quinta-feira, 9 de novembro de 2017

MAGISTRATURA DE RASTOS


Pelo título daquilo que hoje publico, eu próprio estive tentado a colocá-lo no outro blogue, que tenho, por achar que ali seria o sítio mais ajustado ao que aqui escrevo. Revendo todo o conteúdo desta peça, concluí que tavez não fosse assim. Isto porque, apesar de estarem as linhas, que abaixo vão seguir, marcadas na sua origem por um facto eminentemente jurídico --- o acórdão de um tribunal superior, condição que o devia atirar para o já referido blogue --- o certo é que a generalidade, a abstracção e o apelo à transcendência, que me habituei a observar em quase tudo que assino, desta vez determinaram que o sítio de eleição para colocar o presente texto fosse este. Com efeito, este acórdão deu origem a grande agitação. Essa turbulência, bem vistas as coisas, não tem a ver com o seu núcleo porque gira, ostensivamente, em redor dele. E a fúria alucinada, que se levanta, ataca valores que, sem descanso, venho defendendo neste blogue. Por tudo o que acabei de expor, é este o lugar!

Quem conhece o meu passado, através de qualquer um dos meus dois blogues, bem sabe que não é muito positiva a consideração que tenho pela magistratura portuguesa. Por isso, bem podem alguns, num primeiro golpe, ficar atónitos com o que vão ler. Depressa verão que não mudei.

Nunca eu descri da universalidade dos Magistrados. E sempre o deixei claramente expresso. Ataquei invariavelmente as decisões que tive por injustas e só passei à crítica pessoal quando a intensidade e a frequência das más decisões eram de tal monta, que se tornava difícil continuar a tratá-las como se fossem simples erros de ofício. Nesses momentos, é certo que muitas vezes tive um comportamento agressivo, tudo dentro do que entendo ser lícito quando se reage a crimes. Nem sempre tenho sido compreendido. Daí, os conflitos com alguns magistrados. É esta uma comprida luta, que remonta ao ano de 1984 e que se agudizou, especialmente, desde 2000. Para ser mais exacto, não seria mentira situar o seu ponto de partida poucos anos antes do 25 de Abril.

Desta vez, discorro de forma que, pelo ardor posto nas palavras, parece que defendo dois Magistrados. Realmente, sustento que o acórdão, por eles prolatado, nada tem de írrito. Digo isso porque, em consciência, acho que é de inteira Justiça. No entanto e para evitar equívocos:

Não vim patrocinar ninguém: não  fui mandatado, nem o podia ser porque não tenho títulos para tanto. Escrevo o que segue porque foi sempre minha preocupação agir na medida do conceito que tenho da Justiça, e na sua exacta proporção. E que Justiça se procura aqui? Já disse que não pugno por nenhum magistrado e apontei as razões. Neste acórdão, há mais do que um ataque pessoal. A figura de um Desembargador, isolado não se percebe como, foi o pretexto para um ataque de fundo.

E é isso que eu combato! 

Do Tribunal da Relação do Porto, saiu um acórdão que produziu um resultado mau e feio. A sua maldade é uma questão de ética; a sua fealdade representa um problema de estética. Deixemos por ora qualquer alusão directa à maldade, da qual se irá tratando mais desenvolvidamente ao longo do que aqui se expõe  e que todos, facilmente, hão-de advertir.

Pode surpreender que se ache a estética suficientemente relevante para análise de um caso como este. Porém, a estética é exigível não apenas no objecto do exame a que se vai proceder, como o é em tudo quanto interesse ao homem. Faltando estética, a beleza ontológica sofre, pelo que o Ser também se ressente nos restantes atributos transcendentais, dos quais, para o fim aqui presente, nos interessa ainda a sua imprescindível bondade.

Consoante se acabou de dizer, ao cuidar-se de imediato da fealdade por forma expressa, com isso não se exclui a atenção que se irá dedicar à privação de bondade em tudo que está ligado aos efeitos do acórdão. A bondade é o mais nobre de todos os atributos transcendentais. E o chamamento, que se lhe fizer, está subjacente na sequência dos males que se irão assinalando.

Quem é feio no corpo, pode ter uma alma pura; à formosura física nem sempre corresponde um carácter elevado e íntegro. O quadro não ficará completo se não acrescentarmos que as relações, agora descritas, são susceptíveis de outras combinações. E assim temos como possível a que se dá quando, no sujeito de que falamos, à fealdade se junta a ruindade.

O que se apresenta não é tanto uma questão de plástica, em que se vêem desenhadas ou as mais belas linhas esculturais, ou temos um atroz vazio de formas.

E é lei constante ou sina fatal, como se prefira, que aqueles com os quais a natureza se revelou avara, recusando-lhes o que classicamente se admite como sendo o belo, esses são seguramente ou heróis de resignação, ou uns tristes revoltados que não sabem ser felizes, nem deixar que outros o sejam.

A unidade psicossomática não se rompe. É esforço vão negar esta impossibilidade. Daí que os aleijões do corpo marquem o indivíduo: ou tem alma grande e voa nas alturas; ou o espírito é mesquinho e não tardará que se vejam os distúrbios. 

Para quê esta ligação? --- Depressa se perceberá a razão.


No alarido levantado pelo acórdão da Relação do Porto, que se debruçou sobre um caso de violência doméstica nascido de uma história de infidelidade conjugal, nesse berreiro descoordenado, sobressaem grupos mais exaltados e no meio dos quais avultam figuras à volta das quais não será aventura acreditar que saíram de algum inferno dantesco.1

Toma-se este facto para logo falar do que, por regra, se vive no drama judiciário.


Há quem sustente que os nossos juízos de censura não escapam a emoções por nós já vividas ou outras paixões do presente. Esta opinião parece válida! E isso não se passa exclusivamente com as censuras que fazemos: o mesmo se dá quando emitimos um louvor, porque na realidade não há juízo de valor absolutamente indiferente. Nenhum ser humano pode arrogar-se o dom da imparcialidade: em maior ou menor grau, todos estamos sujeitos a influências endógenas e exógenas. Homem ou mulher, ninguém se consegue libertar totalmente da dependência que o subordina à sua genética e o une ao seu passado. É um denominador comum a todo o género humano.

Avalia-se um acórdão proferido em processo-crime. É importante que isto se note. Isto é: sobre qualquer julgador, impende legalmente o dever de buscar a verdade material para apurar tudo que pese a favor de quem é arguido.

Firmado este pressuposto, cumpre continuar:

A jeito de apreciação liminar, desde já se diga que o acórdão não justificou as agressões infligidas à vítima, conforme ao que, por aí, soa: apenas atenuou a culpa de ambos os arguidos. Se tivesse considerado justificado o comportamento de qualquer um deles ou dos dois, teria havido, pelo menos, uma sentença absolutória. Ora isso não sucedeu.  Pode-se certamente discordar da medida das penas fixadas. É certo que a particularidade de aparecer um marido atraiçoado, de gorra com o cúmplice da mulher, só isso era adequado a levantar no espírito, de quem julga, as mais sérias dúvidas sobre qual era, afinal, o sentido que esse marido tinha da honra conjugal. Mas ponderar sobre o grau de atribuição da culpa, é do critério do julgador e só dele, qualquer que seja a instância percorrida na causa. Quem quiser entreter-se com esse passatempo, que o faça! Contudo, isso é outra questão. O que não podemos é consentir que se deturpe o texto expresso e se formule um processo de intenções a quem elaborou o acórdão, só porque umas sensibilidades mais delicadas se acham arranhadas nos seus pruridos. Proceder à hermenêutica do acórdão, formulando a quem o emitiu um processo de intenções veladas, é perfeitamente deslocado. Esta atitude não é honesta, nem é inteligente e será facilmente desmontada se, em sede própria e como se espera, prevalecer a fria rectidão sobre uma emotividade muito suspeita.

Para que conste, junto de profanos e até de alguns iniciados que fingem trazer esquecido o que aprenderam, é o momento de esclarecer que, na ordem jurídica portuguesa, o acórdão de um Tribunal se traduz numa sentença proferida colegialmente. Bastaria, de resto, uma simples e breve análise da estrutura morfológica da palavra para chegar à conclusão de que acórdão é o juízo daqueles que acordam em decidir neste ou naquele sentido. É, inclusive, a forma verbal utilizada para dar começo ao que se designa por acórdão.

Entretanto, inchada a ponto de explodir de tolerância, apareceu a falange costumada que nada quer com o peso de um passado ao qual porfia em chamar obscurantista, e não se deixa enredar nas teias do que diz ser fanatismo Esses campeões do progresso, com a habitual isenção e honestidade recebidas de heranças já muito antigas, disparam freneticamente sobre um só Magistrado, quando é claro que o acórdão também foi subscrito por uma Desembargadora. Aquilo a que se assiste é a um fenómeno delirante, que teve o seguinte percurso: na génese e desenvolvimento do acórdão, participaram dois magistrados; no final, fica só o Venerando Desembargador. Ao que consta, a sua Veneranda Colega anda por aí a escusar-se de uma responsabilidade que, por ser comum, também lhe cabia.2 Deste modo, perante o juízo das turbas, resta um único culpado a defrontar-se com umas iras populares que tombam sobre a sua cabeça.

Falei de iras populares, mas alarguei-me em demasia. O que se observa é mais um movimento convulsivo de aguerridas Amazonas acompanhado por um pachorrento murmurar da massa indolente. Essa sanha derrama-se com uma especial intensidade sobre o CP de 1886. Nada a estranhar. Uma pergunta se impõe:

As Amazonas terão lido o diploma invocado no maldito acórdão? É natural que sim! Pelo menos, quanto a algumas, isso será certo. Porque as Amazonas são bélicas, mas as Amazonas não são ingénuas. Elas sabem apontar. E, para tal, precisam de conhecer quais são e onde estão os alvos que querem abater.

No específico ponto da violência exercida sobre o cônjuge adúltero ou o seu cúmplice, ou ainda sobre ambos, por quem se sente ofendido, anda muito escondido o sistema sancionatório aplicável à mulher que surpreendia o marido em flagrante delito de adultério, e o tratava com análoga fereza. Embora a indulgência da lei para com a mulher, vítima de infidelidade conjugal, só tivesse lugar num jogo de circunstâncias mais apertadas, verificado o quadro previsto na lei, a pena reservada à mulher que ia às do cabo, produzindo os resultados sabidos, era equivalente à do marido atraiçoado. Negar isto, é fruto de crassa ignorância ou de uma obstinação psicósica.

Vista a questão de outro ângulo, apenas um cego de espírito ou alguém que seja um poço de perfídia é incapaz de ver que a contingência de se ficar sujeito a uma sanção legalmente prevista, só por si, demonstra que o comportamento, ali julgado, não era lícito. Isto, por mais suave que fosse essa reacção jurídico-penal, o que, tudo bem ponderado, talvez nem seria assim tão meiga quanto se poderá julgar. Com efeito, o desterro para fora da comarca, embora a sua duração se prolongasse por um período relativamente curto, esse desterro, repiso, continha um quantum penoso, quase até ao termo da vigência daquela lei. Ainda hoje, apesar dos inegáveis progressos técnicos no campo das comunicações, não parece que seja um avanço no bem-estar de cada um. Se o fora, as pessoas levariam o tempo a deixar os seus lares e os seus locais de trabalho ou de mero convívio social, numa roda-viva sem parar. O nomadismo tomaria a vez da vida sedentária.

E não se deve esquecer que, quando os prevaricadores respondiam pela força física ou com armas ao cônjuge atraiçoado, causando-lhe essa reacção ofensas corporais ou até a morte, sempre que eram estas as linhas coordenadas, entrava-se nos domínios da legítima defesa. Por aqui se vê, que a lei não consagrava um direito de matar em nome de uma defesa da honra, conforme maldosa ou nesciamente alguns insinuam. De outra forma, cairíamos no contrassenso de ser legítima a réplica oposta a um comportamento igualmente legítimo.

No berreiro, que se estende sobre o País, também se vai ocultando que o complacente regime do CP de 1886, nos casos que se abordaram, tem hoje um correspondente muito aproximado no estipulado pelo CP vigente (art. 133.º). Qualquer dia também se hão-de virar contra este preceito. A agressividade posta nessa batalha dependerá dos interesses que a sua obnóxia escala de valores tiver por lesados. Estejamos atentos e a confirmação não demorará.

Quanto às alegadas injúrias contidas na redacção do acórdão, importa lembrar a lição de Beleza dos Santos para quem «(…) pode a injúria implicitamente referir-se a certos factos ou pretender justificar-se com eles (…).»3 e 4 Isto valeria na eventualidade de conter injúrias o acórdão. Por ironia, nem uma se divisa naquele aresto. Quem atentamente o ler, logo verá que a linguagem utilizada se limita a dar nome aos factos ali apurados, sob pena de perderem as palavras a utilidade que têm. Só uma intenção maliciosamente formada é capaz de descortinar algum termo injurioso em todo aquele discurso. Mal andaríamos se tivéssemos que recuar diante de susceptibilidades tão melindrosas. E isto é já conceder muito, porque pode legitimamente duvidar-se de tão fina delicadeza nos que por aí campeiam, soprando como danados.

É também imputado ao acórdão o delito de ter invadido terrenos vedados a uma justiça profana. Vejamos:

O acórdão limitou-se a colher padrões de uma obra que a Humanidade venera, como também, de forma muito geral e abstracta, lembrou as consequências que tem o adultério da mulher noutras sociedades. Citou a Bíblia, é certo, e isso é hoje a heresia máxima. Não se vê provocação maior para acirrar os ânimos das hostes seculares e, portanto, isso foi o que atraiu, sobre si, o fogo cerrado das baterias laicistas. Compreende-se! A repugnância pela palavra de Deus é uma constante no mais íntimo daqueles, cuja defeituosa constituição moral os impede de confessar que a Bíblia é um documento incontornável para crentes e não crentes. Quem a conhece, não lhe é indiferente, independentemente de seguir ou não a fé ali revelada. Recorrer aos seus ensinamentos, quando isso se faz de coração recto, é digno de encómio. Não está em causa a fundação de uma sociedade temporal hierática, mas sim apurar o que dizem livros de tão remota sabedoria.

À repugnância que estes desatinados nutrem pelo que é sagrado, junta-se o ataque. Não se esgrimem argumentos, que aliás não poderiam ser mais que formalmente lógicos, mas nem sequer isso se faz; agride-se pela via do insulto baixo e soez. Um ataque que, além do já assinalado vício de ordem formal, é materialmente torpe, porque anda associado à mentira e obedece a uma táctica mistificadora. Isto não é de hoje; é de sempre!

No acórdão, em apreço, não se lê uma linha da qual possa afirmar-se que está, ali, uma  profissão de fé cristã, judaica, muçulmana ou de qualquer outro credo religioso. Só por aqui falha o burburinho feito acerca desta peça judicial.  Desde que se guarde o devido decoro, é legítimo mergulhar na Bíblia, como permitido está o recurso à Tora, ao Corão ou a qualquer outro código de princípios religiosos, morais ou filosóficos. Desde que há fontes documentais, sempre sobraram provas de como os homens foram buscar, às esferas da transcendência, a necessária inspiração para as normas que os regem na sua ascese pessoal e, também, na convivência social. Essas normas, recebidas nas diversas comunidades, corriam através de gerações, por tradição oral, até que eram reduzidas a escrito. Pode, acaso, recusar-se a alguém o direito de se arrimar à palavra e ao exemplo de vida de tantos pensadores e místicos que enchem as páginas da História Universal?

Para estes revolucionários de entremez, será porventura lícito estabelecer uma lista de doutrinadores puros, ao lado de outros que são perversos? Se bem virmos, isso foi política que se adivinhava no Index e está actualmente a cargo da moderna Congregação para a Doutrina da Fé. Há, porém, umas bocas demagógicas que se esfalfam a vozear uma aurora de redenção para o pensamento. Na esperança de lograr esse objectivo, propõem-se sepultar as condenações visíveis no antigo Index como detestáveis relíquias de um passado hediondo e, à mistura com um rir escarninho, decidem varrer para longe os admonita da Congregação para a Doutrina da Fé, escorados naquilo a que eles, os guardiões do nada, chamam no mínimo conceitos bafientos. É, de uma ponta à outra, a apoteose da sobranceria própria dos que são irremediavelmente fracos. Nada a reprovar! Cai tudo no saco dos mais ortodoxos cânones democráticos. 

Arredada para longe a sombra da Igreja ou de mais regras que reconhecem no ser humano uma dimensão para além do que é terreno, os arautos de uma nova era de paz e de felicidade avançam com um prostituído fiat lux dos povos --- umas Constituições, mais ou menos pomposas, às quais, dizem, temos de abrir os olhos, depois de arejar as mentes. Isto não é abjecto; é grotesco: nem a Constituição da República Portuguesa de 19765 gerou Portugal, nem Portugal, por muito que o amemos, é o universo dos povos. Além de sectarismo nas ideias, padecem do mais estreito e mórbido nacionalismo!

Tudo o que é bom, interessa ao homem. Este rebuliço ainda poderia ter razão de ser, no caso de vir a tirar-se do acórdão prova da intenção de transferir preceitos da Sagrada Escritura para a lei portuguesa, com uma fidelidade integral. Tal propósito não existe. O que há nalguns pontos, é coincidência total ou meramente parcial. Julgo supérfluo descrevê-los.

O acórdão remeteu exclusivamente para a Bíblia? --- Sim, remeteu! Que tem isso de estranho? Apesar de uma notória dessacralização da sociedade portuguesa, para a qual continuam contribuindo os egrégios censores do acórdão pré-histórico, a verdade é que ainda a fé católica predomina entre nós. Terá sido isso a ditar a parcimónia nas citações? Foi por ser sabido que essa fonte ainda goza de muito peso em Portugal que, no acórdão, se optou pelo segmento bíblico que se afigurou mais pertinente? Ou ter-se-á travado por se pensar que, alongando-se mais, se podia incorrer num fastidioso autem genuit de citações, o que é sempre de mau gosto. A erudição, em excesso, é exibicionismo e o exibicionismo nunca assenta bem. Fosse qual fosse a razão, o certo é que, no acórdão, se resolveu parar por onde se vê. Quem julga tem, entre as suas prerrogativas, uma que é o poder de livre convicção. Além dos titulares dessa prerrogativa, ninguém sabe o motivo que formou essa convicção, porque isso cabe ao foro íntimo de qualquer Juiz e a devassa neste domínio está vedada.

Em desespero de causa, os malsins do progresso lembram-se de que a Bíblia fala do perdão de Cristo à mulher adúltera. Logo, vá de atirar isso à cara de quem eles designaram como sendo o responsável pelo crime nefando, que asperamente fustigam, e que já estaria trucidado nas suas garras se o pilhassem. Quem havia de pensar? Ateus, alguns deles e, outros, mesmo agnósticos confessos, agarram-se à tábua de Misericórdia que o Salvador estendeu a toda a humanidade, comprando esse dom com o Seu próprio sangue.6 Se não é uma simples argumentação ad hominem, andam bem por amparar-se a ela porque, nos tesouros da Misericórdia de Deus, não se faz acepção de pessoas: basta seguir a Cristo Redentor! E nada custa adiantar-lhes umas quantas coisas mais.

O perdão é realmente divino. Quem perdoa, por analogia de atribuição, participa da essência de Deus, obviamente que a um modo muito reduzido, é claro. O perdão torna-se mesmo imperioso porque, sem usar de misericórdia com o próximo, também não alcançaremos o perdão de Deus para os nossos pecados.  Portanto, se queremos ser perdoados, temos de perdoar. Por outro lado, é um direito aquele impulso que arranque do ofendido para obter uma justa reparação e, nessa qualidade, não pode ser negado. Algo que se deve reter, porque uma falsa pieguice, quando não é a noção de uma hipócrita caridade, tende a escamoteá-lo.

O Papa São João Paulo II ensinava: «É evidente que exigência tão generosa em perdoar não anula as exigências objectivas da justiça. A justiça bem entendida constitui, por assim dizer, a finalidade do perdão. Em nenhuma passagem do Evangelho o perdão, nem mesmo a misericórdia como sua fonte, significam indulgência para com o mal, o escândalo, a injúria causada, ou os ultrajes. Em todos estes casos, a reparação do mal ou do escândalo, a compensação do prejuízo causado e a satisfação da ofensa são condição do perdão.»7

É esta a lição do magistério pontifício; outra coisa, bem distinta, é a pergunta feita sobre qual a razão pela qual não usou o acórdão de misericórdia com a ofendida. A resposta, forçosamente, há-de dividir-se:

Primeiro, por uma questão de método e não propriamente de valor, dir-se-á que não houve ocasião de ter misericórdia com a ofendida devido a um concreto pormenor técnico: ela não estava a ser julgada, pelo que não precisava de atenuantes. Temos, depois, que não cabe aos Tribunais derramar misericórdia --- isso concede-se em sede própria: indultos e comutações de penas, competem ao Presidente da República, ouvido o Governo;8 as amnistias e perdões genéricos são do foro da Assembleia da República.9

Vão muito de moda os apóstolos de uma caridade manhosa. Sofremos todos a subversão de tão valioso bem espiritual. Esta subversão é, talvez, o mais áspero de quantos açoites nos fustigam. Não será temerário declarar que é mesmo o mais duro de todos, porque a caridade, já São Paulo pregava, constitui a virtude por excelência.10 Ninguém vive plenamente sem que a pratique.

Às hordas, que por aí pululam à solta, apetece perguntar que autoridade moral têm para falar de misericórdia, quando teimam em expor no pelourinho da irrisão pública, se não executar mesmo um Magistrado que caiu em desgraça ante a liberal visão daquela clemente malta. E uma vez que o acórdão transitou em julgado, perdoem elas a quem cometeu o terrível delito de não perdoar. Se não o fizerem, não podem admirar-se que as acusem do mais refalsado cinismo. Travando a infeliz marcha, que iniciaram, até esbateriam a interrogação que não pode afastar-se sobre o fundamento de uma sanha persecutória bem individualizada.

Haverá a coragem da humildade para dar este passo? Duvido! A humildade é arma dos fortes e estas hordas só têm a força balofa dos soberbos.

Ao que aqui escrevo, pus o título que acima se pode ler.


Está mesmo de rastos a Magistratura? Muito bem não se encontra! Porém, no meu entender, o mal não lhe vem do acórdão nem de uma tropa que apareceu agora e se agita de forma bastante excitada --- as já faladas Amazonas. O que mais choca é algo que, para mim, não é novidade.

Choca; dói; e é preocupante o que há muito se desenha e eu venho denunciando. Realmente, é inadmissível, chega mesmo a ser repulsivo, o espectáculo de  um coro de Magistrados enfileirando na ofensiva das Amazonas, engrossando as redes sociais e dando entrevistas à Comunicação Social. Se repararmos bem, as palavras mais incendiárias (ratione personarum) saem da boca de Magistrados. E é isto que agrava especialmente uma situação já de si bastante melindrosa.

Merecedora de censura por parte dos órgãos tutelares do poder judicial é esta promiscuidade. O Magistrado, que desce à praça pública, vulgariza-se; vulgarizando-se, não se pode admirar que o vulgo o trate com banalidade, porque vê nele um parceiro; e convertendo-se o Magistrado em parceiro de quiuis ex populo, não custa perceber no que vai dar o quadro criado por tão imprudente familiaridade.

Mas não são os Magistrados pessoas como os outros seres humanos? --- É fora de dúvida que sim! Então não lhes pertencem direitos iguais? --- De forma nenhuma! Como se explica essa disparidade? --- Muito simplesmente: os Magistrados, no dia em que aceitaram que uma beca os cobrisse, nesse mesmo dia renunciaram automaticamente a boa parte dos direitos de que haviam de usufruir, se não tivessem abraçado a espinhosa carreira de servir a Justiça. Vezes sem conto, o tenho dito; algumas, em que o escrevi. Todavia, continuarei na mesma senda porque se vê que muito falta cumprir. 

Joaquim Maria Cymbron
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  1. Nessa mole de gente, descobre-se um vulto esguio, de rosto pouco ou mesmo nada cativante, nariz adunco, a pele gasta. Juram-me que é o de uma deputada. Se indicaram a sua graça, já a esqueci. Nem isso me rala porque, só pela vista, desconfio que nenhuma terá. É um perfil que serve à maravilha como cartão de visita dela e de quem a acompanha nesta acesa luta!
  2. A depositar fé na comunicação social, a Veneranda Desembargadora, que também subscreveu o acórdão, declarou que não o lera na íntegra. Sempre na suposição de ser verdadeira a notícia, estamos perante um gravíssimo erro de ofício, a reclamar dos órgãos tutelares a competente reacção. Com efeito, ou a Veneranda Desembargadora, feita a leitura completa, assinaria o acórdão sem reservas, ou só assinava com voto de vencida: na primeira hipótese, melhor fora que estivesse calada porque não tem isso que descer à praça pública; na segunda, provocaria a intervenção do Presidente da respectiva secção. Essa atitude da parte dela seria formalmente coerente --- não se aprecia aqui a bondade da mesma --- e podia levar a diferente decisão. Se aquilo que Cino de Pistoia definia como um «ius () ab uno iudice stillatum», inaugurado ou já copiado pela Veneranda Desembargadora, se enraizar de modo a fazer escola, no futuro surge o risco de todas as decisões dos tribunais colectivos acabarem por ser imputadas apenas aos respectivos relatores. O que fez esta Veneranda Magistrada é verdadeiramente lamentável e arrasta à suspeição de que há, no mundo forense, um grande desnorte e acentuada carência de brio. Na verdade, quando a Juíza de um tribunal superior oferece ao público este espectáculo degradante, segue-se que algo não está bem na administração da Justiça --- temos que a dignidade vai fugindo daqueles lados cada vez com maior rapidez. Neste específico ponto e no caso concreto dos autos aqui abordados, deparamos com alguém que prefere deitar, sobre a sua beca, nódoas de um mau profissionalismo só para evitar o labéu de ser escrava de uma mentalidade tida como sendo arcaica. O estigma da retrogressão carrega tanto e gera tão doentio complexo, que muitos chegam ao extremo de simular o que talvez  não sejam, não sintam, nem tenham feito.
  3. Revista de Legislação e Jurisprudência, 95.º, p. 20. (O negrito da citação é da minha responsabilidade).
  4. Seria interessante saber como reagiriam estes fariseus de uma moral complacente, se fossem confrontados com o que Miguel Torga escreveu a respeito de uma parturiente que atendeu no velho Hospital de São Jerónimo, em Coimbra. Era a nona maternidade. Meretriz de profissão, nunca quis abortar. Criava os filhos onde vivia. O grande escritor, depois desta introdução, escreve: «O nono rebento nasceu como o de qualquer mulher honrada, (…).» (Diário, 28 de Abril de 1943). A contrario, para os furibundos zeladores da moral moderna, vai aqui implícita uma injúria porque Torga parece aceitar a distinção entre mulher honrada e a que o não é. Foi Miguel Torga um fascista encapotado? Era por ser o aniversário de Oliveira Salazar? Ou seria simplesmente porque a sua inteligência superior lhe mostrava que há desigualdade na natureza e também há um nome para as coisas? De resto, a meio deste troço do seu precioso e dilatado Diário, Torga tece-lhe rasgados e merecidíssimos elogios pela «sua folha de mãe corrida e limpa.» Era bom que este vulto da nossa literatura fosse mais lido. E principalmente mais compreendido, porque foi muito grande a sua dimensão humana. Nada tinha de demagogo, que é a imagem que dele fazem passar. 
  5. Avisadamente dispunha Gama e Castro que «a constituição de uma nação não faz a posição política dessa nação, explica-a.» (O Novo Príncipe, 3.ª, cap. VI). A actual Constituição, esta, nada explica; apenas complica! Para já não falar na falta de raízes históricas, tão acarinhadas por aquele autor miguelista. Ou é talvez por isso que só complica.
  6. I Cor. 6, 20.
  7.  Diues in Misericordia, VII, 14.
  8. CRP art. 134.º, al. f).
  9. Ib. art. 161.º, al. f).
  10. I Cor. 13, 13.

JMC