O texto, que segue, foi escrito há bastante tempo num jornal diário (a 27 de Setembro de 1979). Houve uma alteração de fundo, reparando um erro em que, por descuido, caí. No mais, as mudanças são poucas e meramente formais.
A substância não sofreu modificação. Ficou intacta, porque infelizmente se confirmou o que eu previa.
Dirijo-me aos Portugueses. Apelo para a sua capacidade de compreensão. E conto que alguns, por uma questão de equidade, se dignarão ler-me até final --- depois, pesem e julguem as minhas palavras.
Se escrevo é, obviamente, porque desejo convencer: não escondo esse interesse. Mas desde já friso que a força do meu pensamento não depende de cifras numéricas. A demagogia nunca foi minha moeda de troca: seria infinitamente triste e mesmo ignóbil que cedesse à tentação baixa de a manejar, agora, em que uma vez mais lanço um brado de alerta junto da consciência dos filhos legítimos da Nação, à qual também me orgulho de pertencer.
O acerto ou desacerto do que aqui disser, encontrar-se-á na própria estrutura dos meus raciocínios e jamais no maior ou menor aplauso que eles venham a obter. Admitir isto seria a inversão completa da filosofia dos valores. Rejeito ipso facto toda a linha subversiva que, para não retroceder mais, do que até ao dealbar da Idade Moderna se instalou com Lutero, que anatematizou a razão humana com um epíteto obsceno, passando por Rousseau, o qual classificou o homem que medita como um animal depravado e chamou ao estado reflexivo um estado antinatural, tocando ainda em Kant, que tornou o sujeito norma da verdade, para acabar em Nietzsche, cujo sonhado Super-Homem seria padrão da verdade e do erro.
Repudio todos estes sistemas de moral que consideram a coisa boa por ser apetecida ou caem no relativismo agnóstico, para abraçar a proposição da escolástica: devemos apetecer o que é bom. Isto traduz uma profissão de fé, e de fé católica, acentuo-o, que actuará sempre como norma negativa, quer dizer, não me indicando o que hei-de afirmar, pautará no entanto o meu pensamento filosófico e político. São estes os princípios que me norteiam e em resultado dos quais não posso prosseguir sem uma violenta diatribe no que respeita à sorte que nos coube e à situação a que chegámos.
Portugal corre risco de morte debaixo do perigo quotidiano representado pela partidocracia, uma das cabeças dessa hidra letal que é a Democracia. Monstro ou fantasma, não sei bem com quem me tenho a haver no campo das sensações empíricas. Se de um fantasma se trata, não oculto que é, na verdade, um fantasma sui generis --- este não apavora as pessoas: sedu-las; não arrasta grilhões, mas acorrenta povos inteiros que se julgam livres.
Vem de molde analisar o trecho com que abre o Manifesto Comunista: «Um espectro ameaça a Europa: o espectro do comunismo». Chamando a atenção para o parentesco semântico, entre fantasma e espectro, registo aquele passo do Manifesto porque entendo que a prática democrática tende, na sua lógica, para toda a espécie de totalitarismos, de preferência o comunista.
Mas que é, afinal, a Democracia? Dá-se este nome a um sistema de governo que se exerce segundo um método dialéctico, em que o número desempenha papel de relevo: a maioria dita a sua vontade à minoria. Identifica-se assim a vontade, quando não o capricho, com um discernimento correcto, o que leva a cair no erro que, acima, apontei: o bem, que deve ser desejado por todos, acaba flutuando ao sabor do apetite de cada votante. Mais: como a maioria é composta pelos menos dotados em tudo, a Democracia redunda no império, em toda a linha, de uma notória mediocridade.
Urge desmistificar os que trapaceiam com a política e desgraçam as nações. O próprio Rousseau, patriarca das modernas democracias, não escondeu o seguinte: «A prendre le terme dans la rigueur de l' acception, il n' a jamais existé de véritable démocratie, et il n' en existira jamais. Il est contre l' ordre naturel que le grand nombre gouverne et que le petit soit gouverné.» (1)
Outro dos delitos da Democracia, consiste em tentar colocar a sua legitimidade numa imaginária soberania popular. Este é um dos seus mais venenosos embustes, cujos arautos bem se esforçam, com os mais repugnantes ardis, por ver coroado de êxito. Fazem-no com esperteza, mas uma esperteza saloia; inteligência, nem ponta dela.
A causa remota da soberania é Deus. Àqueles que se mostram capazes de dirigir (e que saem do povo, sem dúvida), podemos considerá-los causa próxima por quem Deus actua. E, por último, temos o povo que apenas condiciona a soberania.
Não desconheço um importantíssimo trecho de Suárez, a respeito do poder político. Vou transcrevê-lo pela sua acuidade:
«Secundo assero hanc potestatem non resultare in humana natura, donec homines in unam comunitatem perfectam congregantur, et politice uniantur. Probatur, quia haec potestas non est in singulis hominibus diuisim sumptis, nec in collectione, vel multitudine eorum quasi confuse, et sine ordine, et unione membrorum in unum corpus; ergo prius est tale corpus politicum constitui, quam sit in hominibus talis potestas, quia prius esse debet subiectum potestatis, quam potestas ipsa, saltem ordine naturae.» (2)
Afigurar-se-á ser este um argumento de peso que me poderiam contrapor. Lamento, contudo, dizer que sem qualquer quebra de respeito pelo imenso talento do jesuíta espanhol, que em muitos pontos e nos diversos campos a que se estendeu o seu imenso saber, acato escrupulosamente, não descortino em todo aquele monumental tratado uma só passagem que explique «quomodo efficiunt unum corpus mysticum» (3), sine uno capite quod indiget, o que me leva aqui a afastar-me do ilustre granadino
Essa cabeça de que precisa a comunidade política é a chave que abre exactamente um dos caminhos para a solução desta delicada matéria. O motivo de todas estas confusões reside no facto de não se proceder à análise correcta dos atributos que rodeiam o poder político. Da visão distorcida do problema, quando não da absoluta cegueira sobre o mesmo, é que derivam todos os males.
Por isto mesmo, não me inibo de continuar na liça denunciando a necessidade imperiosa do derrube desta ordem que arrastou a Nação para uma catástrofe sem paralelo em todo o seu longo passado, e que a degrada cada vez mais.
Joaquim Maria Cymbron
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- Du Contrat Social, Liv. III, Chap. IV
- De Legibus, Lib. III, Cap. III, 6
- Ib., Lib. III, Cap.II, 4
JMC