quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

IMOBILISMO ORTOGRÁFICO?


Se folhearmos a nossa riquíssima literatura desde os primórdios até aos dias de hoje, depressa notaremos que o português apresenta uma característica comum às demais línguas: sofreu alterações.
 
Escreveu-se sempre da mesma maneira? Deixou  de ser portuguesa essa literatura só porque a ortografia mudava? Foi por isso que Portugal definhou? Acaso as regras da escrita decidem dos períodos de glória ou de abatimento dos povos? Foram os clássicos de quinhentos que determinaram o esplendor e o poderio que, por essa época, a nossa Pátria alcançou? Para mim, é líquido que a resposta a estas interrogações há-de ser um rotundo não! Isto que é tão simples na aparência e, repito, de uma clareza meridiana, é também de considerável relevância evitando que a leviandade de alguns juízos torne um acordo ortográfico culpado da nossa decadência.
 
É certo que, apresentando-se o acordo bastante pródigo em mexidas de duvidoso senso gramatical, bem pode considerar-se que não ajuda à miséria em que nos atolámos, porque a língua também é tributária da beleza e a riqueza cultural não dispensa a estética. Mas daí a imputar-lhe a responsabilidade única de todo o mal ocorrido e daquele que se receia futuro, a distância é grande, enorme até, e além de constituir um erro crítico, redunda numa flagrante injustiça. Se reencontramos a grandeza de alma dos nossos maiores para imitá-los nas obras, imediatamente todos os temores se esfumam e darão lugar a outros cânticos, onde o aticismo da língua há-de contar como efeito e não como causa, porque só pode escrever e falar com elevação quem sabe pensar com nobreza. Os heróis praticam os feitos e os poetas, prosadores e oradores imortalizam essas façanhas. Só merece ser louvado o que mostra bizarria nas suas acções. Assim Portugal, o Portugal que desbravou Oceanos e tornou o Mundo mais pequeno, o Portugal missionário e mártir, o Portugal que enfrentou duras e cruentas pelejas, recupere o antigo brio e a velha honra, que logo veremos como a escrita e o verbo, sem as criar, narrando-as apenas, acompanharão as novas glórias!
 
Este controverso acordo não é o único desmando do sistema pluripartidário que nos desgoverna. Nem sequer o mais grave. Também não creio nas terríveis proporções, que lhe atribuíram, de monstro que ameaça a nossa identidade nacional ou que vem pôr em perigo a soberania de Portugal. No entanto, tal como o firmaram, é fora de dúvida um documento medíocre e que por isso merece ser combatido. Mas essa guerra tem de ser ponderada e bem dirigida.
 
Quando os amantes da língua contrapuserem ao acordo argumentos de ciência e não reagirem temperamentalmente; quando o contrariarem com racionalidade e não com emotividade; quando atacarem os autores do golpe antipatriótico que nos condenou à triste dependência das Internacionais; quando cruzarem todos os resultados do acordo com a insignificância numérica (e não só esta), a que ficámos reduzidos após a traição abrilista; quando tiverem a afoiteza, que não tem de ser extraordinária, para denunciar e atacar o núcleo dos males que nos afligem --- a democracia --- aí, sim, demos com o rumo e pode haver esperança de uma melhoria.
 
Até lá, desconfio seriamente dos protestos que se levantam contra a heresia linguística, porque o sentimento ali patente, mais que outra coisa, parece-me quase só nostalgia ortográfica. E temo sinceramente que essa nostalgia provoque o resultado nefastíssimo de que a língua falada e escrita, no que sobra de Portugal, acabe por chegar a uma repetição do que sucedeu ao povo galego, e que é visível aos olhos de todos.

Vacilo na buca da causa desta fobia que tanto exaspera o que se me afigura ser a falange dos patriotas da língua, quando não são unicamente patriotas de língua. Será por um exacerbado rigor de filologia? --- Não me parece: deve ser antes um problema de filosofia, que é como quem diz uma questão de mentalidades.
 
O uso de estrangeirismos não é certamente menos desnacionalizante do que o estabelecido pelo acordo. No conteúdo, na pronúncia e na forma de escrever, em tudo isso, as palavras não fogem à natureza do que é convencional. Bem mais que o significante importa o significado: não se concebe um significado sem significante; mas um significante, ao qual não corresponda um significado, está a mais no vocabulário de uma língua.
 
É o significado das palavras que devemos cultivar e acarinhar. E nele recuperar a virtude que nos fala dos valores morais ali contidos. Isto, sim, parece-me uma tarefa patriótica, a única, neste campo, que exige a nossa fidelidade e justifica a preocupação de procurar cumpri-la. Nada de mal empregados esforços em fixar formas que não devem ter a pretensão de perpetuidade, porque elas próprias já vieram substituir outras. A tendência para deixar intacto o que está, é doença do conservadorismo.
 
Ninguém pode ignorar que a linguagem humana é articulada e que nisso se distingue dos sons emitidos pelos brutos, sons estes também inteligíveis para outros animais da mesma espécie, porque transportam uma carga significante. A língua portuguesa corre porventura risco de se perder num conjunto de sons inarticulados? A resposta não é fácil. Eterno só Deus, porque, no mais, «todo o mundo é composto de mudança.» (1). A nossa língua nem sequer guarda promessa de imortalidade: portanto, pode vir a desaparecer. No entanto, também nada mostra que esteja condenada a uma próxima extinção É certo que o acordo consagra bastantes quedas de letras, mas a verdade é que a grafia aprovada não arrasta consigo nenhuma perda de fonemas. Não foi o som que se adaptou à letra, mas sim o contrário.
 
Se as alterações fonéticas, que determinaram a nova ortografia, são um erro pedindo que se reaja, o remédio não é a estagnação das regras do bem escrever. O caminho está na luta aos péssimos hábitos que se instalaram e cada vez mais se enraízam. Não será temerário reconduzir esses hábitos viciosos a dois tipos de comportamentos: por um lado, abunda um falar desleixado, em que a linguagem sincopada e truncada veio substituir a frase rica de conceitos, elegante e gramaticalmente bem construída; o outro mal é o recurso às vozes onomatopaicas, o que vai desfeando gradualmente a linguagem, com o consequente risco de a transformar num amontoado de ruídos.
 
Tomadas estas cautelas, a evolução tem de aceitar-se. A língua de um povo, como tudo o que foi criado, tem dinamismo. Portanto, encaixá-la dentro dos moldes frios do "assim é que está bem, porque assim é que era", espartilhá-la desta maneira, é levá-la à morte. Dêem outras razões contra o acordo e, sobretudo, apontem uma solução que una os falantes da nossa língua. Se o não fizerem, cabe então perguntar quem está alienando um valor do património cultural português.
 

Joaquim Maria Cymbron
 
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  1. Luís de Camões --- Sonetos ("Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,").
JMC