E ainda se espantam os povos que a mole de gente frustrada não pare de engrossar!

Porém, não será realmente o afundar da economia o maior perigo que devemos temer num futuro próximo? – Estou em crer que não! Digam os especialistas se não é verdade aquilo que o profano vê e que se reduz a linhas muito simples de entender: se alguns sectores da vida económica se sentem estrangulados, outros há que nunca encaixaram tanto dinheiro! Como se ousa, pois, falar em catástrofe económica?

Na análise da presente situação económica, é curiosa a tendência que coloca o perigo de ruína próxima como o mal que vai cair sobre os agentes que operam no mercado pelo lado da oferta. Pergunta-se: que sorte está reservada aos consumidores, os quais, pelo próprio jogo do movimento da oferta e da procura, perderam poder de compra? Não sofrem eles também os efeitos de uma pandemia, real ou simulada que ela seja?

Ninguém, pois, ignore que o curso quotidiano da vida económica não pode deixar de abranger tanto os que facturam como aqueles que gastam. Daqui, pois, ressalta como dado certo, esta conclusão: se o cliente desaparece por míngua de recursos, quem presta o serviço procurado, também não sobreviverá!

Entre o corpo económico e o de cada um de nós, cabe estabelecer um certo tipo de paralelismo. Assim, é evidente que o nosso organismo assimila o que pode revigorá-lo, e elimina o restante de forma análoga ao que, no processo económico, se verifica para alimento da comunidade e, mais tarde, perde a utilidade inicial sendo, por isso, lançado fora do circuito. São dois momentos indissociáveis: cindi-los é temeridade grosseira e votada ao insucesso. No entanto, porfia-se em buscar saída para o mal, ainda por cima através de um discurso grandemente afastado do rigor exigido nesta categoria de análises!

Estará na economia, porventura, a tábua de salvação para o Mundo que habitamos? – Já acima se disse que o homem carece de bens terrenos, que lhe permitam sobreviver. Este propósito é necessário à sua felicidade, mas não basta porque, acima do que é matéria, paira o espírito que nos vivifica! Não reconhecer esta verdade cristalina, da parte de quem o fizer, equivale à confissão de que se sente reduzido a um estado pouco menos que bestial.

Entretanto, algo há que confunde quem examina o procedimento dos que criticam os efeitos da pandemia. Senão, vejamos: num primeiro momento, deitam-se a carpir a sorte da economia, que antevêem calamitosa para o lado que já sabemos e com os resultados que nos são apontados; logo a seguir, persistem em maldizer as fabulosas receitas que, segundo eles, se vão arrecadando à custa das pesadas restrições, de toda a ordem, que nos atingem. É flagrante a contradição!

São incapazes de ver que há uns desgraçados sem saber onde gastar mais dinheiro em busca de meios que os livrem de um mal, muito possivelmente só real nas suas mentes perturbadas por uma acção concertada e de raiz diabólica. Não é razoável esperar que alguém tolere a posição insensata dos que esbravejam contra os negócios chorudos  que denunciam e, ao mesmo tempo, exigem que baixem os montantes que alguns agentes económicos têm vindo a encaixar.

Dentro do delírio, que se vive, como há quem tivesse querido e ainda queira que as coisas se configurem de outro modo? Com efeito, é muito difícil, para não adiantar que se apresenta de todo impossível, que a consequência não fosse a que temos à vista. A censura, aqui formulada, é assim dirigida a todos os que detêm poder decisório e, que por acção ou omisão, atiraram connosco para o tristíssimo lugar em que nos arrastamos.  

Desde sempre, a oferta existe para responder à procura: ninguém produz e coloca à venda se, antes, não tem uma expectativa razoável de dar com quem apeteça os bens que são exibidos no mercado. E a verdade é que toda esta gente, mergulhada na credulidade dos efeitos económicos, que umas teses em voga, sem ponta de consistência, lhe martelam os ouvidos com  uma cantoria, cheia de som, mas que depressa perdeu o tom, essa gente, não o esqueçamos, tem capacidade eleitoral – goza assustadoramente do direito de voto!

Acha-se, pois, investida de uma parcela de soberania. Mais uma vez, revelação firmíssima de que a legalidade nem sempre atinge o cume do que é legítimo. A soberania consiste no poder de impor aquilo que foi querido em consciência. Assim é, num plano ideal, porque a crueza da realidade oferece espectáculo bem distinto. Na verdade, os arautos da multidão que formam, no tempo que corre, o ádito sagrado onde se esconde o centro de todas as decisões, esses supostos porta-vozes do querer público vêm, de novo, mostrar um vício que é crónico na massa de que brotam; esse vício tem um nome – irresponsabilidade! Ora se é certo que consciência nem sempre anda acompanhada de equidade, o que se torna impossível é o exercício de um governo recto onde falta o rigor dialéctico.  

Ao longo de um tormentoso penar, em que já pesam os grilhões da servidão para aqueles que se deixam lançar num cativeiro sem fim, a multidão vai descobrindo que, no caminhar de quem manda, frequentes vezes se esquece a missão de prosseguir na efectivação do bem comum. E nota que esses, abusando de um distorcido argumento de salus populi, pervertem-no por completo e riscarão da lista da cidadania o nome de qualquer infeliz que ouse dizer – Eu tenho outro remédio para os males que agitais!

Para trás, como claramente se vê, ficaram as fronteiras da economia. Nada falta acrescentar-lhes. Passando, então, aos domínios da política, de duas categorias são os factos que merecem ser observados:

Comecemos pelos que se reconduzem ao drama à volta do qual gira o que aqui é exposto. E, aí, concedo que, talvez por predisposição temperamental e grandemente por formação adquirida à custa de prolongada ascese intelectual no tempo, mais do que amontoar elementos separados, gosto de os ordenar. É a única via à qual, desde longa data, me acomodei para penetrar no conhecimento da realidade que continua a cercar-me. E este método é sinal inilidível de que sigo vivo.

Ao escolher deste modo, no plano político passa a estar ao meu dispor a faculdade invejável de traçar, com precisão, a distância que vai da pólis, socialmente equilibrada, para a horda que se agita nas indecisões do rumo a seguir, porque nem capaz  é de o definir.

Há uma constante que se mantém viva no meio daqueles que engrossam as fileiras destes bandos, no que diz respeito ao momento que o Mundo passa: não desistem de abrir a cartilha da pandemia e, aí, vá de bolçar sobre outros os artigos de uma crença desesperada. Provas do que sustentam, na sequência dos sermões que trazem de encomenda, nem uma, olvidando um axioma basilar para quem argui – affirmanti non neganti incumbit probatio!

Como pouco acima foi referido, ai de quem se atreva a contraditá-los: caem-lhe em cima e não descansam enquanto o  não tiverem bem moído! À falta de primor intelectual, refugiam-se nos mais comuns chavões e, no mínimo, julgam o temerário, que os afrontou, como sendo alguém sofrendo de uma capitis deminutio, só porque teve a audácia de cometer a mais tenebrosa de todas as heresias – negar a existência de um vírus quando não basta simplesmente duvidar dela. Sentiram-se afrontados com tanta impiedade; e nada como fulminar o miserável infiel com os estafados decretos de uns amos, aos quais rendem um culto quase ou mesmo idolátrico. Temos, diante dos olhos, o quadro da Democracia no seu mais luzido esplendor!

É altura, pois, de continuar  no outro campo de factos sem ligação directa à economia. E este ganha maior valor no problema que aqui se aprecia, porque a realidade mostra não ser certo que a praga resulte de um agente biológico, e que o efeito deletério da apregoada pandemia se projecte apenas no rasteiro patamar da riqueza material, porque aquilo que insofismavelmente se espalhou é um pavor, quase um pânico universal que é psicológico e cuja matriz é de natureza moral.

Por conta dos muitos que persistem em manter-se cegos ao fundamento do mal, que nos aflige, é que o micróbio-espantalho ou lá o que ele seja, teima em não ir embora. A continuarmos assim, não venham, pois, queixar-se do risco de naufrágio quando todos nos viermos a afundar no mar revolto em que navegamos.

E porquê esta convicção? É a história do pensamento humano que a transporta até junto de nós. A Terra gira e, com ela, os séculos também rodam; porém, no meio deste movimento, o homem é o que menos muda. Nos defeitos e também nas suas virtudes!

Platão; Tomás Moro; e Campanella são fontes obrigatórias se buscamos resposta para esta angustiante questão. Não há mais testemunhos? – Muito provavelmente haverá. Eu é que não os conheço. Por isso, obedeço à máxima: ubi nescit, ibi taceat!

São obras de indicutível interesse. Mas não trazem propriamente a solução do problema.

Mais tarde, os socialistas românticos vieram atar-lhe umas pontas. Mas o alcance das suas lucubrações não foi além do que esses utópicos alcançaram noutros campos: duraram o tempo dos caprichos que ditaram moda!

Era de prever. Deles zombavam os próceres de um socialismo que se proclamava científico. Este é bastante mais sério: constitui ameaça que paira sobre nós, e não se arredará enquanto os homens não se capacitarem que nada nem ninguém pode contrariar a ordem natural das coisas, ou seja, que nos defrontamos com a impossibilidade de violar a unidade transcendente do Ser. E quem diz unidade não esquece naturalmente o resto que responde aos nomes de verdade, bondade e beleza.

Capitalismo ou socialismo! Esta infernal disjuntiva subsistirá enquanto os homens – uns por ignorância e outros repletos de malícia – teimarem no erro que insisto em chamar pecado ontológico. Desvio tremendo, que se estende a muitos campos do nosso peregrinar na Terra, assim determinando o pensamento e o agir consequente daqueles que trazem a desgraça a si próprios e aos seus semelhantes.

Mostram-se incapazes de ligar, o que só nas suas mentes anda separado. Se tivessem a suficiente humildade e correspondente coragem moral, depressa confessariam a verdade subjacente a estes dois sistemas, e que mostra o laço que une ambos.

Infelizmente, não sucede como seria desejável. Logo se verifica que a satânica disjuntiva, que aqui se combate, é fruto das insídias do Maligno. Assim foi que se cavou mais um divórcio naquilo que o direito natural ditou que fosse uno. Com efeito, será sempre vão o propósito de rasgar um sulco entre causa material e causa formal.  É luta inglória!

O mais que podem conseguir é abrir um antagonismo nas sociedades humanas. Desgraçadamente, muitos são já os que apareceram. Só uma profunda reforma de mentalidades e hábitos será capaz de fazer reverter este curso amaldiçoado à luz do que é o ideal de uma sã Justiça, que o mesmo é dizer, daquilo que Deus ordena!

Em páginas, cujo texto inicial permitia crer que o objecto do mesmo não fugiria à praga de um estranho vírus, se venha acabar numas linhas com apreciações de pura economia, pode ser que surpreenda. Mas não é motivo para tanto.

Quem se debruçar sobre o teor do que escrevi, sem grande esforço notará que duas são as ordens de razões para assim terminar:

A primeira tem a ver com um estilo de argumentação ad hominem. É bem visível que nesta pugna, o ataque se dirigiu à acção governativa no combate à pandemia. E, nesse reduto, ouviram-se vozes carpindo os efeitos económicos, mas bem limitados à devastação provocada nos sectores da vida económica de Portugal. Embora curta, impunha-se resposta ao concreto discurso dessa gente tão alarmada com o que vêem.

Depois, tornou-se altura de passar a uma análise mais geral e abstracta da economia, sempre dentro do meu jeito de abordar estes assuntos: levo-a a cabo de uma forma que, se for correcta agora, também o será no futuro. E para tal não é preciso escrever muito. Faz falta meditar, longamente e com aturado cuidado, isto sim; basta depois ser preciso, claro e conciso no que se deixa escrito. Procuro seguir este caminho: se o consigo ou falho, a outros caberá dizê-lo.

Dada esta explicação, resta acrescentar ainda que a ordem de exposição, por mim observada, para lá da razão sistemática acabada de apresentar, talvez não fosse diferente.

Na substância, a crise da propalada pandemia reflecte o desastre nacional que vivemos, mas revela bem que não é um vírus – fictício ou por mais autêntico que seja – o veneno letal que percorre o corpo de  Portugal. Portugal carrega um demorado sofrimento, cuja origem nada tem a ver com a absurda pandemia – esta apenas o veio agravar. O seu mal é de raiz política, a que agora juntaram um problema de saúde que culpam da má situação económica.

Por isso, não tem de admirar que eu obedecesse à sequência, que aqui fica. Foi a forma de correr o palco, onde se desenrola o trágico drama que todos conhecemos. De facto, o inimigo principal que aflige Portugal é o sistema político que o oprime, este tumor maligno que o mina há quase 50 anos.  Esta é a verdadeira catástrofe que enfrentamos. A pandemia – a existir realmente e com as proporções que afirmam – é apenas um acidente. Um escolho de percurso que exigiria outro timoneiro, mas está longe de ser a causa da desgraça em que caímos!

 

Joaquim Maria Cymbron