Imputei a Mário Soares, então Presidente da República, o cometimento de um crime de traição à Pátria pela forma como aquele homem público se houve no desempenho das funções de Ministro dos Negócios Estrangeiros, nos meses imediatamente subsequentes ao 25 de Abril.
O magistrado do MP, que abriu inquérito, começou por tratar o caso como ofensa à honra do PR e, com esta atitude, andou correctamente. Ao mesmo tempo, aquele magistrado requereu que Mário Soares fosse ouvido a fim de saber se era seu desejo usar da faculdade contemplada no n.º 3 do artigo 328.º do CP, que permite fazer cessar o procedimento criminal sempre que o Presidente da República expressamente declarar que dele desiste.
Foi contrariado neste propósito pelo seu superior hierárquico, que alegou não ser oportuno fazê-lo naquela fase do inquérito. Mas nem depois esta diligência se veio a realizar. Em lugar disso, há uma alteração repentina e sem qualquer fundamento: o facto por mim praticado deixa de ser crime de ofensa à honra do PR e passa a constituir crime contra a honra de um membro do governo português. Quer dizer: uma injúria, consumada em 1994, vai atingir o visado na veste que ele tinha vinte anos antes!
O resultado foi o que era de esperar: transformando em crime semipúblico o que nitidamente foi crime público, numa convolação cuja arbitrariedade se diria inconcebível se não fora o triste cortejo de precedentes que já tornou isto um cenário habitual na prática dos tribunais, conseguiram o ponto de apoio para a decisão que desesperadamente procuravam --- ordenar o arquivamento do processo para sossego deles, pelo que alegaram a real falta de legitimidade do MP, uma vez que não existia queixa do ofendido (1).
Assim se pôs termo a uma lide que incomodava a classe política. Tinha de se variar. Porque, pouco mais de dois anos antes, noutros autos, nos quais eu também respondi por crime idêntico contra a honra do mesmo Mário Soares, a forma encontrada para acabar com o processo foi a prescrição, quando ainda havia muito caminho para andar (2).
A independência do poder judicial é mais um dos muitos sofismas das utopias liberais!
A DEFESA
QUE
FICOU POR FAZER (3)
A Pátria não é um ente físico: a Pátria é aquele laço moral que fica da extensão no espaço e de uma sucessão no tempo desta categoria, que é a sua primeira realidade --- o homem!
Quando se diz, pois, que houve um crime de traição à Pátria, devia com isso entender-se que o agente desse crime atraiçoou várias gerações de seres humanos. É com este sentido que eu afirmo que Mário Soares traiu a Pátria. E, dentro do alcance da minha acusação, destaca-se obviamente a sorte mofina que coube a populações inteiras do nosso Ultramar. Aqui, especialmente, irão incidir as reflexões, a que tenciono proceder, para que este tribunal as pese na balança da sua justiça!
A propósito das grandes questões sociais, ouve-se frequentemente falar que uma coisa é a solução política dos problemas e outra, distinta, a sua solução jurídica. Isto aceita-se, pode mesmo considerar-se certo. O que não está bem é dizer que ambas as soluções marcham independentemente uma da outra. A esta má regra não fugiram muitos dos juízos efectuados sobre o desmembramento do Ultramar português.
É, na verdade, um grave equívoco esta pretensa diferença.
Não há resposta política sadia onde falte uma solução jurídica recta ou, vendo por outro lado, se a santidade do direito sai manchada, aí, não haverá mais que uma catástrofe política desencadeada ou latente. No caso nacional, essa catástrofe foi o exemplo acabado de traição à Pátria.
Por força do § 2.º do artigo 150.º da Constituição de 1933 «todos os diplomas para vigorar nas províncias ultramarinas carecem de conter a menção, aposta pelo Ministro do Ultramar, de que devem ser publicados no Boletim Oficial da província ou províncias onde hajam de executar-se». Ora a legalidade revolucionária, instaurada com o 25 de Abril, deixou incólume esse preceito da Constituição, que então tínhamos: devia, assim, aplicar-se o regime do n.º 1 do artigo 5.º do CC, o qual estabelece que «a lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial».
Fácil torna de se ver que muitos daqueles a quem se dirigia o Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de Junho, texto que, segundo confessa Almeida Santos, seu autor, saiu para ser medicina preventiva contra o risco de que «milhares, senão milhões de cidadãos portugueses, porfiassem em continuar a sê-lo» (4) muitos desses, aos quais, repito, este diploma brutal se dirigia, não podiam tomar conhecimento dele nem isso lhes era exigível: são todos os que formam a imensa mole de gente que vivia nas antigas províncias ultramarinas e que, de repente, se viram condenados a um destino, que não escolheram. Neste número, particular atenção merecem aqueles que não tinham a felicidade de contar um ascendente até ao terceiro grau com o privilégio de um berço continental, açoriano ou madeirense. Para esses, a sentença proferida era inelutável!
E tudo isto se realizou ao arrepio dos mais elementares princípios gerais de direito e contra o que foi publicamente anunciado. Tendo essas promessas recebido força de lei constitucional, abre-se no campo jurídico a hipótese de uma provável nulidade. A este vício, acresce uma múltipla inconstitucionalidade superveniente.
Porém, uma e outra, mesmo procedentes, serão irrelevantes para a minha pretensão de triunfar na exceptio ueritatis. Por tal motivo, não cuidarei agora de nenhuma delas.
Se confrontarmos a situação destes cidadãos, com a dos naturais de Timor, mais revoltante ainda é a desigualdade de tratamento. Nos dias que correm, recebem os Timorenses rebeldes a Jacarta bom agasalho do Estado Português, contrastando por forma bem marcada, com aqueles que são oriundos de lugares onde se apresentaram a dominar partidos comunistas de acentuada inspiração no clássico modelo soviético.
E a impudência maior está em que Timor também fazia parte dos projectos de liquidação do império, criando-se, por esse modo, condições a que ali se desenvolvesse um foco de subversão marxista, que devia alastrar por toda a Indonésia. Como esse propósito falhou (pelo menos, por ora), a diplomacia portuguesa agita-se num caudal de protestos contra a anexação daquela nossa antiga província pela Indonésia, alegando que resultou de um acto de força, infractor das mais básicas normas de Direito Internacional.
Mas, sem esquecer Cabinda (violentada na sujeição ao governo de Luanda), que democraticidade há nas independências concedidas a Cabo Verde; à Guiné; a S. Tomé e Príncipe; a Angola; a Moçambique?
Por mim, não vejo mais que esta diferença: Timor foi abandonado; os outros territórios foram entregues. No primeiro caso, o delito é de omissão; no segundo, de acção. De comum, apenas isto: em ambos os momentos, obedeceu-se cegamente a um plano revolucionário de matriz internacional!
Sobre todas aquelas parcelas possuía Portugal direitos inegáveis e, como acontece onde há direitos fortes, tinha também deveres indeclináveis. Em suma: Portugal tinha os direitos e os deveres inerentes a esta condição simples e, como tudo o que é simples, de meridiana clareza: a condição de todo aquele conjunto de surpreendente multiplicidade constituir uma magnífica unidade, cujo nome era este --- universo português.
A palavra universo nada mais significa que diverso nos seus aspectos, mas uno na transcendência. Portugal foi isto mesmo. E porque vertia em obras uma verdade indisputável da mente humana, não admira que suscitasse tantos ódios. É que há modelos que, pelo seu elevado expoente de harmonia, só pouquíssimos conseguem realizar.
Nós éramos uma dessas excepções. Há mais de quinhentos anos, com muitas falhas pelo meio, é certo, o nosso sentido do absoluto e a nossa sede de perfeição impeliram-nos a tomar corpo segundo um mandamento velho como o Cristianismo e que encontrou a sua apoteose num concilio ecuménico deste século. E, deste jeito, evangelizadores como o Apóstolo dos Gentios, a todos abraçámos sem distinção de raças ou de credos.
Contudo, a regalia invejável de ser a imagem viva de um autêntico prodígio, requer fidelidade. A classe política, triunfante com o golpe consumado a 25 de Abril de 1974, não correspondeu ao apelo dessa vocação. Mais: ela perpetrou a inversão completa do devir histórico da grei lusíada, até o tornar sombra e sombra negra do seu melhor passado.
Deste processo de traição, muitos são os culpados. Mas eu entendi escolher como alvo da minha censura o ex-Presidente da República. É por esse facto que respondo.
Na causa, que aqui se aprecia, ajuizei do praticado por Mário Soares, com as armas da sua democracia e, conforme o mostro na contestação, colhendo depoimentos no meio dos seus pares em convicções políticas (5). Não invoquei o testemunho de um só homem daqueles sectores, a que se convencionou chamar direita. Aí, já se adivinharia, de antemão, uma condenação unânime.
Das citações feitas, há uma que acho conveniente e oportuno trazer novamente a esta sala: --- «Se alguém passar ao vosso lado e vos segredar palavras de desânimo, procurando convencer-vos de que não podemos manter tão grande império, expulsai-o do convívio da Nação» (6). E, do mesmo autor, intercalo agora outra: «(...) os territórios de além-mar, onde há cinco séculos trabalhamos e sofremos (...) constituem províncias tão portuguesas como as da metrópole, a Nação é só uma» (7).
Era este o falar de Norton de Matos, tendo no pensamento, como ele próprio dizia, «a conservação e o engrandecimento de Portugal» (8). Entre o que realmente foi a visão ultramarina do velho general e irredutível oposicionista ao Estado Novo e aquilo que dele conta Mário Soares, cava-se o fosso intransponível da contradição: de um lado, está a integridade; ergue-se, do outro, a calúnia. Quem quiser, que separe as águas a seu gosto: eu já o fiz!
Aludi, quase no inicio destas minhas declarações, à relação existente entre Almeida Santos e o Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de Junho. Peço vénia ao tribunal para, antes de terminar, me deter, aqui, uns curtos instantes, com o fundamento de que, nestes casos, há matérias que só aparentemente são deslocadas, porque afinal se interpenetram muito mais do que se supõe.
António de Almeida Santos possui, inegavelmente, a par de uma grande riqueza do léxico português, uma propriedade de linguagem que é invulgar. Uma prova deste predicado, que poucos, creio eu, deixarão de lhe reconhecer, têmo-la em duas alturas, cronologicamente distintas: a primeira ocorre na visita, que fez a Luanda nos últimos dias de Maio de 1974 e em que, na qualidade de Ministro da Coordenação Interterritorial, com pasmosa mestria, exortou toda a gente a manter-se em Angola, esboçando um quadro de luminosas expectativas para quantos lá continuassem (9); a segunda dá-se por ocasião do debate realizado na Assembleia da República, em 1988, à volta da proposta de lei que ia revogar o Decreto-Lei n.º 308-A/75, de 24 de Junho, e aquele político socialista, com a eloquência que é seu timbre, explicou a dureza do regime legal que ia expirar (mas que, volto a lembrá-lo, fora criação sua), com o argumento de que «era presumível que o pós-independência corresse mal» (10).
Onde está aqui a propriedade de linguagem, que teimo em atribuir a Almeida Santos, sabido como é, que esse dom se caracteriza pela exactidão terminológica em cada momento do discurso oral ou escrito? --- É simples: em ambas as situações, o actual Presidente da Assembleia da República, atento às circunstâncias que se viviam, disse só o que lhe convinha e como lhe convinha! E assim o vemos, em 1988, tentando justificar-se precisamente com o oposto do que sustentara havia uns anos atrás, donde é manifesto que, aqui ou então antes, faltou consciente e deliberadamente à verdade. Contudo, no âmbito da propriedade de linguagem, nada se altera com isto porque eu agora não cuidei de exaltar o fino carácter de quem quer que fosse, mas sim de dar conta de uma retórica de primor.
Não resisti, no fecho deste parêntese, a uma ponta de ironia que, mesmo cheia de amargura, me interrogo se é licito usá-la porque aquilo que se julga perante este tribunal tem raízes numa imensa tragédia, tragédia para a qual concorreram, em estreita união de esforços, Mário Soares e Almeida Santos. Por isso, não me pareceu descabido juntar estes dois nomes, numa colação fugaz e incompleta, que deixa de fora outros, os quais, um dia, fatalmente virão a ser chamados.
Marcelino da Mata, legenda heróica da guerra que travámos, conta que, nos bancos de escola da sua Guiné, recebeu, a par das primeiras letras, a revelação de Portugal com um sabor de acróstico. Portugal --- assim lhe ensinaram --- queria dizer: povo; ousado; resistente; tenaz; unido; generoso; amável; leal. Retiremos, daqui, dois títulos: o de generoso e o de leal. Destes, só o segundo basta à conclusão, que eu pretendo formular:
Os povos de África, aquela África das calmas ardentes e noites estreladas, terra dos sussurros de magia e de sonhos sem fim, porções do mundo onde a bandeira das quinas subiu embalada no sopro fagueiro das ternas brisas que ali corriam, os povos dessa África, que eles trazem dentro de si porque foi seu berço e esperava por todos para abrigá-los na morte, esses povos não têm de pedir generosidade a Portugal: eles merecem mais --- têm direito à lealdade da Pátria, que é a sua e que nunca traíram!
Joaquim Maria Cymbron
Nota: Este texto foi publicado no jornal trimestral A Voz do Combatente, n.º 56 (ABRIL/JUNHO de 1997).
______________________________
- P. 1.126/95.6 TD do 4.º J., 2.ª S. do Tribunal Criminal de Lisboa.
- P. 2.410/87 do 1.º Juízo Criminal de Lisboa, 2.ª S.
- O julgamento, para o qual preparei esta peça, estava marcado para começos de 1997. Tudo o que nela se contém deve, pois, ser lido, tendo presente esse marco cronológico.
- Diário da Assembleia da República, I Série, n.º116, de 15 de Julho de 1988, p.4706).
- Àqueles que me lerem, desde já informo que tudo isto virá progressivamente a lume.
- General Norton de Matos --- A Nação Una, Paulino Ferreira, Filhos, Lda., Lisboa, 1953, pp. 3 e s.).
- Ib., p. 4.
- Ib., p. 3.
- A Província de Angola, 27 de Maio de 1974, p. 2, cols. 6, 8, 9).
- Diário da Assembleia da República, I Série, n.º 116, de 15 de Julho de 1988, p.4707.
JMC