domingo, 26 de junho de 2016

A HORA DA RÚSSIA


A Inglaterra afastou-se da União Europeia, dessa comunidade de nome enganoso, porque cada vez menos unida e que de europeia nada teve desde o começo, visto que a Europa, cujo projecto seria uni-la, está descaracterizada há muitíssimos anos.1  E o que temos presentemente é que a Inglaterra recusou continuar a fazer parte de um amontoado em que manifestamente era a mais. Saiu, deste modo, de um conjunto onde provavelmente entrou sem o propósito definido de lá permanecer. Ainda que caprichos políticos de anteriores ministérios a tivessem arrastado, mais do que conduzido, àquele confuso tabuleiro, um bom observador logo veria que ela não seria capaz de jogar segundo umas regras avessas ao seu ser histórico, nem estaria disposta a fazê-lo por tempo indeterminado. 

O referendo, com o resultado conhecido, faz a Europa adulterada espumar de raiva. A verdade é que toda a história inglesa mostra uma preocupação que se cifra nisto: a sua constante política foi sempre a de dividir o continente europeu. Nação nenhuma, bloco nenhum, império nenhum tem de se admirar ou espantar com o sucedido. Muito menos esta Europa bastarda, sem pudor moral e destituída não apenas de força, como principalmente da vontade em se defender, esta Europa irreconhecível, insista-se, não tem, com efeito, o mais pequeno direito à indignação, porque tal direito só cabe aos que estão prontos a lutar pela sua identidade. E a Europa de Bruxelas nunca possuiu identidade. 

Sabe-se bem que a Inglaterra de hoje não é a fortíssma Albion de tempos pretéritos. As suas naves não são mais o terror dos mares. E as leis que ditava ao Mundo, não por renúncia mas sim porque lhe míngua força, já não vêm escritas na tinta que as balas dos seus canhões golfavam. Inegavelmente que o Rule, Britannia cai muito bem como hino ambicioso, incitando a façanhas militares e consequente domínio ou guarda de territórios. É normal: todos os povos os entoam, quando não enveredam por erguer cânticos a uma alegria, a qual, se nos debruçarmos sobre a Europa repudiada pela Inglaterra, pode terminar em tragédia (pelo menos, desde a sua génese que tudo se vem conjugando e convergindo para esse fim). Cumpre deixar aqui um reparo sobre a última vez que o Rule, Britannia impulsionou forças britânicas para uma acção bélica, da qual se houveram com sucesso: foi o conflito entre o Reino Unido e a Argentina pela posse das Malvinas. Mas importa realçar o apoio prestado pelos Estados Unidos. Apoio esse que pesou decisivamente a favor das tropas de Sua Graciosa Majestade. E o facto é de reter pelo que, a seguir, se há-de ver e compreender. 

Outra razão concorre como se não bastara a desenvolvida até ao momento, e esta é de ordem moral. À Inglaterra nunca lhe agradou entrar em cena para desempenhar qualquer papel que não fosse o de prima donna. Quando se convenceu que, no presente figurino europeu, esse lugar de destaque lhe estava vedado, retirou-se do palco. O tempo, que levou a optar pelo abandono, é que pode intrigar e suscitar interrogações. Talvez a necessidade de esperar que o seu povo se desse conta de que havia engolido um fruto peçonhento, não só quanto ao que feria o  amor-próprio do brio nacional, como e principalmente que não era Bruxelas a estrela polar que apontaria o caminho de regresso à antiga glória, tudo isto somado, diga-se, terá adiado a decisão. Nada a censurar, portanto! 

A Inglaterra, repita-se, está hoje debilitada. Não por ter virado costas à Europa mistificada: esse passo revela uma determinação que a vai fortalecer, a ela e aos demais Estados-membros que aspirem a eleger a via do seu próprio destino. Esperemos que o exemplo seja contagiante e que, no reduto apátrida, sejam poucos os que por lá se mantenham, tolhidos na sua vontade porque a miséria, que padecem, a isso os pode vir a obrigar. Estes pobres sobreviventes formarão a primeira categoria dos que porfiam em ficar; na outra categoria, hão-de figurar os que sacam proveito destes desgraçados. No entanto, o quadro final há-de ser um montão de cacos. É verdade muito sabida que nunca a classe de capitalistas conseguirá enriquecer-se a si própria. Daí, o aparecimento inelutável do proletariado, essa massa de famintos que hão-de ser reconhecidos pelos andrajos que arrastarem, denunciando a miserável condição que lhes coube em sorte, naquilo que sobrar da União Europeia.

Regressemos à Inglaterra, tal como agora se apresenta, e ao que dela nos dizem as suas memórias. Ninguém duvida que já não é aquela terra que parece ter colado à boca de um Pontífice estas palavras sublimes, a respeito dos que ali viviam: «non angli, sed angeli.»2 Nem se discute a Inglaterra Tudor no reinado do sátrapa, quando arranca para o que veio a ser o apogeu da sua grandeza. Isso já lá vai. O cair sucede como acontece a todo o organismo vivo: nasce-se; desenvolve-se; atinge-se o cume; e vem o declínio. Mas a Inglaterra é ainda um colosso que se aguenta de pé. 

Os eurocratas criaram escravos que os idolatram. E estes, que fazem em reacção ao Brexit? Entre mais coisas, anunciam um horizonte de desolação apocalíptica e, como prova do que aí vem, bradam que as bolsas mundiais tremeram com a feia partida pregada pela Inglaterra. Foi realmente uma maldade. Custa apurar se é um horror farisaico que os agita. Porém, como muitos deles são uns pobres tontos, infelizes sem ponta de preparação, que vogam ao sabor do que é posto a correr, aceitemos o seu medo como sentido. Para tranquilidade dos mais timoratos, impõe-se um esclarecimento: 

Volta meia volta, as bolsas abanam; mas, com intervalos maiores ou menores, vêm a recuperar a estabilidade. Isto, conhece-o qualquer investidor bolsista com alguma prática conscienciosa do que é operar nesses mercados. A oscilação dos mercados de capitais é, a seu modo, o moderno toque a rebate das sociedades contemporâneas: mas como ao badalar dos sinos, por vezes, não correspondia lobo na vizinhança, também estes abalos nas cotações de títulos nem sempre reflectem um fundo de crise. Por isso, ainda que os indícios bolsistas sejam sinais autênticos de catástrofe próxima, embora de remédio que não costuma tardar, ou que se limitem à prática habitual de meras simulações e movimentos cíclicos de tendência altista ou de baixa, fenómenos estes que são provocados adrede, apesar de ter nisto a sua origem, repise-se, nem assim são causa do pânico que se quis espalhar. 

Nos mercados de valores, os movimentos de subida ou de baixa de cotações não são de geração espontânea. Quem negar isto é capaz de negar a luz do Sol em dia claro. Tudo se reconduz ao interesse das instituições financeiras que, através de empréstimos, subsidiam grande número de investidores bolsistas. Estes atrevem-se a contrair esses empréstimos na expectativa de solverem os débitos, assim constituídos, com as mais-valias especulativas que contam vir a obter. Por vezes, isso não chega tão cedo quanto o desejado, e atingido o prazo de cumprimento desses empréstimos, ou o investidor-mutuário paga, ou entra em mora. Os bancos são credores implacáveis e, por isso, apressam-se a recuperar o que emprestaram. No caso de haver mora, o banco ao qual recorreu o investidor, não conseguindo executá-lo em pecunia porque este seu cliente-devedor se encontra sem liquidez, toma conta das carteiras de títulos que ele tiver. É claro que esta execução pede que antes se inicie um movimento de baixa: isso confere ao banco legitimidade de se pagar não só pelos títulos comprados pelo devedor com o dinheiro emprestado, mas de quantos mais ele possuir, no montante que se revelar necessário até perfazer a quantia exequenda. Por aqui, logo se vêem as primeiras vantagens que as instituições de crédito tiram destas quebras nas cotações das bolsas. As outras vêm já abaixo. Este meio, que pode não ser a razão exclusiva das crónicas convulsões, que sacodem as bolsas, é decerto o processo mais seguido e de eficácia extrema para um ganho que reverte a favor da banca. Não foi inocente, nem constituiu um acaso o apregoado estremeção nas bolsas mundiais: ligando-se à emotividade gerada pela saída da Inglaterra, aproveitaram e não esqueceram a oportunidade de alçançar os vultosíssimos benefícios acabados de enunciar. A subida voltará às bolsas dando impressão que o capital respira saúde; com ela, valorizam-se os títulos arrecadados nas execuções movidas aos clientes relapsos. E aqui está a segunda categoria de beneficios que os bancos sacam deste jogo de sobe e desce, porque depressa surge nova corrida aos empréstimos na mira de lucros rápidos que compensem os que assim investem; quando menos se espera, lá assoma o cobrador; e o resto é um ciclo que se renova sem parar!

Descansem, pois, os que se habituaram a medir a paz e a prosperidade dos povos pelo barómetro dos mercados de capitais. As bolsas aí estão: não arredaram pé nem arredam enquanto não sofrer mudança a concepção moral dos valores económicos, ou que um cataclismo social varra a face da Terra, de uma à outra ponta, o que é bem provável de suceder antes que a primeira hipótese tome corpo.
 

Nesta quase Babel, em que alguns pretendem converter um evento que atirou as suas mentalidades para os paroxismos do delírio,  não é crível que os States passem adiante sem garantir a sobrevivência de Inglaterra. Mais que uma raça, em parte comum, há a cultura que é basicamente a mesma. De resto, seria temeridade se a América desamparasse a Inglaterra: nos blocos que, depois disto, se vão constituir, blocos que vão ser muito mais que gigantescos mercados porque se tornarão poderosíssimos campos armados para uma guerra destruidora, desprezar a Inglaterra é um pensamento louco e uma manobra suicida. Que melhor testa de ponte pode encontrar quem desejar assenhorear-se do continente europeu? Ou será o Norte de África? --- Com todas as demissões da União Europeia, em que mãos estará ele se o confronto chegar, como tudo indica que virá? No meio da fogueira que parece estar a acender-se, por onde formarão as duas Coreias? E a China? E o velho Império do Sol Nascente? Do Oriente, magnífico e sempre esfíngico, nunca se sabe. E também não podemos esquecer o poderoso Irão. Tudo isto se fecha numa grande incógnita! 

Soou a hora da Rússia? Se ela finalmente acertar com o seu milenar instinto messiânico, bem pode acontecer que se vire uma página da história do Homem, e o Mundo venha a conhecer tempos de uma paz fundada na Justiça. 

Deus o permita! 

Joaquim Maria Cymbron

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  1. Como exemplos de uma Europa unida só conheço dois casos dignos de aplauso: em primeiro lugar vem a que foi criada pela civilização romana; mais tarde, após o desaparecimento do Império Romano do Ocidente, renasce o Sacro Império Romano-Germânico com Carlos Magno. Na sua pureza católica, foi um monumental conjunto. A sua ruína começa em Westphalen, marcando o ocaso dos Habsburgos (os de Espanha e os de Áustria). Em 1806, o nefasto Napoleão Bonaparte dá-lhe morte formal e pretende, ele, tornar-se senhor da Europa. Graças a Deus, acabou derrotado. Porém, o que veio não trouxe grande coisa. A Europa, que agora se quer erguer, não seria enjeitada pelo Petit Corse. Levando em conta a dessacralização que impera há longos anos nas sociedades modernas, qualquer estratégia de união desembocará sempre na antecâmara do Estado Universal.
  2. São Gregório Magno.

JMC

segunda-feira, 6 de junho de 2016

A REVOLUÇÃO E A BURGUESIA

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Se a conta bancária não estiver desprovida e, por enquanto, não houver alerta de bomba ao pé da porta, podemos sossegar. E viva a paz podre, porque é sinal de que o nosso planeta gira livre no seu eixo, sem abalos nem sacões! Estes traços esboçam um dos aspectos que melhor correspondem às delícias do cidadão ordinário, e espelha um sentimento que, desgraçadamente, invade cada vez mais a generalidade das pessoas, deixando-as tranquilas na sua condição infraburguesa.

Por muitas vias se caminha em direcção à meta da Revolução Universal. E vários são os suportes de que ela lança mão, deles se servindo com inegável mestria. A burguesia é, hoje, uma das alas mais esforçadas e diligentes da Revolução Universal. Além disso, move efectivos com um poder que cobre todas as áreas da vida e toca os confins da Terra de um pólo ao outro. Mas nem sempre representou um perigo para a ordem temporal firmada nos princípios imperecíveis da Tradição. Nos seus primórdios, o que a burguesia se propunha alcançar nada tinha de condenável. Porém, depressa passou esse período e o pior não tardou a surgir. A crua evidência dos factos autoriza que se diga, com inteira propriedade, que o fogo da Revolução arde nas aras da burguesia.

Realmente, em sentido estrito, a burguesia formou outrora uma classe, estimável como qualquer outra. Cabia-lhe, então, uma missão no corpo social, que ela cumpriu com zelo e brio. Na heráldica dos valores, o seu timbre era a honestidade e, a esse valor, a burguesia foi fiel durante um lapso de tempo, curto mas que foi suficiente para lhe conferir pergaminhos de que podia legitimamente orgulhar-se. Até que o fluir dos anos avolumou o significado da palavra e, hoje, bem pode dizer-se que, na sua nova acepção, ela abrange um círculo de gente, cujo raio se prolonga cada vez mais. Nesse círculo, assentou arraiais uma maioria humana de difícil numeração, e bastante descaracterizada em relação ao que, na sua génese e enquanto durou o ciclo alto da sua vida florescente, a burguesia foi graças ao papel que dignamente desempenhou como classe. Para falar com rigor, a burguesia dos nossos dias já nem classe é: reduz-se a uma fatia da sociedade cuja função, exclusiva ou próxima disso, é o parasitismo. A moderna burguesia forma a imensa maioria da população dos diversos Estados, daqueles que, com maior ou menor audiência, têm uma palavra a proferir na condução dos negócios internacionais. Os outros não contam: pesam tanto como, dentro de cada quadro nacional, vale a subespécie que a decadência burguesa foi gerando. Sendo, pois, imensa a maioria burguesa (somadas a burguesia dominante e a de categoria subalterna), ela é, por consequência, uma multidão massificada como, aliás, o são todas as multidões. E só não se apresenta como uma universalidade, porque algum espaço há-de deixar aos executantes ocultos do projecto de governo de uma minoria, casta fechada e opressiva, agente de um mando despótico, a qual, se vier a triunfar, acabará por instalar o império da iniquidade. Neste plano de assalto ao poder universal, a subclasse burguesa, no seu adormecimento, revela-se de uma extrema utilidade para os objectivos supremos da fúria revolucionária: não fora a passividade em que o vulgo tombou, teríamos que a estratégia da desordem seria compelida a recuar uns passos; encontrar os pontos onde a táctica falhou; corrigir esses deslizes; e voltar à carga.

A mentalidade trivial e rasteira tende a julgar que a oposição é meio idóneo para santificar um dos antagonistas: “se atacas aquilo que é iníquo, isso deve-se a que defendes o que é justo.” O nexo de causalidade não é infalível. Entre os muitos erros que abundam nos domínios do pensamento, este é um dos mais graves. Com efeito, nunca uma briga entre dois bastardos, virá a tornar legítimo o nascimento do vencedor! O mesmo se diga do debate de ideias e dos frutos que elas produzem. Olhando bem, depressa veremos que o acto de responder a uma construção mental espúria  com outra, à qual também falta fundamento e rigor, a nada conduz, porque não se sai fora de uma rota destruidora. Podemos estar certos que é continuar submersos, sem subir à superfície luminosa da Verdade!

A que propósito vem esta chamada de atenção? É que contra a burguesia, costuma levantar-se o mito do proletariado, falso Messias que vem trazer o gozo de todos os bens materiais aos povos e com isso realizar as suas aspirações à felicidade. Perfeito disparate! Esta melopeia reedita o velho duelo entre capitalismo e socialismo: de um lado, coloca-se o primeiro que é, quase invariavelmente, burguês; do outro, situa-se o socialismo que nem sempre é tão descamisado como alguns insinuam. Contudo, nem um nem outro terá a virtude de sanar os conflitos que se propõem resolver!

A mole humana, em que a sociedade se transformou, não consegue descortinar que é, dia a dia, mais escrava de uma minoria privilegiada e aumentando em poder, incessantemente. Capitalismo ou socialismo (não importa o rótulo arvorado), a sina dessa pobre gente é curvar-se aos novos sinédrios da burguesia. Ai de quem se insurja! Nos tabuleiros políticos, mandam os amos, que ali se julgam uma espécie nova de reis, num jogo sinistro e viciado ab ouo.1 E não se descobre jeito de esfriar a sua apaixonada febre de vingança, no insano propósito de atingir o cume de algum venturoso sonho, como se, por aquela via, se pudesse regressar aos recônditos jardins do Paraíso perdido. É tão insofrida a sua ânsia de revidar que nem advertem que acabarão feitos cinza no meio do incêndio que eles próprios atearam. Entretanto, a casta insaciável mal sente uma ténue resistência ao seu nefasto império, recorre a medidas repressivas de áspera dureza, embora muito sui generis, as quais não se inibe de aplicar com uma despiedade que aproxima os seus titulares das mais ferozes bestas. Ainda assim, deste confronto, os modernos déspotas saem em manifesta desvantagem, porque carecem da coragem franca que assiste àqueles animais. Estes, nas lutas que travam pela vida, também se expõem; os que hoje dão leis, têm entre eles e os governados um exército de sicários, qual muralha que separa uns dos outros, deixando para os últimos um terreno minado, onde, a cada passo, é a morte que espreita.

Aliada à selvajaria, existe outra nota dominante no seio do poder de que aqui se trata: é o seu cinismo! Quando se ergue uma voz discordante, ou alguém toma um caminho diferente, logo o poder ordena que não lhes toquem sequer com um dedo e que simplesmente lhes façam a vida impossível. Isto, que parece menos cruento, na realidade não o é. Pode levar à morte quem sofre tal castigo. No âmago, é reflexo de uma desumana hipocrisia junto a uma grande cobardia moral. O reino da mentira, em que rastejam, não consente formalmente a pena de morte e nem permite que se fale em tortura física ou psicológica. Os impostores, a coberto da máscara de uma simulada humanidade, conhecem perfeitamente o quanto há de falso neste embuste como, de resto, é um logro tudo o que ocorre nas demais mistificações do pensamento. Este método é uma verdadeira agonia prolongada: a seu modo e observada a devida proporção, é a distanásia levada ao campo das sanções políticas: na distanásia, com tudo o que ela apresenta de censurável, difere-se escusadamente o momento de uma morte inevitável; aqui, prolonga-se barbaramente a punição, com risco de vida para o que cai em desgraça. Até alguém menos perverso, que exista no meio deles, tem obrigação de saber que tais penas, se não provocam directamente a morte física, são idóneas a produzir necessariamente ou, pelo menos, in eventu, o mesmo resultado. Portanto, em qualquer caso é visível que, deste comportamento, nenhum imperativo moral, ditado por uma dúvida insolúvel, permite o afastamento do dolo.

Burguesia, eis como vem sendo chamada a senhora dos nossos destinos. Uma vez que segura as rédeas do mando, porque não dar o nome de novos aristocratas aos seus autores? --- Extremamente simples! O conceito de inspiração revolucionária desta burguesia decadente e irreconhecível, adulterada mesmo ante aqueles que a geraram, deu à luz o exemplar teratológico que os sentidos nos oferecem. É sabido que, no grego clássico, o termo aristocracia designa o poder dos melhores. Mas o juízo de melhores, só se aceita --- frise-se de novo --- se não for esquecida a exigência da Ética, ou seja, se o poder aristocrático se orientar por uma vocação de Bem Comum e dele tiver uma recta noção. Em suma: aristocracia e equidade são indissociáveis! De contrário, a aristocracia redunda numa mixórdia inaceitável, e outra Babilónia, de rastos a seus pés, revolve-se como a medonha horda, que é, sem passado, sem presente e sem futuro. Só repousa na esperança do futuro quem conhece o seu passado, mas à massa, escrava da burguesia, que lhe interessam as origens, se é incapaz de ver-se espelhada no presente? A correspondência entre peão do totalitarismo burguês e criatura humana é cada vez mais difícil de estabelecer. Daí, o drama de cada pessoa na sociedade moderna, que arrasta a sofrimento penoso e abre um dilema: ou submissão, ou rebelião! Como a geografia humana se escreve do homem para a sociedade e não o inverso, padecendo o homem, também o corpo social não pode respirar saúde. E, por isso, não tem de surpreender que seja cada vez mais profundo o abismo que, gradualmente, se vai abrindo às mãos do poder burguês.

Vamos, então, desistir? --- Além de estólido, não seria digno!

A burguesia actual é a encarnação do relativismo político, um relativismo que a engendrou e, neste acto de lhe dar forma, desceu do pensamento especulativo ao plano da realidade palpitante da política. E assim se estende diante de nós uma paisagem onde se adensam as trevas. É, pois, um panorama lúgubre, aquele que avistamos. Lúgubre e aterrador, mas ao qual, por mais que o seu ar minaz nos intimide, não podemos fugir. E ainda bem que é impossível tal intento, porque quem dá as costas ao inimigo nunca será valoroso em grau suficiente para derrotá-lo. É positivo e necessário, pode até afirmar-se que é indeclinávelmente imperioso que olhemos de frente este relativismo letal para o combater sem descanso. Nestes instantes, é prioritário investir sobre ele com toda a lucidez do espírito e todo o vigor da acção --- um espírito formado nos padrões da mais pura ortodoxia; uma acção decidida, firme e que sabe aquilo que busca e quanto o quer, justamente porque arranca de fundamentos que se apoiam nas bases inamovíveis da verdade filosófica!

Que é mandamento divino o mandamento do perdão, não se ignora; contudo, a missão de lutar pode não o ser menos. Aqui, é o caso. E, a peleja a travar, será uma luta sem quartel: não haverá misericórdia, porque só se usa de misericórdia com quem pode ser chamado à Bem-Aventurança. Ora a guerra, que se move, é guerra ao pecado. Já se vê que, ao pecado, as portas da Glória não se abrem, porque é o próprio pecado que a elas se fechou. Na misericórdia não há, pois, lugar para o pecado. Se o pecado ali pudesse acolher-se, as palavras perderiam sentido: o conceito de misericórdia deixaria de ser o que é, para desaparecer engolido pela força impetuosa de correntes diabólicas, em cujas águas basta que a inteligência mergulhe uma só vez para rapidamente desembocar no caos do latitudinarismo e do indiferentismo. Este trânsito, em bom rigor ontológico nunca há-de concretizar-se e nem sequer se concebe, mas existe tendencialmente. Embora só formalmente poderia vir a ser alcançado em grau triunfal, se esmagasse tudo à sua volta: no dia em que esta pretensa noção, moralmente perversa e dialecticamente aberrante, viesse a apoderar-se das mentes e dos corações dos povos, mais do que está, seria uma das obras mais mortíferas do pecado. E é neste percurso criminoso, como em muitos outros ataques desferidos contra a ordem natural, que não devemos consentir.

O penitente contrito, o penitente disposto a dar satisfação pelo mal cometido, o penitente animado de metanóia, esse, sim, pode ter esperança na misericórdia divina. Mas aqui persegue-se o pecado e não o pecador. E no seio desta burguesia amaldiçoada, onde está o pecado e quem é o pecador? --- O pecado da burguesia é o somatório sempre crescente das pérfidas acções que, dentro dela, se praticam; o pecador é aquele que as realiza. Cabe então perguntar: pode tal pecador gozar de misericórdia? Já se respondeu a esta questão: como sucede a qualquer pecador, a misericórdia nunca fica surda ao mea culpa de quem se arrepende. Por isto, homem algum se atreva a condenar quem tome por pecador, não vá acontecer que esteja a interpor-se ao juízo de Deus. É este, verdadeiramente, um passo de grande temeridade e que amiúde não irá desacompanhado de uma insensatez desmedida, maxime se o Criador decreta salvar esse pecador, porque decidiu usar de misericórdia. O juízo terreno que atira ao fogo da Geena, mesmo que seja o maior pecador, e lhe chama réprobo, ou é um acto de rematada loucura, ou quem o profere, incorre em gravíssimo pecado pelo qual prontamente se deve sujeitar a uma catarse.

Declaramos guerra, recorde-se, ao pecado encarnado na burguesia ateia e agnóstica e nunca ao burguês pecador, de quem se aguarda um movimento de conversão. Seria de extrema imprudência e, ao mesmo tempo, de uma penetrante injustiça, pôr tudo no mesmo prato e tratar por igual duas realidades distintas. Esta separação requer um grande esforço de equilíbrio e muita cautela na sua aplicação. Efectivamente, se é facílimo observar que pecado e pecador não são a mesma coisa, na prática, já não resulta tarefa simples respeitar a distância, que há entre estas duas categorias. Sodoma e Gomorra pereceram no fogo porque, em seus muros, não se contava o suficiente número de justos, que levaria Deus a poupá-las ao castigo que havia decretado. Efectivamente, nestas duas cidades bíblicas, os pecadores não se apartavam do pecado nefando que bradava aos Céus, pelo que a sentença divina caiu fulminante. De todas as maneiras, conquanto para lá se vá andando, por ora ainda não é este o quadro que nos ameaça mais de perto. Todavia, porque a ameaça não é um mero fantasma, assustador mas inofensivo, constituindo antes o aviso de que uma hoste devastadora avança, por isso, insista-se, é que havemos de nos lembrar que pecado e pecador não se confundem, daí tirando as consequências que se impõem.

Que queremos, afinal? --- Descrevê-lo não custa; dar-lhe corpo é outra obra! Mas porque a Tradição manda que a reflexão preceda a acção, aproveitemos a ajuda e comecemos por onde é certo que o façamos:

Dá isto que a reflexão é aquela operação que há-de vir antes da acção, comandando-a e, dessa forma, evitando que esta a molde. Este é o processo mais adequado à natureza do homem, que se distingue dos restantes seres do reino animal por ter uma consciência reflexiva: enquanto o bruto apenas conhece, o homem não só conhece, mas também sabe que conhece. Se o pensamento não norteasse a acção, bem depressa o homem pensaria conforme vive e deixaria de se esforçar por andar em sentido contrário como lhe cabe fazer. Ora esta inversão de rumo é, no fim de contas, uma das notas características dos tempos que vivemos, e constitui a distorção de toda a linha do que deve ser o nosso comportamento.

Assentou-se, pois, que está primeiro reflectir e só depois agir. Essa reflexão encontra-se fortemente unida à matriz de pensamento que cada um adopta. E a que matriz nos devemos ligar neste combate ao pecado que é a burguesia ora reinante, a burguesia gerada nas convulsões do individualismo político e filosófico.

A nossa doutrina aponta-nos um objectivo: pôr a ordem temporal em consonância com a lei natural, subordinando-a sem quaisquer respeitos humanos à lei divina porque a lei natural é «(…) participatio legis aeternae in rationali creatura.»2 E da lei eterna que mais acrescentar, quando ela é  aquela lei de cuja Verdade veio Cristo dar testemunho?3 Harmonizar política e religião não é tarefa ciclópica, pelo menos no grau que muitos julgam só porque alguns lhe são avessos por má fé, outros a encaram com cepticismo e os restantes, sem se saber porquê, temem-na.

Como desde os primitivos tempos em que a sua voz principiou a ouvir-se, o magistério eclesiástico, escorado por uma Tradição ininterrupta e apoiado nas Sagradas Escrituras, vem-se revelando firme na defesa do princípio de que não é possível a salvação eterna para quem, consciente de que a Igreja é de instituição divina, não obstante isto, decide permanecer fora do seu grémio.4 Mas nem daqui se parta para cavar um fosso intransponível entre religião e política: uma ordem temporal informada pelos preceitos espirituais do Catolicismo não apresenta a mais pequena semelhança com a obrigatoriedade de seguir um culto religioso. Conversão forçada é fonte de desordem, porque equivale a multiplicação de ocasiões de escândalo, um escândalo que será menor em malícia do que o causado pelo infiltrado no meio dos fiéis, mas que nem por isso é menos escândalo. No entanto, o que se mostra inegável é que uma política confessionalmente católica pode ser veículo de santificação para os súbditos da comunidade que se rege por essa política. Per accidens, esse efeito benfazejo pode mesmo cobrir os que não professam a fé católica. Acredite-se ou não, o certo é que o Espírito Santo actua de diversas formas e a Graça só não toca aquele que directa e inequivocamente a repele. Quem isto não concede, quer arrastar-nos à perdição da sua indiferença latitudinária. E, se repararmos mais demoradamente, veremos que o fazem sem deixar opção. Do princípio ao fim da sua acção, fica patente a contradição do relativismo que apregoam, sob a capa de uma tolerância que não têm. Essa tolerância não é nem generosa, nem avara, porque o que nela há é inflexibilidade.

Acusam-nos de absolutistas, no pensamento e em moral? --- Não temos de nos indignar porque não é calúnia! E escusado será que nos aflijamos porque até o relativista é absolutista, sob pena de não ser nada se não admitir que é absolutamente relativista. Chamam-nos radicais? --- Se isso diz respeito à certeza que pomos nos atributos transcendentais do Ser e na segurança que recebemos dos primeiros princípios metafísicos e das causas últimas, certeza e segurança que excluem tudo o que se lhes oponha, também não mentem! Quer quando nos acoimam de absolutistas; quer ao colar-nos o labéu de radicais, em ambos os momentos, os que neste estilo falam, só nos honram. Consequentemente, pois, não nos dê cuidado o conceito que formam de nós e pensem aquilo que tiverem na vontade. Mas estejamos atentos a este cenário bem palpável:

A burguesia tem uma dupla intenção: na primeira vertente, desenha-se a cupidez de exercer um domínio à escala mundial; a outra, traz consigo sinais de uma desgraça, mais ou menos próxima e de difícil cura. Porém, não combatamos a burguesia pelo seu apetite de domínio universal. Não é o fomes imperii que justifica o ataque à burguesisa, mas sim o finis operantis. Seria forte tolice ir à luta se a burguesia apenas quisesse fechar o binómio: um planeta, um único governo. Não é novo este fenómeno:5 até príncipes católicos sonharam uma soberania, que galgasse léguas sobre léguas de território para além das marcas fronteiriças, e cruzasse oceanos que mais pareciam não ter fim. É lei inexorável do fluir histórico. Povo que nunca seguiu a voz do expansionismo, talvez porque nem sequer a ouviu, é povo que fenece antes de desabrochar. A nossa Pátria é exemplo claro de vocação expansionista: de Oriente a Ocidente, não havia franja de terra, afagada pelo calor do Sol, que não pagasse tributo à Coroa de Portugal.6 Quando o fogo de conquista arrefeceu, com ele também se foi apagando o lume da evangelização que transportámos.

De per se, a sedução do mando não é um mal ainda que seja intenso esse apelo e o poder que dali sai. Se esse poder serve o homem, nada impede incluí-lo na categoria de poder legítimo. Estar ao serviço do homem não é o mesmo que satisfazer caprichos ou vis paixões. Tendo presente a velha lição que S. Paulo nos deixou, só será legítimo o poder político que crie condições que permitam ao homem viver sem que se prenda ao que não lhe convém e também de nada se faça escravo.7 Dá isto que poder legítimo é aquele que confessa a Verdade e a Bondade do Ser,8 e obedece a estes valores. Coisa impossível de suceder à burguesia, que aqui se combate, a qual é, por essência, uma forma de estar na vida, em que se cultiva o agnosticismo.

Temos, assim, que o poder da burguesia é temível, não por ser um poder colossal, mas porque é um poder que não está rectamente ordenado. Não há motivo que possa fundamentar tanto o exercício de uma defesa: colectiva, desde que a mesma se congregue sob o mando de um chefe e se mostre animada por uma finalidade justa; individual, na condição de aquele que resiste a levar a cabo com moderação e sensatez. Num e noutro caso, requer-se a prudência na sua qualidade de virtude moral que o é por excelência.


Joaquim Maria Cymbron
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  1. Quem são estes amos? Uns, adivinham-se; os que restam, nem tanto. Pelo meio, esses amos, os de rosto visível e os que o trazem velado, vão-se sentando em tronos  feitos de oiro, um oiro arrancado ao ventre da Terra, à custa do suor de muita gente escravizada. Noutro texto, bem mais curto que este, também denunciei a burguesia como inimiga da sociedade humana, e apontei a ligação das suas mais altas camadas ao Sionismo apátrida e internacional --- http://legitimismo.blogspot.pt/2008/10/burguesia-o-inimigo.html.
  2. Summa Theologica, I-II, q. 91, a. 2.
  3. Io. 18, 37.
  4. Constituição LG, 14.
  5. Há reflexos na literatura. Um, de realce, é o famoso poema, que leva por título O Quinto Império. Ninguém desconhece o nome do autor --- Fernando Pessoa. A estética literária de Pessoa só não comove a matéria. Contudo, é complexa a sua personalidade. Apesar disso, não deixa de ser curiosa a linha por ele traçada dos quatro tempos que «se vão para onde vai toda idade.» É esta a sucessão: Grécia, Roma, Cristandade, Europa. É facto que a Europa, depois de Westphalia, vem substituir a Cristandade, passando o governo do Mundo a essa Europa, cada vez mais secularizada. Será a burguesia que vem viver a verdade esperada por Pessoa? Pese embora, o que havia de esotérico e abstruso no carácter de Pessoa, custa a crer que fosse esta a mensagem do poeta. Ou viria ele afirmar que será precisamente a vitória sobre a burguesia o tão desejado Quinto Império? Deitemos o fardo de deslindar esta melindrosa questão, para cima dos ombros de quantos são apreciadores da cabala. O que nos há-de ocupar são os preparativos para a luta, e não se é o quinto ou o sexto império que vai chegar. Ou até se mais ainda virão, antes que se dê a escatologia. Isto de pouco monta porque o triunfo será do último que vier. É um dado certo fide atque ratione.
  6. Lus., I, 8, vv. 1-4.
  7. I Cor. 6, 12-20.
  8. Outro grande cultor de um império redentor, o P.e António Vieira, anunciava a chegada de uma ordem universal, à qual já chamara Quinto Império. Para o grande jesuíta, esse império é o Regnum Christi et Christianorum (ou Sanctorum); será um império temporal [«(…) et omnes reges servient ei et obedient.»]; e, além de temporal, é espiritual «porque o Reino de Cristo verdadeiramente era deste Mundo e de todo o Mundo, e só não tinha os acidentes da vaidade e falsa grandeza com que se sutentam os outros reinos do Mundo.» (História do Futuro, liv. II, maxime cap. I-V).
 JMC