sábado, 27 de dezembro de 2008

O GRÃO-DUQUE DO LUXEMBURGO

 
O Grão-Duque do Luxemburgo avisou que não assinaria qualquer lei que autorizasse a eutanásia e o suicídio assistido. A reacção logo se fez conhecer: o chefe do governo procurou modificar a Constituição, negando esse poder ao soberano.
 
Na Grécia antiga, Platão defendeu como necessário à cidade ideal que os filósofos reinassem ou que os reis fossem filósofos (1). Sábia máxima, que descobria uma nobre intenção: a aliança entre saber e poder.
 
Hoje, a mentalidade é de destruição: para que se acelere o caos, urge que os eunucos sejam reis ou que os reis acabem eunucos.
 
Os poucos, que resistem, são execrados pela plebe. Plebe é o clero, a nobreza e o povo em estado apodrecido!
 
Entretanto, os sinos das nossas igrejas estão prontos para tocar as festivas notas que anunciam o nascimento do Salvador. Em qualquer altura do ano, mas especialmente nestes dias, impõe-se que tributemos apreço e rendamos o nosso aplauso, a quem prova com tanta coerência a solidez da sua fé.
 
Não o detiveram respeitos humanos; não curou de saber o que iria agradar às paixões da turbamulta; nem recuou perante o risco de isso vir a custar-lhe os títulos deste mundo. Tomou a decisão que se exige a um católico.
 
Se nos lembrarmos que, nas suas veias, corre sangue do último Rei de Portugal, então a admiração, muito legitimamente, transforma-se em orgulho. E pode ele estar certo que foi digno do Rei-Confessor, seu Avô.

Joaquim Maria Cymbron
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  1. A República, Liv. V.
JMC

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

1.º DE DEZEMBRO


Tenho necessariamente de me regozijar por que haja datas que ainda congregam alguns Portugueses e despertam nas suas almas brios há tanto adormecidos no conjunto da grei à qual pertencemos. Mas lamento profundamente que não se dê o mesmo relevo a Aljubarrota e tenhamos deixado que a festa dos Combatentes do Ultramar caísse nas mãos do poder.
 
Portugal, como corpo nacional, surge em Guimarães; recebe os santos estigmas em Ourique; afirma as primícias da sua virilidade em Aljubarrota; revela-se ao mundo; cai em Alcácer-Quibir; levanta-se numa manhã de Dezembro; afugenta as águias napoleónicas; divorciam-no da fé em Évora-Monte, mas sangra ainda em África numa guerra de cruzada, até que o apunhalam pelas costas.
 
O tempo vai provando que Portugueses, vibrando com os feitos heróicos que recheiam a nossa história, não desapareceram. Mas aqui, usando o peso da experiência que os anos me deram e visto que os assuntos se ligam ratione materiae, aproveito para uma curta observação:
 
Todos temos o direito de manter viva a recordação de tantas efemérides que são caras ao sentimento nacional. São devoções patrióticas muito legítimas e, portanto, dignas dos maiores encómios. Porém, no momento que passa, o nosso amor, a nossa acção, os nossos esforços devem dirigir-se eminentemente para o que é essencial.
 
Nós, que há quase trinta e cinco anos, deixámos que a traição nos arrebatasse um império magnífico, sem que até agora se definisse uma estratégia de reparação do estrago causado, não podemos, antes de resolver esta magna questão, dispersar-nos com objectivos que, nada tendo de despiciendos, são, no tempo actual, perfeitamente secundários e alguns deles até conjunturais. Mais: mesmo que alcançássemos nesse campo os fins que todos apetecemos, nem por isso ficava a nossa independência assegurada, se as feridas abertas com a tragédia do Ultramar continuassem por sarar.
 
Perseguir a vitória, descurando a batalha principal que devemos travar, não nos dará o triunfo na guerra: provocará em todos a nostalgia de um passado que se queria restaurar, mas que a nossa imprevidência terá perdido. Até agora, a actuação que sai das nossas fileiras tem sido ineficaz, assistindo-se mesmo a comportamentos notoriamente infelizes.
 
O Ultramar foi a teleologia da nossa razão como país independente. Não devemos esquecê-lo! Se queremos sobreviver, não podemos pensar que o conseguiremos, ignorando a nossa vocação atlântica. E, em vez de nos virarmos para aí, na tentativa de repetir a epopeia que nasceu com Aljubarrota e foi enterrada às portas do Carmo, repeti-la obviamente com contornos distintos, porque, no mundo contingente, nada é inalterável, em vez disso, insisto, navegamos à beira da voragem de um mar, agora sim, verdadeiramente tenebroso, já que nos deixamos levar na onda de correntes anti-imigratórias, em proporções tais e com uns critérios de exclusão que comprometem uma história de mais de quinhentos anos, e consequentemente nos negam como povo.
 
Porque, para mim, a verdade nua e crua é esta: biologicamente, não temos raça; a nossa raça é uma identidade cultural e afirmou-se numa capacidade única de lidar com povos de todo o mundo, convivendo e cruzando-nos com eles.
 
Se reconquistarmos essa dimensão, então podemos cuidar de tantos casos que agora nos apoquentam e nos irão parecer aquilo que verdadeiramente são para uma nação forte e equilibrada --- episódios de importância relativa. Não defendo que então cedamos à tentação de os abandonar, por luxo ou comodismo, uma vez que a nossa existência colectiva os dispensa bem. Nem tudo é riqueza material; a dignidade também conta. Por isso é bom que, entretanto, se mantenha acesa a chama para que esses objectivos não sejam esquecidos. Mas a prioridade é sobreviver. E o caminho não está na Europa, permaneça esta unida ou rompa-se por completo.
 
Aljubarrota e Carmo são, conforme acima disse, os marcos da nossa gesta. Aljubarrota é a arrancada gloriosa; o Carmo guarda o registo do termo ignominioso. Aljubarrota e Carmo, dois nomes indissociavelmente ligados a Nuno Álvares Pereira, o Condestável que o povo português há muito canonizou. Corre a notícia de que, dentro de pouco tempo, este guerreiro formidável subirá aos altares.
 
Conheço quatro ocasiões em que se pode falar de nascimento: a primeira sucede quando a criatura humana vê a luz deste mundo; a segunda, no momento em que, pelo baptismo, se abre à vida da graça; a terceira ocorre à entrada da bem-aventurança eterna; a quarta dá-se assim que alguém é proposto como modelo a imitar e oferecido ao culto dos fiéis, através de uma declaração de santidade proferida pela Santa Madre Igreja.
 
Será a canonização formal do Condestável o sinal para o renascer de Portugal, a pátria terrestre que ele tanto amou? --- Queira Deus que este seja mais um milagre do novo Santo!

Joaquim Maria Cymbron

terça-feira, 25 de novembro de 2008

MEDITAÇÃO SOBRE PORTUGAL

    O dualismo político da Península deve fazer parte do ideário de qualquer legitimista português. Não é uma questão nostálgica. A Tradição nada tem de conservadora – é um valor permanente e, por isso, actual!

    A criação deste dualismo no passado, quando eram bem menos graves as razões que o ditaram, parece-me um desígnio da Providência. Nessa altura, tratou-se de um impulso nacional. Hoje, ele impõe-se em nome de um motivo que transcende sonhos renovados de grandeza territorial: o porquê do dualismo político na Península está na necessidade de salvar uma civilização.

    Portugal e Espanha, os dois povos que, na história do Cristianismo, mais longe levaram a semente do Evangelho e a lançaram em terras virgens da palavra eterna; Portugal e Espanha, duas nações provadíssimas na defesa da ortodoxia, tantas vezes selada com o sangue dos seus melhores filhos, têm agora ocasião soberba de voltar a dar ao mundo um exemplo ainda mais expressivo do que a lição de quinhentos. Numa Europa, que cresce em dimensão geográfica na proporção do seu decaimento político, as duas nações peninsulares podem ensinar que a unidade moral não exige que se risquem fronteiras.

    Nunca precisei de odiar Espanha para amar Portugal. E amá-lo como ele merece é tão exigente que não me sobra tempo para sentimentos mesquinhos. De resto, nutro por Espanha sincera amizade e muita admiração. O que, de modo nenhum, diminui a minha preocupação constante, depois do amor a Deus – servir Portugal como devo e até onde for capaz.

    O texto, que segue, esforçou-se por ser eminentemente português. E, dentro da vocação universalista de Portugal, não é contra povo algum.

    Só Espanha cumpriu missão idêntica à nossa: daí, o laço moral que seria trágico esquecer! Mas se é o mesmo o carácter, já os temperamentos revelam distintas particularidades: também por aqui, convém que prevaleça o dualismo político!

 

Vou discorrer sobre Portugal e quero fazê-lo numa perspectiva de passado, presente e futuro.

Porém, antes de dar entrada nesta matéria, que meta deve ser a nossa? – Muito simplesmente isto e nunca menos do que isto: orientar a Nação no sentido do seu destino transcendente, para voltar a ligá-la aos valores da civilização que ela espalhou e da cultura que ela transmitiu.

Alguns retorquirão talvez que Portugal, quando iniciou a sua epopeia, era pequeno, mas possuía uma vida estuante, e hoje encontra-se exangue. Dir-me-ão que estamos na indigência e lembrar-me-ão até o ditado: "Casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão." Perfeito! Não serei eu quem negue valor a esse adágio de colorido recorte popular, embora lhe contraponha isto que julgo ainda mais verdadeiro: "Casa onde não há razão, cedo ou tarde todos ficarão sem pão." Portanto, trate-se primeiro de pôr ordem na casa; o resto virá depois.

Não me resigno à ideia deprimente de que Portugal morreu. A Pátria está muito doente, entrou mesmo em colapso, mas não é a primeira vez que isto lhe sucede e, conquanto seja esta a mais grave, de todas ela tem saído quase como das cinzas renascia a Fénix mitológica. Eu não acredito no determinismo. O destino fatal só existe quando os homens descrêem de Deus e cruzam os braços. Não vejo causa para desespero total, apesar de muita coisa altamente apreensiva.

A força de Portugal sempre se afirmou bastante mais no espírito incomensurado do que na matéria extensa: em pequeno corpo pode habitar uma grande alma.

Olhemos melhor o quadro de Portugal:

Portugal é, nos dias que correm, um País divorciado das glórias que ainda lhe estavam reservadas. E isto, porquê? – Porque a sua vocação histórica foi abafada, a sua rota foi desviada e tudo aconteceu e permanece de um modo abusivo e traiçoeiro.

A sua missão era civilizar. Contudo, a partir de certa altura, os seus homens públicos mais eminentes deram a impressão de se envergonhar desse objectivo sublime, parece que começaram a detestar a tarefa entre todas bela que era a de fazer Cristandade. Só ensinando pela palavra e mostrando pelo exemplo a religião católica, se pode realizar obra civilizadora. Assim o entenderam e praticaram os antigos portugueses e, enquanto o entenderam e praticaram, a presença de Portugal no mundo foi fecunda.

No entanto, aconteceu que a Nação, devido à má política dos que a dirigiam, se apartou a pouco e pouco da sua finalidade principal até que algozes abjectos a manietaram no cadafalso, em que são justiçadas a desonra e a infâmia, como se a Pátria tivesse outra culpa que não fosse a vulnerabilidade à desgraçada sorte de expiar aos pés dos traidores de hoje os crimes de uns traidores de um passado mais ou menos recente.

De qualquer forma, não seja esta vileza inqualificável, que na sequência de outras prostrou o País, não seja ela, repiso, um peso que diminua as nossas forças para reagir, porque é de esperar que tudo aquilo que de imensamente bom se fez, ao longo de um esforço prolongado de séculos, não ficará estragado pela torpeza de uma demissão execranda. Recordemos a história da nossa Pátria e nela acharemos fartos motivos para cobrar alento e tirar Portugal da miséria em que se atolou. A história contém essas lições admiráveis, e como não estão ainda sepultadas as virtudes ancestrais da Raça, dessa Raça que deu de si «as armas e os barões assinalados»,1 conforme regista o épico, confiemos em que Portugal se erguerá uma vez mais.

A gesta cantada nas estrofes rimadas de Os Lusíadas perpetua, em certeza e em beleza, a memória de um povo. Quem se envergonha dela? A ignomínia está no quotidiano que vivemos. O passado foi invulgarmente bonito porque estava orientado para um fim grandioso, temporal e espiritual.

Custará muito recuperar essa dimensão, mas Portugal tem de ser redimido. Eu sei que esta ideia é considerada por bastante gente um sonho. Seja! Porém, meditemos bem e já veremos como sonhar redimir Portugal é um anseio lindo. É um anseio lindo, repito, porque depois do sonho pode seguir-se a obra.

Não sonharam aqueles que se passaram a Ceuta, alcançaram a Índia, tocaram no Brasil, atingiram o Oriente, derramaram a civilização e espalharam uma cultura sobre todo este planeta e «isto navegando por tantas mil léguas que vêm a ser antípodas de sua própria Pátria», como disse João de Barros?2 Eu pergunto, de novo: não sonharam eles? E, no entanto, os oceanos foram sulcados; os continentes estreitaram-se; o nome de Portugal tornou-se conhecido; e as nações habituaram-se a admirá-lo.

Foi uma empresa descomunal para os exíguos recursos materiais de um povo, mas concretizou-se porque os nossos avós souberam converter em realidade aquilo que sonharam. Homens com esperança, eram também homens de acção. E nós, seus herdeiros, devemos seguir-lhes o exemplo, hoje mais do que nunca, porque hoje cumpre-nos apagar a tremenda afronta cuspida sobre as ossadas dos nossos mortos, e lavar o ultraje sem nome que foi lançado sobre a sua veneranda memória.

Junto à povoação da Batalha, levanta-se, conforme é do conhecimento geral, um formosíssimo mosteiro. Recordar aquele monumento consiste, para mim, entre outras coisas, em recordar Mestre Afonso Domingues e o que ele fez. Cabe aqui mais uma interrogação: não sonhou o grande arquitecto? – Ele não via. Contudo, na noite luminosa da sua cegueira física, descortinou um astro resplandecente de beleza e rutilante de luz. Afonso Domingues, honra e glória da arquitectura nacional, sonhou primeiro e o seu génio criador ofertou-nos, depois, a obra-prima que é a abóboda da sala do capítulo.

E, de cada encontro com o Mosteiro, fica-me sempre para relatar outra coisa bem mais singular. Acho-me incapaz de dizer que ele pode ser contemplado por qualquer um que chegue à sua beira. Não sei, porque vou ao ponto de admitir que é o Mosteiro a olhar o visitante e que, da sua mudez de pedra, saem palavras sentidas e comovidas que nos contam a razão da sua existência:

O Mosteiro nasceu em cumprimento de um voto e assim já deu testemunho, testemunha e testemunhará, enquanto Deus o quiser, a tarde épica que se viveu sobre os campos que lhe são vizinhos, ele traz-nos, no fino lavor da sua traça, os ecos formidáveis de Aljubarrota.

Aljubarrota foi uma polémica rápida, mas uma polémica gigantesca e medonha, em que se respondeu com o tinir de ferros de parte a parte, e a tinta que ali correu era sangue, porque a questão que se dirimia era uma questão de vida ou de morte, era um ponto de honra ou opróbrio, era escolher entre consolidar uma independência ou desaparecer como nação. Os nossos antepassados decidiram-se pelo caminho da honra e, por isso, Portugal sobreviveu para ir ao encontro das glórias que o esperavam, porque, sendo capaz de as ver, soube querê-las e, durante largo tempo, foi digno delas.

Começava um período deslumbrante para a nação portuguesa. Portugal arrancava para escrever na história páginas de um brilho que a memória dos homens não esquecerá, Portugal ia deixar profundamente gravada a lembrança de feitos que são causa de justo orgulho para a nação que os pratica.

Mas em 1578, nos areais adustos de África, uma derrota militar cortou o fio do nosso destino histórico. Ao insucesso bélico somou-se a perfídia de muita defecção. Então, como mais tarde, quando as tropas de Napoleão pisaram o nosso solo, os que franquearam as portas ao estrangeiro, eram naturais da nossa terra. Aí, como no presente, foram estas felonias praticadas por quem falava português. Monstruosa aberração!

Hoje, aquilo a que assistimos, para lá de algumas semelhanças, é uma situação sem paralelo na nossa história, enfim, há uma novidade. E como todas as novidades, também esta desperta curiosidade, embora o seu conteúdo seja muito triste e imensamente trágico. Por isso, antes de prosseguir, convém que ela seja analisada.

Como a seguir à morte de D. Fernando, como depois de Alcácer-Quibir, como durante a regência do futuro D. João VI, o 25 de Abril soltou um cortejo de traidores aos sagrados interesses de Portugal. Renegar o chão pátrio é renegar a identidade nacional. Uma miséria dessas, uma baixeza assim profunda, esteve para acontecer depois de 1383, praticaram-na os descendentes dos preclaros varões do início de quinhentos, saborearam-na com gozo os que saíram a receber Junot, e hoje temo-la, mais uma vez, diante dos olhos. Até aqui, as parecenças.

Vou recapitular e desenvolver um pouco mais estas três situações que bem necessário é para poder continuar:

Com a morte de D. Fernando, surgiu em Portugal uma crise dinástica que trouxe o País na iminência de não chegar a firmar-se como nação livre e independente. Mas devido à actuação de um homem providencial, esse herói e santo que foi Nuno Álvares, flor imarcessível da Cavalaria da Idade Média, devido à sua actuação, torno a insistir, levantava-se o fermento da reacção que depressa se iria espalhando por todo o Reino impedindo assim a fusão do nosso País com Castela. Iniciava-se aí o sábio dualismo político que, volvido um século, faria a glória tanto de Portugal como da vizinha Espanha.

Este movimento vinha dois anos depois a sentar no trono o filho do Justiceiro e de Teresa Lourenço. Nessa hora tremenda da sua vida colectiva, os Portugueses erguiam-se como se formassem um só corpo e juravam fidelidade àquele a quem, familiarmente, tratavam por Mestre. Chegava-se, assim, às Cortes de Coimbra de 1385 que outra coisa não foram senão a cerimónia oficial do que era a expressão de uma legitimidade insofismável: a Nação, devidamente representada, reconhecia a dignidade real de D. João, Mestre de Avis, porque ele reunia às razões fortíssimas do sangue os motivos ainda mais ponderosos de se identificar com os interesses da grei.

Passo agora a panorama diverso, e detenho-me no ano de 1580, quando, pela ausência de chefes, o País soçobrou, enquanto se verificava um ou outro esboço de reacção tíbia da parte de um povo enfraquecido por um lento processo de decomposição moral, de que lhe era dado o tom pela classe dirigente, esquecida das suas obrigações históricas.

Dois anos antes, mergulhara Portugal no desastre material de Alcácer-Quibir. Desastre material, disse eu, porque esse foi o aspecto em que fracassou a jornada de Marrocos. No mais, essa batalha ficará para sempre como uma tentativa do espírito querendo sacudir o jugo da acção que já principiava a desenhar-se: era o esforço para relançar as bases de um império belo e florescente, um império justo e forte, regido por um poder temporal inspirado nos princípios cristãos.

Encabeçou esse movimento o moço Rei D. Sebastião, que não viu concretizado o seu empenho. Deixou-se levar por um temperamento excessivamente arrebatado; cometeu exageros, é certo; e não terá sido um político, muito menos um político frio e calculista. Todavia, foi indubitavelmente a personificação de algo superior e a elevadíssima missão, que projectou, coroada pelo seu trágico desaparecimento, conferiu-lhe uma dimensão histórica invulgar.

Desgraçadamente, com D. Sebastião  não se foi só um exército: uma nação em peso, a nação portuguesa, completamente desarticulada, era desviada de um percurso que, cerca de dois séculos antes, se lhe abrira num sorriso esplêndido em Aljubarrota. Quedou-se, pois, Portugal sem rei nem roque, com um Prior do Crato animado, talvez, de bons propósitos, mas incapaz de dar governo a um país desnorteado.

Poucos anos antes, tirara Camões da sua pena estes versos: «O favor com que mais se acende o engenho / Não no dá a Pátria, não, que está metida / No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza.»3 Desta decadência era culpado o escol. E o povo, de rastos, sem chefes há muito tempo, era um imenso corpo passivo e presa fácil do duque de Alba, o qual, à cabeça dos seus aguerridos terços, acabou por entrar em Portugal, garantindo previamente, pela força das armas, as pretensões de Filipe II de Espanha.

Foram já lembrados dois momentos de crise. Examinarei, em seguida, o último que me propus ver com algum vagar, o qual deixou marcas profundíssimas, cujos efeitos se fazem ainda sentir desde que, em Évora-Monte, foi imolada a legitimidade.

Sendo regente o filho de D. Maria I, foi invadido o território de Portugal. Eram os exércitos do tigre da Córsega, que traziam os erros da Revolução de 1789, pretenso remédio a esse mal que foi o regalismo absolutista, gerado com alguma antecedência no mesmo ventre daninho e aplicado entre nós, intencionalmente e com mão de mestre, pelo desumano ministro de D. José I. Precipitavam-se os acontecimentos: a família real retirava-se para o Brasil; no Reino, ficava uma Junta que pouco tempo teria de vida, pois Junot haveria de dissolvê-la. E, no meio dos mais variados acontecimentos, sofrendo o País o luto, a dor e a miséria, que três invasões lhe causaram, lá se conseguiu definitivamente expulsar o inimigo.

Contudo, o ar ficou empestado. Caldeadas e debatidas nas lojas secretas, servidas por um exército bem treinado – o jacobinismo – as ideias do século, ajudadas pelas armas triunfantes de Napoleão, que não foi só um fenómeno concomitante, mas o homem que as ocorrências da época pediam, vieram explodir na Revolução de 1820. E, desde então, parece que a paz fugiu do seio da família portuguesa. A Revolução prendeu, nas suas garras afiadas, o corpo de Portugal.

Porém, eu salientei que existia uma novidade na situação implantada pelo 25 de Abril. Referi-o há pouco e vou dar provas.

Desta vez, ao contrário das outras, Portugal não foi pisado por exércitos vindos de fora, mas aparece trucidado. Quem o julgou e condenou? – A Revolução Universal!

Interporei duas palavras para tentar explicar como eu a entendo, à luz do pensamento religioso e filosófico. Ela é a desobediência aos mandados de Deus e requer ser vista de diferentes ângulos: o ângulo da ordem absoluta; o da ordem relativa; e ainda um terceiro que é a ausência de ordem.

Quando se viola uma ordem que observa os ditames de Deus, estamos perante a Revolução no seu expoente mais formal, porque assistimos a uma atitude que é revolucionária num critério absoluto. Contudo, se contra um ordenamento jurídico iníquo se levanta uma oposição também esquecida da lei eterna, aí temos a Revolução numa dimensão revolucionária relativamente à ordem estabelecida, sem que por isso a ordem ameaçada perca a nota revolucionária que também a inquina. Por fim, sempre que se cai na ausência de ordem ou anarquia, vemos que desse frenesi animal não sai qualquer espécie de ordem e, se nem toda a ordem exclui a Revolução, onde falta ordem está a Revolução!

Em Portugal, neste momento, está consagrada uma ordem má e, a par dela, impera a anarquia porque a autoridade constituída nem sequer é capaz de impor essa ordem. A Revolução triunfa, pois, em toda a linha. Eis o ser medonho que proferiu a sentença contra a Pátria, sentença executada pelos facínoras que se acobertavam cá dentro. Essa quadrilha de desnaturados sacrificou Portugal como o bandido faz com a sua vítima: implacável e com crueza!

O inglês Francis Bacon afirmava o seguinte: «Quando os quatro pilares do governo (que são a religião, a justiça, o conselho e o tesouro) estão abalados ou enfraquecidos pode o povo fazer preces por melhores tempos.»4 Acontece que em Portugal estremecem os quatro precisamente ao mesmo tempo: a religião católica que, censitariamente, é dominante no País, vê fé e costumes, os dois bens máximos que a informam, entregues nas mãos de um clero onde poucos são os que guardam fidelidade aos votos assumidos; de tribunais, nem falar; os ministérios, que se sucedem uns aos outros, parecem concorrer na ânsia de ver qual é o mais incompetente e o mais abjecto; por último, é lícito perguntar se os cofres públicos, para lá das sonoras declarações políticas sobre a crise mundial, guardam alguma coisa mais de todo este processo de vesânia colectiva .

A desgraça, que atingiu Portugal, alcançou proporções nunca dantes vistas: o País apresenta-se materialmente arrasado e está muito desapoiado porque a asa tutelar dos seus maiores desguarneceu-o desde que a traição e a malvadez, subindo a um grau impensável, inverteram os valores chamando virtude ao crime e infâmia à honra. A subversão instalou-se; a corrupção grassa assustadoramente; e conseguiu-se a proeza espantosa de criar um sentimento de revolta, que é quase geral e toca campos diametralmente opostos.

É ponto incontroverso que a vida política do País se mostra agitada. Quem o provoca? Quais os culpados? – Os responsáveis principais são aqueles que, à sombra de uma legislação perversa, permitem um regime de licenciosidade e espalham a certeza da impunidade. Com isto, regresso à afirmação feita atrás de que a Revolução, em Portugal e agora, ganha em todos os campos.

Não continuo sem chamar a atenção de todos e alertá-los contra a enorme e perniciosa influência de certas forças secretas apostadas na ruína da civilização. A sua principal mola está na Maçonaria, que impele a Revolução com o maior dinamismo e a mais certeira táctica. Na funesta acção que desenvolve, ela não hesita em jogar com o conluio de dois poderes pecaminosos: o ateísmo, que rodeia toda a casta de totalitarismos, e a agiotagem da alta finança internacional.

Para escapar à servidão e evitar a almoeda, Portugal precisa de guerreiros, de muitos e santos guerreiros que hão-de pelejar o bom combate. E, acima destes guerreiros, reclama o chefe legítimo. Porque declaro eu isto? – Pela simples razão de que sustento que não há comunidade sem chefe, porque acho que só ligados estes dois elementos, têm os povos existência digna e saudável, no conjunto harmonioso das figuras vivas dos seus optimates, honorabiles e vulgus, num tempo ditado por razões históricas e num espaço que essas mesmas razões confinam.

Passei de corrida alguns fastos de Portugal. Procurei fazê-lo com clareza e, sobretudo, dentro da verdade. Agora, volvendo os olhos para trás, resta-me esta impressão que infunde ânimo: sempre que os valores supremos da nacionalidade perigaram, os Portugueses pareciam recordar-se do grito lendário de Santa Maria de Almacave --- 'Nós e o nosso Rei somos livres; as nossas mãos nos libertaram!'

Os partidos dão-nos essa liberdade? – Por mim, reputo da mais elementar higiene mental a distinção entre ter ou estar num partido e tomar partido.

Se, na batalha de S. Mamede, seguir o pendão do Infante em lugar de entrar no bando de Fernão Peres de Trava, significou tomar partido, também eu havia de tomar partido porque me contariam no meio dos primeiros. Mais tarde, se ir atrás do Mestre de Avis em vez de aclamar D. Beatriz ou mesmo os Infantes D. João ou D. Dinis, é tomar partido, de novo eu o tomaria porque me ligava à sorte do futuro D. João I. Depois, se nas Cortes de Almeirim imitar Febo Moniz, se traduz em tomar partido, lá tomaria eu partido porque as minhas palavras não seriam diferentes das daquele integérrimo procurador do povo. Se lançar-se um homem na procura de rei natural como sucedeu em 1640, é tomar partido, mais uma vez eu o tomaria porque logo aclamaria o chefe da sereníssima Casa de Bragança. Se, quando os Franceses avançaram sobre Lisboa, ingressar na dura e penosa reacção contra eles, queria dizer que se tomou partido, esse seria o meu comportamento.

E, ao lado destes exemplos, há mais: há o das lutas intestinas em que nos envolvemos no século XIX. Então, se com o regresso de D. Miguel à Pátria, em 1828, dar voz por ele contra o Portugal bastardo, que principiava a instalar-se, é tomar partido, aí voltava eu ao mesmo. Se, mais tarde, aproveitando a revolta contra os Cabrais, entrar na tentativa de restauração tradicionalista, ainda isso é tomar partido, lá me veriam no campo da Legitimidade. Daí para diante, bom, daí para diante, a catástrofe engrossava qual vaga alterosa, para tragar, agora um pouco, logo a seguir mais, este martirizado País.

Tomar partido é, pois, uma coisa boa e deve ser feita quantas vezes for preciso; ter ou estar num partido, nunca! Jogo com palavras? – Não! Elas são de uma transparência cristalina e encerram um sentido bastante preciso: tomar partido é sinónimo de ir à guerra e voltar; ter partido é um estado contínuo de guerra, pelo menos latente. Neste momento, fiel aos meus princípios, não estou em nenhum partido, mas tomo partido por Portugal e tomo partido pela Tradição.

A Pátria pede que a salvem. Como a Ala dos Namorados, como a peonagem dos concelhos, nós seremos a geração que, estranha aos funambulismos da democracia, não renuncia ao direito de escolher o futuro; como os homens dessa tarde imorredoira ou os conjurados da manhã do 1.º de Dezembro ou, ainda, como os que investiram contra os Franceses, não nos deixaremos entravar com as peias de uma legalidade duvidosa, nem vamos consentir que nos adormeçam com fábulas ocas e utopias vãs.

Ao longo desta meditação e quando me parecia adequado, fui entremeando versos de Camões. Não desejo fechar sem recomendar aos que me lêem a necessidade de se voltarem cada vez mais atentos para Os Lusíadas. E imediatamente formulo os meus votos mais calorosos para que se compreenda o significado da epopeia que aquele poema nos transmite, e se palpite ao vibrar das notas desse hino de encanto, porque se a Pátria já uma vez se sumiu no olvido da chama crepitante que Camões lhe legou, bem pode acontecer agora que ela reviva, se revivermos a mensagem de Camões!

Joaquim Maria Cymbron

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1. Lus., I, v.1. 
2. Década I, Livro IV, cap. XI. 
3. Lus., X, vv.5-8. 
4. Ensaios, 2.ª ed., trad. de Álvaro Ribeiro, cap. XV, Guimarães Editores, Lisboa, 1972. 

NOTA: Hoje, aniversário da data que consagrou o 25 de Abril, achei oportuno recordar um texto meu publicado há trinta anos num jornal diário de 24NOV78 e s. Com as alterações impostas pelo tempo e os necessários reajustamentos formais, ele aqui fica.

JMC

sábado, 18 de outubro de 2008

A BURGUESIA É O INIMIGO


A América prepara-se para eleger o seu Presidente. Pouco nos devem importar as previsões que por aí correm. Com efeito, tanto faz que ganhe o democrata como o republicano porque, para já, quem não perde é a burguesia.

Que burguesia? --- A única que há, tanto faz ser a burguesia capitalista, como a do socialismo, comunista ou não.

Pois são burgueses os socialistas? --- Sim! E de alto coturno.

Infelizmente, a grande massa ainda teima em separar capitalismo e socialismo, numa divisão antagónica, que nunca terá correspondido à realidade dos factos e, agora, menos ainda que no passado.

Na propaganda bem urdida daqueles que se aproveitam da confusão, os trabalhadores acabam como vítimas às mãos da burguesia. Até aqui, tudo verdadeiro. A mentira começa quando as pessoas são desviadas do nó do problema. E a essência da questão é só uma: a burguesia, aparece como carrasco impiedoso, tanto no capitalismo como no socialismo.

No capitalismo, o proletariado é um degrau para que a burguesia suba; ao socialismo, serve para agitar como bandeira numa luta de classes que, com um grau de crueza maior ou menor, continua a dar a vitória à plutocracia.

Onde está o motor e o nervo da burguesia? --- Nos Judeus!

Mas não constituem eles o povo eleito de Deus? --- Até que se convertam (1), a correspondência não é absoluta, porque «nem todos os que descendem de Israel são israelitas (...) não são os filhos da carne que são filhos de Deus; os filhos da promessa é que são contados como descendência.» (2).

Os Judeus têm dificuldade em aceitar isto. Não lhes convém. Optam, então, por fazer o mal e a caramunha: onde não vêem o caminho livre, desatam a gritar que é antissemita todo aquele que os hostiliza por palavras ou por actos. E, assim, vão-nos deixando sem saber o que eles são, quando apelidam de terroristas os Árabes e os mimoseiam com expedições punitivas, às quais, com tranquilo cinismo, dão o nome de acções de legítima defesa preventiva.

Judeus e Árabes, tanto uns como outros, são semitas. De modo que, por aqui, não se vê o motivo pelo qual hão-de os Judeus ser mais ciosos da sua condição étnica. Será uma questão de linhagem? Sara em vez de Agar? Parece nítido que se trata de uma disputa em família.

Porém, uma coisa há que se me afigura não menos evidente: o Árabe é, acima de tudo, muçulmano, embora de um islamismo não uniforme, mas, apesar de tudo, possuidor de uma crença sobrenatural; o Judeu acarinha especialmente a sua herança biológica, se é que não se esgota nela. Com isto, não resta alternativa senão a de reconhecer maior estatura ao Árabe. É que raça, até os animais têm. Em contrapartida, só o homem é capaz de comportamento religioso!

Onde estão os Judeus? Eles estendem-se por todo o mundo, e vamos achá-los, cheios de força, ao lado da burguesia, no país onde esta ergueu o seu trono dourado --- os Estados Unidos da América do Norte. É ali o terreno de eleição deste povo. E a simbiose é tão perfeita que, de cada presidente da nação americana, não repugna traçar o seguinte quadro: lacaio do sionismo agiota; Shylock feroz de um capitalismo arrasador; símbolo de todas as iniquidades.

Se nos lembrarmos que está na capacidade de referência a um padrão de valores a distância que vai dos homens para os irracionais, depressa concluiremos que as sociedades sem princípios morais são sociedades privadas de rosto humano. E, aqui, soa a pergunta inevitável: Que têm os States para nos oferecer? O Dow Jones e o Nasdaq!

Convenhamos que é pouco, muito pouco mesmo. Possuem, é certo, o Pentágono e a sua força bruta, pelo que as turbas alucinadas lhes prestam culto, um culto idolátrico, onde já se adivinham as libações que a Besta receberá antes da consumação dos tempos.

Porém, os deuses têm pés de barro --- as torres de Manhattan vieram ao chão e ficaram reduzidas a cinzas; o terrorismo internacional faz o jogo do gato e do rato com o novo Leviatão; no cemitério do Iraque, múmias sepulcrais vagueiam e tiram vingança dos invasores; e o Irão, sem temer os pseudocruzados, solta gritos de ameaça.

O poder americano gerou o vazio em seu redor. Por isso, quando se apresta a colher, depara com o vácuo. Ele constitui indubitavelmente a mais próxima expressão do nada: não se sabe o que tem; não confessa o que pensa; não revela o que quer. E isto por uma simples razão: nada ter de valioso; nada pensar de consistente; e nada querer de responsável. Os governos ianques, alimentados pelo dinheiro que pesa nas algibeiras da burguesia, dizem que é seu propósito doutrinar o mundo com a cartilha da Democracia. Entretanto, como a Democracia não existe, temos a catequese de apóstolos sem credo para pregar.

Nesta diatribe dirigida contra a burguesia, autêntico flagelo espalhado pelo mundo inteiro, mas reinando especialmente em solo americano, não é o povo daquela terra, onde há gente boa e honrada, que se pretende atacar. Os alvos são inequivocamente a Casa Branca e o venal Capitólio, teatro de mistificações sem par.

Os que ali se acoitam, hão-de sumir-se no abismo infernal das suas contradições. É lei inexorável da caminhada humana: nós, soldados da Tradição, sabemos que assim é, porque temos uma concepção providencialista da história; o inimigo também não nos parece que duvide deste desfecho, porque a sua dialéctica lhe fala na sucessão das categorias históricas.

Joaquim Maria Cymbron

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  1. Rom. 11, 25-27.
  2. Mt. 8, 10-12; Rom. 9, 6 e 8.

Obs.: Um blogue pró-judeu achou pertinente referir-se a este texto. As considerações, ali tecidas, podem ser lidas nesta página.
JMC

domingo, 5 de outubro de 2008

O 5 DE OUTUBRO


Fala-se muito do 5 de Outubro como aniversário de uma data que, em Portugal, marcou o fim da Monarquia e a implantação da República.
 
Isto não é correcto! A República Portuguesa nasceu em Évora-Monte, em 1834. O que se passou em 1910 foi a sua consagração oficial. À semelhança do tempo que decorre entre a vinda ao mundo de uma criança e o seu registo na competente Conservatória. Com a coincidência até de que registaram a República sem precisar o dia do seu nascimento, do mesmo modo que não era possível determinar esse momento para os expostos na roda.
 
A Monarquia, a histórica, a autêntica, caiu ao cabo de uma sangrenta guerra civil, na qual o bando contrário foi alimentado de mercenários e de dinheiro do estrangeiro. E, para além da luta épica que o Remexido sustentou, durante quatro anos, nas serranias do seu Algarve, mais tarde teve ainda forças para sair a terreiro, na tentativa de um regresso à Tradição, quando a Patuleia fazia tremer as instituições vigentes. Tropas espanholas e britânicas aproximaram-se do Porto e impuseram a Convenção de Gramido. De novo, uma intervenção do exterior a sufocar uma reacção com raízes nacionais.

Em 1910, o panorama foi muito distinto: uns tiros, correu algum sangue, e aquilo que ainda não ganhara completamente uma fachada republicana, ruiu como um castelo de cartas. Acabou a mistificação!

Se queremos restaurar Portugal, só temos a via do legitimismo. O mal a extirpar é a soberania popular. A situação falsa do demoliberalismo, enfeitado com uma coroa, nada resolveria e não livraria a realeza dos ataques pelos erros da política. Esses erros seriam precisamente os mesmos que se estão verificando agora, e já tinham ocorrido antes de 1910.

Restituir Portugal a si mesmo é talvez obra para muito tempo: todo o tecido social tem de ser refeito. A repetição da experiência de oitocentos será talvez mais fácil e é certamente tentadora porque tem a sedução de um êxito mais próximo. Mas é de uma temeridade espantosa, porque não se melhoraria a vida em comunidade, e manchava-se a imagem real.

Entretanto, vamos celebrando o 5 de Outubro como o dia em que, pelo Tratado de Zamora, no longínquo ano de 1143, Portugal nascia como nação livre. O 5 de Outubro, de 1910, nem tem de nos alegrar, nem há-de entristecer-nos. Teve, porventura, o mérito de desfazer uma realidade equívoca!



Joaquim Maria Cymbron

terça-feira, 30 de setembro de 2008

MANIFESTO AO POVO PORTUGUÊS


O MANIFESTO, que a seguir se publica, foi editado em Luanda, estando relacionado com os acontecimentos que se verificaram na metrópole, a 28SET74.
Desprezaram-se algumas passagens (poucas e curtas), para só deixar ficar as que de certo modo, nos dias que correm, podiam voltar a ser escritas como se fora a primeira vez.
Este foi, no Ultramar, o último dos panfletos que eu lancei a seguir ao golpe abrilino. A 03OUT74, fui detido por ordem de Rosa Coutinho. Permaneci isolado durante pouco mais de vinte dias, após o que me libertaram. Fora a privação de comunicar com o exterior, a incerteza quanto ao tempo que duraria o meu cativeiro e a pressão psicológica usada nos interrogatórios, tive sorte em não sofrer nenhum tipo de sevícias corporais.
Em Angola, a resistência era incipiente e estava mal organizada. Faltava-lhe uma cabeça que delineasse uma acção concertada contra os manejos de Lisboa. Essa foi também uma das causas da nossa derrota.
Ainda assim havia planos, sobre os quais não me foi muito difícil manter absoluta reserva. Conhecedor de que é costume vigiar os passos daqueles que não largaram informações, concluí que seria mais prudente abandonar a Província. Não me dirigir aos implicados naquilo em que eu estava metido, era simples; o pior seria comprometer quem nada tinha a ver com a rede existente, por força de uma visita de cortesia ou como resultado de uma conversa inocente com pessoas amigas, na rua ou à mesa de um café. Por isso, ganhei a África do Sul, tendo voado depois até Espanha. Em 24JUN75, atravessei a fronteira e entrei no rectângulo europeu. Estava-se no acender do Verão Quente, cujas chamas depressa se extinguiriam, afogadas num golpe que, insidiosamente, cimentou o 25 de Abril.
Hoje, trinta e quatro anos volvidos sobre os momentos que se viveram em Angola, no rescaldo da fracassada marcha da maioria silenciosa, achei oportuno recordá-los através de um documento onde palpitam lances do maior dramatismo.
Aqui vai:


À honra, brio e dignidade dos Portugueses se dirigem as palavras que vão seguir! Para as suas consciências de homens rectos elas apelam a fim de que as julguem e, julgando-as, as afastem ou as acolham.

Na hora em que a Revolução carrega de pesadas nuvens o céu tão caro da nossa Pátria, bom é que nos detenhamos e olhemos à nossa volta:

Portugal nasceu na Europa; prolongou-se no mundo; perdeu posições onde legitimamente cabia; e hoje, caso queira sobreviver, tem de se considerar a si próprio como estando predominantemente em África mantendo territórios europeus.

Em conformidade com esta realidade, assiste aos Portugueses do continente africano o direito de dizer não aos conluios de Lisboa. Mais: recai sobre todos a grave obrigação de o fazer! A Pátria impõe esse dever; cumpra-o cada um dentro das suas possibilidades.

Nasceu Portugal na Europa. Mas nela teve seu berço ao redor dos muros de Guimarães, por todo o largo campo sobre o qual duro entrechocar de ferros guerreiros deu à história a batalha de S. Mamede.

A circunstância de ter começado em tão reduzido espaço não impediu a Nação de se estender para sul, num arranco de prodigiosa vitalidade, animada por uma vocação sobrenatural, cônscia de uma missão a cumprir. Mais tarde ela viria a fazer-se ao mar, estreitando mundos e espalhando a civilização. O peito lusitano foi altar em que vicejou a flor do ecumenismo cristão.

Desvendámos o oceano; e em todas as paragens que tocámos, assentámos padrões e alçámos a Cruz de Cristo ao mesmo tempo que evangelizávamos as almas. Embora ciosos das características que nos conferiam uma individualidade nacional, levámos valores nossos aceitando os das outras gentes, e nesta permuta cultural nos fomos enriquecendo, a nós e àqueles com quem passámos a conviver. Assim se ia processando uma colonização que alguns dementados pretendem abocanhar. Raros são os povos que se podem orgulhar de semelhante epopeia.

No entanto, nos dias que correm, trafica-se com o nosso País, mercadeja-se a terra de nossos maiores!

Quem o vende assim tão vilmente? --- Nos leilões da política internacional aparece quem não é por certo o único culpado, mas executante sinistro dos desígnios maldosos de tenebrosas alfurjas, que a sua mente aplaude porque também vê desse modo.

Consumou-se o primeiro acto, com a entrega inqualificável da Guiné. E quando o governo desapiedado avança a imolar Moçambique nas aras de um sacrifício estúpido e brutal, responde-lhe o gesto desassombrado de um punhado de valentes. De Lisboa, os títeres, apavorados, classificam-no de grave e louco atentado ao direito; e, à força heróica de uma razão cristalina, contrapõem a razão selvagem de uma força fratricida. Tendo prometido restituir Portugal aos Portugueses, numa ironia difícil de compreender, acabam por atirar Portugueses contra Portugueses.

Partiu o brado de revolta, em Lourenço Marques, contra o mais extravagante direito que se consegue conceber. Desse direito parece principal intérprete o Dr. Mário Soares, cuja acção política é bem o índice da avariose que atacou determinado escol.

Que tem feito S. Ex.ª nos seus escassos meses de governo? --- Passeia! Passeia, ruidosamente, dentro e fora de Portugal! Umas vezes, esquecendo os seus deveres de homem de Estado, corre a acumular incenso como secretário-geral do partido em que milita; outras, distraído da nacionalidade que a lei lhe confere (é lícito duvidar que o coração lhe fale nela), vai firmando tratados e diminuindo o País.

Que poderes tem o Sr. Ministro? --- Incomensuráveis! Que poderes lhe deu o povo para decidir o seu futuro? --- Até agora, nenhum!

Mandatário de interesses inconfessáveis, o Dr. Mário Soares alcançou, neste curto espaço de tempo, praticar um feito notável: --- S. Ex.ª espalhou o luto em muitos milhares de portugueses, que treze anos de intimidação terrorista não foram capazes de abalar.

Com um despudor tranquilo participa S. Ex.ª na obra de desmantelamento. Isto é abjecto! Mas a S. Ex.ª não lhe coram as faces de pejo, porque entende que é esse o sentido da história e considera grave sacrilégio opor-se-lhe.

No Elogio da Loucura, lê-se: «Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: Bebe ou retira-te, enfim, que quer que a farsa não seja farsa.»

Nestes termos, resulta ser o Dr. Mário Soares um esplêndido actor numa grande farsa. Simplesmente, esta farsa é um crime porque são trágicas as suas consequências.

Ao abandono que prostitui, juntam-se actos que ofendem o sentimento moral dominante. É o lenocínio que vai ganhando cartas de privilégio e foros de instituição.

«Os valores mudam, quando os criadores mudam. Se queremos criar é necessário começar por destruir» --- assim falava Zaratustra. É singular a existência de certas afinidades que alguns regimes, arrogando-se natureza democrática, mantêm com a filosofia nietzscheana, uma filosofia que influenciou marcadamente uma das mais pavorosas ideologias que assolaram o mundo.

Saímos, há pouco, de uma situação enganosa com ressaibos de heresia (1); pergunta-se, agora: para onde nos estão a levar?

O Sr. General António de Spínola acaba de anunciar ao País a sua decisão de renunciar ao cargo de Presidente da República. S. Ex.ª cava, deste modo, um fosso entre a sua prestigiosa figura de militar e a camarilha dos traidores que dilaceram a Pátria. Pode ficar seguro que a parte sã da Nação lhe agradecerá, do coração, mais este acto de coragem, quaisquer que tenham sido os motivos que o determinaram (2).

À hora a que isto sucede, sabe-se também que se afastaram outros membros da JSN. Agindo no meio de diversos condicionalismos, depressa essa Junta revelou a sua impotência para atalhar o curso, aparentemente implacável, de um destino que, às vezes, se entretém a jogar com as pessoas e com os projectos que elas levantam. E a alma sebástica deste povo crédulo e simples, que a recebeu numa alegria desbordante, via esfumarem-se os seus luminosos anseios.

A incerteza torna-se angustiante e inquietante, porque se receia ouvir os últimos pregões desta almoeda baixa e desonrosa. Portugal despontou pelejando, e cimentou-se com sangue de mártires e heróis; querem, agora, os desnaturados que ele se suma em hasta pública ao som triste de uns dobrões de metal.

A acção deletéria recebida com a complacência de um escol decaído, que se ia demitindo das suas mais ingentes obrigações, quase perverteu o génio da raça. Porém, uma centelha de esperança bruxuleia ainda.

Os chefes nascem com mais facilidade de uma comunidade não roída do germe da corrupção. Mas não fossem as excepções a esta regra e não haveria povos a ressurgir das cinzas em que parecem ir sepultar-se.

A Nação tem de acordar do letargo em que a prostrou a eloquência salivosa que a fúria jacobina de tribunos demagógicos e irresponsáveis lhe vem lançando! A Nação, abafando o temor da ameaça de uma democracia que, para não variar, cala as vozes que a perturbam, tem de erguer-se sobre a reserva moral que nela reside e que, em épocas de crise, sempre soube encontrar.

E não desdenhemos, nesta campanha de resgate, socorrer-nos do tesouro precioso da Tradição.

A Tradição vem-nos do passado; é o tempo que no-la traz, como resto de tudo o que de positivo já existiu e não pereceu. No seu culto desenvolve-se o amor da Pátria, no que esta tem de melhor do legado de valores espirituais, que recebemos e devemos transmitir.

Deste património nunca somos proprietários, mas apenas administradores. Aqueles que constituem a geração viva não formam mais que os pilares da ponte que permite o abraço entre as gerações passadas e as vindouras. Assim se processa a passagem do testemunho, facho sagrado que alumia o caminho. O sopro, que procura apagá-lo, é criminoso ou demente.

A Tradição é a história que anda no coração do povo e a nascente donde jorra o imenso caudal de energias, de que ele se alimenta para continuar no tempo essa história sentida.

VIVA PORTUGAL!

Luanda, 30 de Setembro de 1974

Joaquim Maria Cymbron
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  1. A náusea derivada da traição levou-me a um juízo de algum exagero a respeito das instituições derrubadas: vivia-se, realmente, um sistema híbrido, mas no qual o suspeitíssimo sufrágio universal era travado por outros mecanismos, o que anulava os efeitos da sua heterodoxia. A distância no tempo leva-nos a um maior equilíbrio.
  2. Sobre Spínola e a renúncia ao cargo que exercia, o que escrevi explica-se pelas notícias confusas  que, naquele ambiente de fogo, me iam chegando umas atrás de outras. Hoje, se a situação se repetisse e estando mais próximo do acontecimento, é possível que o não atacasse, mas certamente não escreveria o mesmo!
JMC  

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

A DEMOCRACIA NÃO É CRISTÃ


Para maior comodidade de exposição, vou servir-me do vocábulo democracia como se fosse real o conteúdo que ele apresenta. É sabido que considero o sistema, a que se dá este nome, como um embuste ou um logro. De resto, esta minha repulsa transparece do texto que segue, mas verdade é que, nas hiperligações que deixo, aparece mais desenvolvida a razão pela qual rejeito o seu significado.


Sei bem o que um cristão é; não ignoro aquilo que um democrata diz ser. Porém, isso de democrata-cristão parece-me qualquer coisa como um círculo quadrado, ou seja, algo que se enuncia, mas não pode existir porque importa contradição.

Com efeito, o Cristianismo é mansidão e humildade; a Democracia, acusando fortes ressaibos do naturalismo, explode de rebeldia e orgulho. O Cristianismo, porque é divino, ensina ao homem a verdadeira liberdade; a Democracia, possessa de uma soberba autossuficiência, acorrenta o homem à grilheta dos seus instintos bestiais. O Cristianismo, expressão pura da verdade, aponta a única igualdade possível: a igualdade ontológica de princípio e de fim, igualdade comum a todo o homem pela simples condição da sua natureza humana; a Democracia, falaciosa de raiz, apregoa uma igualdade em que se cavam diferenças cada vez maiores. O Cristianismo, porque é a doutrina excelsa d'Aquele que nos resgatou e pediu ao Pai para nos adoptar como filhos, faz-nos a todos irmãos e convida-nos a que, na caridade, nos tratemos como tais; a Democracia, por ignorar estas coisas sublimes, não tem ajudado senão à luta de classes, enquanto não termina na ominosa quietude dos totalitarismos.

Mas será tudo isto uma fatalidade? --- Reconheço que, na esfera do que é contingente, nem sempre assim sucede: o mal absoluto não existe pelo que pode derivar algum bem do exercício da democracia. Todavia, arbores fructibus cognoscuntur, o que me leva a não deixar sem reparo o facto de ter sido a Democracia companheira da desgraça e da destruição de alguns dos mais lídimos valores cristãos que dignificavam a cultura portuguesa.

Assim, e após 1834, assistiu-se logo ao regabofe liberal (1), aproveitando-se o governo das leis de Mouzinho e da extinção das ordens religiosas para se apropriar dos bens nacionais, com o pretexto de o Tesouro se recompor de dívidas que não chegavam a saldar-se, porque o valor desses bens apenas servia para prover sinecuras, que não cessavam de multiplicar-se; em 1910, com os republicanos, recrudesce o furor anticlerical, de inspiração jacobina, e publica-se, pela primeira vez, uma lei sobre o divórcio; por último, com o 25 de Abril instala-se a permissividade, procede-se à repristinação da lei do divórcio para os casamentos católicos, ataca-se despudoramente a família com a reforma do Código Civil em 1977, prossegue-se dando foros de legalidade às uniões de facto, fala-se em consagrar as ligações homossexuais (2) e, como se isto não bastasse, vemos o sistema vigente a aviltar-se ainda mais sancionando o aborto, crime abominável como é chamado pelo 2.º concílio do Vaticano (3).

Limitei-me a historiar muito resumidamente as malfeitorias que, a meus olhos, ganham maior destaque. Espero, contudo, que esta sucinta narração seja suficiente para mostrar a singular particularidade de não haver qualquer afastamento cronológico entre os acontecimentos descritos e a vigência, em Portugal, de sistemas democráticos.

Eu afirmei, no entanto, que o conceito de Cristianismo e o de Democracia se repelem. E, embora não o tenha assinalado, disse-o como quem enuncia um princípio válido nunc et semper, no plano transcendente.

Muito escrevi a este respeito e, de cada vez, fi-lo com a ânsia de quem busca uma verdade imutável. Para já, o meu entendimento vê a Democracia privada da Unidade, da Verdade e da Bondade, três atributos transcendentais que rodeiam o Ser. A doutrina democrática surge-me, pois, como negadora desses predicados, de que todo o poder político se deve revestir.

Vou ser breve, evitando assim arrastar uma exposição onde não será necessário cansar para dizer o suficiente. Daqui, resultará uma maior densidade e, para não correr o risco de perder em clareza, procurarei fugir, um pouco, à abstracção que a ontologia requer, tentando discorrer pela forma mais concreta que me for possível:

A soberania ou o poder político tem de apresentar a Unidade, a Verdade e a Bondade, que são próprias do Ser: a Unidade pede a causa material e a causa formal; a Verdade exige a causa eficiente; e a Bondade reclama a causa final.


A UNIDADE METAFÍSICA DA SOBERANIA

Vejamos se, em Democracia, se cumpre o princípio da identidade, o primeiro dos princípios que expressam a unidade do Ser, na ordem da geração e da composição:

Já desde Parménides que, para certa corrente filosófica, o Ser é. A este univocismo, de consequências desastrosas, contrapõe-se, sem melhor êxito, o fluir heraclitiano. Coube a Aristóteles a glória de superar a querela, quando penetrou a fundo na estrutura do Ser e a captou com uma mestria admirável, brindando-nos com a solução do sentido análogo. A dinâmica do Ser criado encontra, aqui, uma explicação congruente.

Sendo dinâmico, o Ser compõe-se de potência e acto, tem uma causa material e uma causa formal. Acontece que, até hoje, nem uma só alma teve a caridade (se é que laboro em erro) de mostrar-me onde está, em democracia, a causa formal da sociedade, o seu princeps: se na plebe, se na figura de algum governante reconhecível. Ninguém me resolve a dificuldade.

Há, é certo, a lição magistral de Suárez: «Hinc facile concluditur altera pars assertionis, nimirum potestatem hanc ex ui solius iuris esse in hominum communitate. (...). Ut autem hoc melius intelligatur, aduertendum est, multitudinem hominum duobus modis considerari, primo solum, ut est aggregatum quoddam sine ullo ordine, uel unione physica, uel morali, quomodo non efficiunt unum quid nec physice, nec moraliter; et ideo non sunt proprie unum corpus politicum, ac proinde non indigent uno capite, aut principe. Alio ergo modo consderanda est hominum multitudo, quatenus speciali uoluntate, seu communi consensu in unum corpus politicum congregantur uno societatis uinculo, et ut mutuo se iuvent in ordine ad unum finem politicum, quomodo efficiunt unum corpus mysthicum, quod moraliter dici potest per se unum; illudque consequenter indiget uno capite. E acrescenta: «In tali ergo communitate, ut sic, est haec potestas ex natura rei ( ... ).» (4)

Primorosa a distinção entre o povo, como multidão atomizada, e o povo já organizado. Entretanto, no meu espírito há uma dúvida que paira: Quomodo efficiunt unum corpus mysthicum sine uno capite quo indiget? Por isso, permanece a interrogação: onde mora o princeps em democracia? E enquanto não ouvir resposta terei de decidir que está por apontar a função da causa material nos sistemas democráticos e que falta definir o papel que aí desempenha a causa formal, porque desde logo não se consegue traçar, com nitidez, a fronteira entre uma e outra destas duas causas.

Achando-se confundidas as causas intrínsecas do poder político, terei de concluir que não há operância harmoniosa. Este desequilíbrio atira-nos, de novo, para o seio da velha antinomia: o ontologismo unívoco dos eleatas ou a multiplicidade empírica dos efesinos. Ora, nem um nem outro desses extremos é capaz de satisfazer a unidade necessária ao poder político enquanto Ser.


A ORIGEM DO PODER POLÍTICO

Mas este delicadíssimo ponto não pode ser separado da forma como se encara o princípio de razão suficiente do poder político. Eis-nos já no terreno da verdade da soberania: averiguemos, pois, se a causa eficiente do poder político se encontrará em Democracia. Aqui, curarei apenas da causa eficiente subordinada, visto dar como assente que a principal e suprema é Deus: «(...) não há autoridade que não tenha sido estabelecida por Deus (...).» (5)

Com esse propósito, escolho três autores sobre os quais me deterei numa análise que será necessariamente curta: Marsílio de Pádua, adulador de Luís da Baviera; John Locke, o encomiasta da Revolução Inglesa; e o popularizado Jean-Jacques Rousseau. Curioso e, ao mesmo tempo, muito significativo o pormenor de ser gibelino o primeiro destes campeões da soberania popular; deísta, o segundo; e o terceiro, enciclopedista. Quer dizer: pelo menos três dos mais notáveis arautos do sistema democrático eram heterodoxos segundo os cânones de Roma.

Entremos agora no pensamento de cada um deles. Embora essa incursão, conforme já frisei, tenha de ser bastante rápida, conto, mesmo assim, atingir os pontos nevrálgicos.

Argumentando sobre a origem do poder político, diz o Patavino: «Nos autem dicamus secundum ueritatem atque consilium Aristotelis (...) legislatorem seu causam legis effectiuam primam et propriam esse populum seu ciuium uniuersitatem, aut eius ualentiorem partem per suam electionem seu uoluntatem in generali ciuium congregatione per sermonem expressam (...).» (6) Contudo, se andarmos um pouco, veremos que a ciuis descriptio é por ele feita à luz de um critério adoptado do Estagirita: «Ciuis autem dico secundum Aristoteles (...) eum qui participat in communitate ciuili, principatu autem consiliatiuo uel iudicatiuo secundum gradum suum. Per quam siquidem descriptionem separantur a ciuibus pueri, serui, aduenae, ac mulieres, licet secundum modum diuersum.» (7)

Não disputarei sobre o acerto ou desacerto deste juízo restritivo: isso, de momento, importa pouco ou mesmo nada. O que choca não é a arbitrariedade desta teoria, sem a mais pequena ponta de democraticidade, e choca não por ser antidemocrática, mas pela contradição evidente em que o seu autor incorre. De facto, começa por sustentar que o legislador é o povo, ou a universalidade dos cidadãos, ou ainda a sua parte mais valiosa, para depois negar esses direitos de cidadania às crianças, aos escravos, aos estrangeiros e às mulheres. Quer dizer: é manifesto que nesta cidade política há castas de cidadãos com direitos que a Democracia apresenta como fundamentais e universais, mas que afinal não são para todos. Ei-la no triste esplendor da sua incoerência --- estabelece categorias, classifica. Por outras palavras: faz o que censura nos sistemas autocráticos. Com uma nota que é de reter: a democracia diz que é igualitária!

Quanto ao médico privado de Shaftesbury, vemos que ele se limita a registar que «whosoever therefore out of a state of nature unite into a community must be understood to give up all the power necessary to the ends for which they unite into society, to the majority of the community, unless they expressly agreed in any number greater than the majority.» (8)

A verdade, porém, é que este trecho não elucida coisíssima alguma: que estado é esse de que ali se fala, no qual «transgressing the law of nature, the offender declares himself to live by another rule than that of reason and common equity, which is that measure God has set to the actions of men (...).» (9) e onde cada um conserva um ius puniendi, que, entre outras finalidades, serve também em certos casos « to secure men from the attempts of a criminal who, having renounced reason, the common law and measure God hat given to mankind.» (10) Não será, antes, um absurdo esta hipótese de uma vida em que pelo que se depreende das duas últimas transcrições, havia um sentido inato de justiça? Como se pode compreender esta explicação num filósofo sensista como era Locke?

Por fim, temos o amigo de Voltaire afirmando que «force ne fait pas droit» (11) e defendendo a existência de um pacto a servir-lhe de base --- «la loi de la pluralité des suffrages est elle-même un établissement de convention, et suppose au moins une fois lunanimité.» (12)

Acontece que esta tese, como padrão normativo, é doutrina que só convence os que já abundam no mesmo preconceito: em Portugal, por exemplo, o Decreto-Lei n.º 621-B/74, de 15 de Novembro, feriu de incapacidade eleitoral muitas pessoas sem lhes perguntar se achavam bem ou não. E se se adiantar, como alternativa, que, nesse, como nos demais casos, tudo se desenrola no uso de um poder delegado por razões históricas, tal posição é ainda inaceitável: onde está, com efeito, a prova disso?

Ouve-se frequentemente que a unanimidade referida por Rousseau não constitui uma verdade histórica, mas sim um mero padrão normativo. Dispensemos, pois, a prova histórica da tese perfilhada pelo filósofo genebrino e detenhamo-nos apenas na análise do enunciado como princípio de acção política.

Teremos, então:

Na votação que consagra a pluralidade de sufrágios, requer-se unanimidade. E como se forma tal unanimidade? Os incapazes também entram nessa fabulosa assembleia? Ou ficam de fora? Se tomam parte nela, já foram capazes, pelo menos, de elaborar a lei. E se são excluídos daquela convenção, onde se apoia tal decisão, dentro da proclamada unanimidade?

Resulta, pois, que a unanimidade de que Rousseau fala, aparece sempre limitada em maior ou menor grau, num ou noutro sentido, com mais ou menos justiça. Aqui, é flagrante a semelhança com Marsílio de Pádua!

E a fantasia vai girando, livre, no carrocel dos mitos! Que força oculta impede, entretanto, que imensa gente de boa fé veja aquilo que é medianamente claro?

No caso da revolução portuguesa de 1974, paradigma estupendo, o poder de ditar o já citado Decreto-Lei n.º 621-B/74, de 15 de Novembro; a faculdade de impor uma plataforma de acordo constitucional, seguida, quase um ano após, de outro pacto com os partidos, tendo ambos estes documentos influenciado decisivamente o panorama político em que nos movemos; a arbitrariedade que levou à chamada descolonização, essa monstruosa felonia, a qual, de forma absolutamente discricionária (uma trivialidade democrática!), muita gente insiste em remover para o Tribunal da História; todos estes factos, pelo menos estes, provam, à saciedade, que o ius imperii se encontra em quem os praticou e, portanto, é aí que tem de ser buscada a causa eficiente da soberania, porque é aí que ela reside.

O meu juízo sobre o procedimento dos detentores da autoridade em Portugal, depois do 25 de Abril, é de um áspero rigor. Não sou severo com eles por nem de perto nem de longe se confundirem com a unanimidade originária que Rousseau impunha como base indispensável da ordem democrática (autêntica disformidade, verdadeira utopia que, mesmo a existir, também não seria, só por si, causa de qualquer legitimidade), mas reprovo-os porque não fazem um recto uso do poder, deixando consequentemente de cumprir a causa final de toda a soberania política.


A EFECTIVAÇÃO DO BEM COMUM

Passemos, então, ao mais precioso atributo do poder político: a sua bondade.

A Democracia não é só mentirosa; a Democracia não é apenas um repertório de imbecilidades: a Democracia redunda nestas duas coisas juntas, mas a Democracia é, além disso, um expoente de farisaísmo.

O horror, que ela mostra, quando lhe falam no nazismo ou no comunismo, não é uma máscara dissimulatória porque é o rosto autêntico do mais refalsado cinismo. Na verdade, a moral democrática busca fundamento na regra que pretende fazer que o Bem derive do apetite de cada um. Isto reflecte a inversão do justo sentido que se deve observar na escala de valores: é a filosofia de Nietzche, para quem o super-homem era o padrão neste campo. Hoje, através das teorias perfilhadas e divulgadas por Alfredo Rosenberg, que via a fonte do Bem, na raça ariana, torna-se difícil, senão mesmo impossível, negar a força desta corrente na praxis nazi. No seio dos marxistas, não foi menor a influência deste pensamento: bem é tudo o que possa convir à vanguarda revolucionária do proletariado para que se chegue ao triunfo do colectivismo.

Relativamente ao que já disse, ainda muito poderia acrescentar. Mas prefiro calar-me. E assim, em lugar das razões que o meu pensamento é capaz de apresentar, ofereço o testemunho que tem a força moral e intelectual de quem o proferiu --- Leão XIII.

Dizia o Papa dos operários:

«(...) se o homem se fixa e se persuade que ninguém se lhe avantaja, segue-se que a causa eficiente da união e sociedade civil deve ser procurada não num princípio colocado fora e acima do homem, mas sim na livre vontade de cada um: o poder político tem de derivar da multidão como de sua fonte primeira, e depois, assim como a razão de cada um é guia e norma de agir para esse na sua vida privada, assim convém que seja a razão de todos em questões de natureza pública. Daqui, os muitos poderem muito; e o ser a maioria do povo autora dos direitos e dos deveres.» (13) Mais à frente, o Pontífice Romano denuncia a causa de tanto mal, todo ele oriundo do apriorismo kantiano, que veio abalar os alicerces em que deitava raízes a heteronomia da moral católica. São suas estas palavras: «Sem dúvida, deixado o juízo do verdadeiro e do bom exclusiva e unicamente à razão humana, destrói-se a própria diferença do bem e do mal; o que é torpe não difere do que é honesto na coisa, mas na opinião e no juízo de cada um: o que agradar, será lícito; e constituída uma moral sem força para reprimir e acalmar as tumultuosas paixões da alma, a vida há-de aproximar-se espontaneamente de toda a espécie de corrupção. Por outro lado, na vida pública, o poder de mandar está separado do princípio verdadeiro e natural, do qual tira toda a força eficaz do bem comum: a lei que estatui sobre o que tem de ser feito e aquilo que tem de ser afastado, fica abandonada ao arbítrio da maioria do povo, o que, na verdade, é o caminho em declive para um domínio tirânico.» (14)

Este é um depoimento de impressionante clareza e objectividade. Nele estampa-se uma exautoração solene e formal do logro que é a democracia e logo no aspecto que mais importa: a sua causa final. Baste-nos, pois, esta preciosa lição.

Como o Bispo de Hipona, por ocasião da heresia pelagiana, quando corria o ano de 417, assim eu, diante do insulto à inteligência e à moral que é a Democracia, também brado: «Roma locuta est, causa finita est; utinam finiatur aliquando error!» (15)


CONCLUSÃO

A Unidade, a Verdade e a Bondade, que são apanágio do poder político, não se acham, pois, em Democracia, naquele grau de pujança que é lícito desejar e esperar.

Falho de unidade, o poder político, nos sistemas democráticos, ou é, e é à maneira como Parménides concebia o Ser, pelo que, pulverizados os corpos intermédios, essas comunidades onde o povo real aspira a viver, acaba lançando as pessoas no lodaçal da escravidão --- tal é, por exemplo, o caso do poder comunista; ou, quando não reconhece esse monolitismo uniforme, facilmente se esboroa, desintegrando-se em forças paralelas que se hostilizam, e a sociedade acaba por se tornar pouco menos que ingovernável --- é a imagem do sirva-se quem puder, triste quadro que agora se contempla em Portugal.

Carecido de verdade, o poder político, em democracia, escamoteia a sua própria causa eficiente e torna-se no ludíbrio daqueles para os quais sonoramente afirma existir.

Por último, e enquanto desprovido de bondade, não consegue aureolar-se do único título que confere legitimidade ao poder soberano: a efectivação do bem comum. E assim o poder democrático condena-se irremissivelmente.

Como pode, pois, pensar-se numa aliança entre a democracia, el mal hecho legión, como a considerava Donoso Cortés (16), e o cristianismo, luz verdadeira do Verbo que, no princípio já existia, estava com Deus e era Deus (17), o Javé do texto sagrado (18), o Ser Necessário e, consequentemente, ornado de todas as perfeições em grau absoluto?

Sei que, a este propósito, me podem lembrar a obrigação que têm os católicos de critianizar a vida da sociedade temporal, o que inclui a embustice da Democracia. É escusado fazê-lo: julgo conhecer, nos seus precisos termos, o magistério eclesiástico sobre a matéria.

No caso específico da chamada democracia-cristã, a encíclica Graves de Communi, de Leão XIII, não impede nenhum fiel obediente de entender que a cristianização da Democracia implicaria a sua conversão; a conversão levaria ao baptismo; e, com o baptismo, viria um nome novo. Eu, francamente, confesso que a tarefa de lavar a Democracia do seu pecado de origem, essa missão de fazê-la morrer para um passado de falsidade e de malícia, de modo que renasça com outra face, porque outro é o seu espírito, é um passo tão extraordinário que dá-lo se me afigura sobre-humano.

Só um milagre, portanto, terá virtude para purificar a Democracia. Parece, porém, uma impossibilidade metafísica que esse milagre se opere sem que morra a Democracia para dar lugar à Legitimidade!


Joaquim Maria Cymbron
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  1. Oliveira Martins --- Portugal Contemporâneo, liv. 4.º, cap. I, 2 e 3.
  2. Ainda não se promulgara a Lei que as permite.
  3. Const. Past. Gaudium et Spes, 51.
  4. De Legibus, lib. III, cap. II, 4.
  5. Rom. 13, 1.
  6. Defensor Pacis, Prima Dictio, cap. XII, § 3.º
  7. (Ib., § 4.º).
  8. The Second Treatise of Government, chap. VIII, 99.
  9. Ib., chap. II, 8.
  10. Ib., chap. II, 11.
  11. Du Contrat Social, livre I, ch. III.
  12. (Ib., ch. V).
  13. Libertas Praestantissimum, 12.
  14. (Ib.).
  15. Serm. 131, 10.
  16. Despachos desde Berlín, n.º 35.
  17. Jo. 1, 1.
  18. Ex. 3, 14.

JMC