Se a conta bancária não estiver desprovida e, por enquanto, não houver alerta de bomba ao pé da porta, podemos sossegar. E viva a paz podre, porque é sinal de que o nosso planeta gira livre no seu eixo, sem abalos nem sacões! Estes traços esboçam um dos aspectos que melhor correspondem às delícias do cidadão ordinário, e espelha um sentimento que, desgraçadamente, invade cada vez mais a generalidade das pessoas, deixando-as tranquilas na sua condição infraburguesa.
Por muitas vias se caminha em direcção à meta da Revolução Universal. E vários são os
suportes de que ela lança mão, deles se servindo com inegável mestria. A
burguesia é, hoje, uma das alas mais esforçadas e diligentes da Revolução Universal. Além disso, move
efectivos com um poder que cobre todas as áreas da vida e toca os confins da
Terra de um pólo ao outro. Mas nem sempre representou um perigo para a ordem
temporal firmada nos princípios imperecíveis da Tradição. Nos seus primórdios, o que a burguesia se propunha
alcançar nada tinha de condenável. Porém, depressa passou esse período e o pior
não tardou a surgir. A crua evidência dos factos autoriza que se diga, com
inteira propriedade, que o fogo da Revolução
arde nas aras da burguesia.
Realmente, em sentido estrito, a burguesia formou outrora
uma classe, estimável como qualquer outra. Cabia-lhe, então, uma missão no
corpo social, que ela cumpriu com zelo e brio. Na heráldica dos valores, o seu
timbre era a honestidade e, a esse
valor, a burguesia foi fiel durante um lapso de tempo, curto mas que foi
suficiente para lhe conferir pergaminhos de que podia legitimamente
orgulhar-se. Até que o fluir dos anos avolumou o significado da palavra e,
hoje, bem pode dizer-se que, na sua nova acepção, ela abrange um círculo de
gente, cujo raio se prolonga cada vez mais. Nesse círculo, assentou arraiais
uma maioria humana de difícil numeração, e bastante descaracterizada em relação
ao que, na sua génese e enquanto durou o ciclo alto da sua vida florescente, a
burguesia foi graças ao papel que dignamente desempenhou como classe. Para
falar com rigor, a burguesia dos nossos dias já nem classe é: reduz-se a uma
fatia da sociedade cuja função, exclusiva ou próxima disso, é o parasitismo. A
moderna burguesia forma a imensa maioria da população dos diversos Estados,
daqueles que, com maior ou menor audiência, têm uma palavra a proferir na
condução dos negócios internacionais. Os outros não contam: pesam tanto como,
dentro de cada quadro nacional, vale a subespécie que a decadência burguesa foi
gerando. Sendo, pois, imensa a maioria burguesa (somadas a burguesia dominante
e a de categoria subalterna), ela é, por consequência, uma multidão massificada
como, aliás, o são todas as multidões. E só não se apresenta como uma
universalidade, porque algum espaço há-de deixar aos executantes ocultos do
projecto de governo de uma minoria, casta fechada e opressiva, agente de um
mando despótico, a qual, se vier a triunfar, acabará por instalar o império da
iniquidade. Neste plano de assalto ao poder universal, a subclasse burguesa, no
seu adormecimento, revela-se de uma extrema utilidade para os objectivos
supremos da fúria revolucionária: não fora a passividade em que o vulgo tombou,
teríamos que a estratégia da desordem seria compelida a recuar uns passos;
encontrar os pontos onde a táctica falhou; corrigir esses deslizes; e voltar à
carga.
A mentalidade trivial e rasteira tende a julgar que a
oposição é meio idóneo para santificar um dos antagonistas: “se atacas aquilo
que é iníquo, isso deve-se a que defendes o que é justo.” O nexo de causalidade
não é infalível. Entre os muitos erros que abundam nos domínios do pensamento,
este é um dos mais graves. Com efeito, nunca uma briga entre dois bastardos,
virá a tornar legítimo o nascimento do vencedor! O mesmo se diga do debate de
ideias e dos frutos que elas produzem. Olhando bem, depressa veremos que o acto
de responder a uma construção mental espúria
com outra, à qual também falta fundamento e rigor, a nada conduz, porque
não se sai fora de uma rota destruidora. Podemos estar certos que é continuar
submersos, sem subir à superfície luminosa da Verdade!
A que propósito vem esta chamada de atenção? É que contra
a burguesia, costuma levantar-se o mito do proletariado, falso Messias que vem
trazer o gozo de todos os bens materiais aos povos e com isso realizar as suas
aspirações à felicidade. Perfeito disparate! Esta melopeia reedita o velho
duelo entre capitalismo e socialismo: de um lado, coloca-se o primeiro que é,
quase invariavelmente, burguês; do outro, situa-se o socialismo que nem sempre
é tão descamisado como alguns insinuam. Contudo, nem um nem outro terá a
virtude de sanar os conflitos que se propõem resolver!
A mole humana, em que a sociedade se transformou, não
consegue descortinar que é, dia a dia, mais escrava de uma minoria privilegiada
e aumentando em poder, incessantemente. Capitalismo ou socialismo (não importa
o rótulo arvorado), a sina dessa pobre gente é curvar-se aos novos sinédrios da
burguesia. Ai de quem se insurja! Nos tabuleiros políticos, mandam os amos, que
ali se julgam uma espécie nova de reis, num jogo sinistro e viciado ab ouo.1 E não se descobre
jeito de esfriar a sua apaixonada febre de vingança, no insano propósito de
atingir o cume de algum venturoso sonho, como se, por aquela via, se pudesse
regressar aos recônditos jardins do Paraíso perdido. É tão insofrida a sua ânsia
de revidar que nem advertem que acabarão feitos cinza no meio do incêndio que
eles próprios atearam. Entretanto, a casta insaciável mal sente uma ténue resistência
ao seu nefasto império, recorre a medidas repressivas de áspera dureza, embora
muito sui generis, as quais não se
inibe de aplicar com uma despiedade que aproxima os seus titulares das mais
ferozes bestas. Ainda assim, deste confronto, os modernos déspotas saem em
manifesta desvantagem, porque carecem da coragem franca que assiste àqueles
animais. Estes, nas lutas que travam pela vida, também se expõem; os que hoje
dão leis, têm entre eles e os governados um exército de sicários, qual muralha
que separa uns dos outros, deixando para os últimos um terreno minado, onde, a
cada passo, é a morte que espreita.
Aliada à selvajaria, existe outra nota dominante no seio
do poder de que aqui se trata: é o seu cinismo! Quando se ergue uma voz
discordante, ou alguém toma um caminho diferente, logo o poder ordena que não
lhes toquem sequer com um dedo e que simplesmente lhes façam a vida impossível.
Isto, que parece menos cruento, na realidade não o é. Pode levar à morte quem
sofre tal castigo. No âmago, é reflexo de uma desumana hipocrisia junto a uma
grande cobardia moral. O reino da mentira, em que rastejam, não consente
formalmente a pena de morte e nem permite que se fale em tortura física ou
psicológica. Os impostores, a coberto da máscara de uma simulada humanidade,
conhecem perfeitamente o quanto há de falso neste embuste como, de resto, é um
logro tudo o que ocorre nas demais mistificações do pensamento. Este método é
uma verdadeira agonia prolongada: a seu modo e observada a devida proporção, é
a distanásia levada ao campo das sanções políticas: na distanásia, com tudo o que ela apresenta de censurável, difere-se
escusadamente o momento de uma morte inevitável; aqui, prolonga-se
barbaramente a punição, com risco de vida para o que cai em desgraça. Até alguém menos
perverso, que exista no meio deles, tem obrigação de saber que tais penas, se
não provocam directamente a morte física, são idóneas a produzir
necessariamente ou, pelo menos, in eventu,
o mesmo resultado. Portanto, em qualquer caso é visível que, deste
comportamento, nenhum imperativo moral, ditado por uma dúvida insolúvel, permite o afastamento do dolo.
Burguesia, eis como vem sendo chamada a senhora dos
nossos destinos. Uma vez que segura as rédeas do mando, porque não dar o nome
de novos aristocratas aos seus autores? --- Extremamente simples! O conceito de
inspiração revolucionária desta burguesia decadente e irreconhecível,
adulterada mesmo ante aqueles que a geraram, deu à luz o exemplar teratológico
que os sentidos nos oferecem. É sabido que, no grego clássico, o termo
aristocracia designa o poder dos melhores. Mas o juízo de melhores, só se
aceita --- frise-se de novo --- se não for esquecida a exigência da Ética, ou
seja, se o poder aristocrático se orientar por uma vocação de Bem Comum e dele
tiver uma recta noção. Em suma: aristocracia e equidade são indissociáveis! De
contrário, a aristocracia redunda numa mixórdia inaceitável, e outra Babilónia,
de rastos a seus pés, revolve-se como a medonha horda, que é, sem passado, sem
presente e sem futuro. Só repousa na esperança do futuro quem conhece o seu
passado, mas à massa, escrava da burguesia, que lhe interessam as origens, se é
incapaz de ver-se espelhada no presente? A correspondência entre peão do
totalitarismo burguês e criatura humana é cada vez mais difícil de estabelecer.
Daí, o drama de cada pessoa na sociedade moderna, que arrasta a sofrimento
penoso e abre um dilema: ou submissão, ou rebelião! Como a geografia humana se
escreve do homem para a sociedade e não o inverso, padecendo o homem, também o
corpo social não pode respirar saúde. E, por isso, não tem de surpreender que
seja cada vez mais profundo o abismo que, gradualmente, se vai abrindo às mãos
do poder burguês.
Vamos, então, desistir? --- Além de estólido, não seria
digno!
A burguesia actual é a encarnação do relativismo
político, um relativismo que a engendrou e, neste acto de lhe dar forma, desceu
do pensamento especulativo ao plano da realidade palpitante da política. E
assim se estende diante de nós uma paisagem onde se adensam as trevas. É, pois,
um panorama lúgubre, aquele que avistamos. Lúgubre e aterrador, mas ao qual,
por mais que o seu ar minaz nos intimide, não podemos fugir. E ainda bem que é
impossível tal intento, porque quem dá as costas ao inimigo nunca será valoroso em
grau suficiente para derrotá-lo. É positivo e necessário, pode até afirmar-se
que é indeclinávelmente imperioso que olhemos de frente este relativismo letal
para o combater sem descanso. Nestes instantes, é prioritário investir sobre
ele com toda a lucidez do espírito e todo o vigor da acção --- um espírito
formado nos padrões da mais pura ortodoxia; uma acção decidida, firme e que
sabe aquilo que busca e quanto o quer, justamente porque arranca de fundamentos
que se apoiam nas bases inamovíveis da verdade filosófica!
Que é mandamento divino o mandamento do perdão, não se
ignora; contudo, a missão de lutar pode não o ser menos. Aqui, é o caso. E, a
peleja a travar, será uma luta sem quartel: não haverá misericórdia, porque só
se usa de misericórdia com quem pode ser chamado à Bem-Aventurança. Ora a
guerra, que se move, é guerra ao pecado. Já se vê que, ao pecado, as portas da
Glória não se abrem, porque é o próprio pecado que a elas se fechou. Na
misericórdia não há, pois, lugar para o pecado. Se o pecado ali pudesse acolher-se,
as palavras perderiam sentido: o conceito de misericórdia deixaria de ser o que
é, para desaparecer engolido pela força impetuosa de correntes diabólicas, em cujas águas
basta que a inteligência mergulhe uma só vez para rapidamente desembocar no
caos do latitudinarismo e do indiferentismo. Este trânsito, em bom rigor
ontológico nunca há-de concretizar-se e nem sequer se concebe, mas existe
tendencialmente. Embora só formalmente poderia vir a ser alcançado em grau
triunfal, se esmagasse tudo à sua volta: no dia em que esta pretensa noção,
moralmente perversa e dialecticamente aberrante, viesse a apoderar-se das
mentes e dos corações dos povos, mais do que está, seria uma das obras mais
mortíferas do pecado. E é neste percurso criminoso, como em muitos outros ataques
desferidos contra a ordem natural, que não devemos consentir.
O penitente contrito, o penitente disposto a dar
satisfação pelo mal cometido, o penitente animado de metanóia, esse, sim, pode ter esperança na misericórdia divina. Mas
aqui persegue-se o pecado e não o pecador. E no seio desta burguesia
amaldiçoada, onde está o pecado e quem é o pecador? --- O pecado da burguesia é
o somatório sempre crescente das pérfidas acções que, dentro dela, se praticam;
o pecador é aquele que as realiza. Cabe então perguntar: pode tal pecador gozar
de misericórdia? Já se respondeu a esta questão: como sucede a qualquer
pecador, a misericórdia nunca fica surda ao mea
culpa de quem se arrepende. Por isto, homem algum se atreva a condenar quem
tome por pecador, não vá acontecer que esteja a interpor-se ao juízo de Deus. É
este, verdadeiramente, um passo de grande temeridade e que amiúde não irá
desacompanhado de uma insensatez desmedida, maxime
se o Criador decreta salvar esse pecador, porque decidiu usar de
misericórdia. O juízo terreno que atira ao fogo da Geena, mesmo que seja o maior pecador, e lhe chama réprobo, ou é um
acto de rematada loucura, ou quem o profere, incorre em gravíssimo pecado pelo
qual prontamente se deve sujeitar a uma catarse.
Declaramos guerra, recorde-se, ao pecado encarnado na
burguesia ateia e agnóstica e nunca ao burguês pecador, de quem se aguarda um
movimento de conversão. Seria de extrema imprudência e, ao mesmo tempo, de uma
penetrante injustiça, pôr tudo no mesmo prato e tratar por igual duas realidades
distintas. Esta separação requer um grande esforço de equilíbrio e muita
cautela na sua aplicação. Efectivamente, se é facílimo observar que pecado e
pecador não são a mesma coisa, na prática, já não resulta tarefa simples
respeitar a distância, que há entre estas duas categorias. Sodoma e Gomorra
pereceram no fogo porque, em seus muros, não se contava o suficiente número de
justos, que levaria Deus a poupá-las ao castigo que havia decretado. Efectivamente,
nestas duas cidades bíblicas, os pecadores não se apartavam do pecado nefando
que bradava aos Céus, pelo que a sentença divina caiu fulminante. De todas as
maneiras, conquanto para lá se vá andando, por ora ainda não é este o quadro
que nos ameaça mais de perto. Todavia, porque a ameaça não é um mero fantasma,
assustador mas inofensivo, constituindo antes o aviso de que uma hoste
devastadora avança, por isso, insista-se, é que havemos de nos lembrar que
pecado e pecador não se confundem, daí tirando as consequências que se impõem.
Que queremos, afinal? --- Descrevê-lo não custa; dar-lhe
corpo é outra obra! Mas porque a Tradição
manda que a reflexão preceda a acção, aproveitemos a ajuda e comecemos por onde
é certo que o façamos:
Dá isto que a reflexão é aquela operação que há-de
vir antes da acção, comandando-a e, dessa forma, evitando que esta a molde.
Este é o processo mais adequado à natureza do homem, que se distingue dos
restantes seres do reino animal por ter uma consciência reflexiva: enquanto o
bruto apenas conhece, o homem não só conhece, mas também sabe que conhece. Se o
pensamento não norteasse a acção, bem depressa o homem pensaria conforme vive e deixaria de se esforçar por andar em sentido contrário como lhe cabe fazer. Ora esta inversão de rumo é, no fim de contas, uma das
notas características dos tempos que vivemos, e constitui a distorção de
toda a linha do que deve ser o nosso comportamento.
Assentou-se, pois, que está primeiro reflectir e só
depois agir. Essa reflexão encontra-se fortemente unida à matriz de pensamento que
cada um adopta. E a que matriz nos devemos ligar neste combate ao pecado que é
a burguesia ora reinante, a burguesia gerada nas convulsões do individualismo
político e filosófico.
A nossa doutrina aponta-nos um objectivo: pôr a ordem
temporal em consonância com a lei natural, subordinando-a sem quaisquer
respeitos humanos à lei divina porque a lei natural é «(…) participatio legis aeternae in rationali creatura.»2 E da lei eterna que mais acrescentar, quando ela é aquela lei de cuja Verdade veio Cristo dar
testemunho?3 Harmonizar política e religião não é tarefa
ciclópica, pelo menos no grau que muitos julgam só porque alguns lhe são
avessos por má fé, outros a encaram com cepticismo e os restantes, sem se saber
porquê, temem-na.
Como desde os primitivos tempos em que a sua voz
principiou a ouvir-se, o magistério eclesiástico, escorado por uma Tradição
ininterrupta e apoiado nas Sagradas Escrituras, vem-se revelando firme na
defesa do princípio de que não é possível a salvação eterna para quem,
consciente de que a Igreja é de instituição divina, não obstante isto, decide
permanecer fora do seu grémio.4 Mas nem daqui se parta
para cavar um fosso intransponível entre religião e política: uma ordem
temporal informada pelos preceitos espirituais do Catolicismo não apresenta a
mais pequena semelhança com a obrigatoriedade de seguir um culto religioso.
Conversão forçada é fonte de desordem, porque equivale a multiplicação de
ocasiões de escândalo, um escândalo que será menor em malícia do que o causado
pelo infiltrado no meio dos fiéis, mas que nem por isso é menos escândalo. No entanto, o
que se mostra inegável é que uma política confessionalmente católica pode ser
veículo de santificação para os súbditos da comunidade que se rege por essa
política. Per accidens, esse efeito
benfazejo pode mesmo cobrir os que não professam a fé católica. Acredite-se ou
não, o certo é que o Espírito Santo actua de diversas formas e a Graça só não
toca aquele que directa e inequivocamente a repele. Quem isto não concede, quer
arrastar-nos à perdição da sua indiferença latitudinária. E, se repararmos mais
demoradamente, veremos que o fazem sem deixar opção. Do princípio ao fim da sua
acção, fica patente a contradição do relativismo que apregoam, sob a capa de
uma tolerância que não têm. Essa tolerância não é nem generosa, nem avara, porque o que nela há é
inflexibilidade.
Acusam-nos de absolutistas, no pensamento e em moral? ---
Não temos de nos indignar porque não é calúnia! E escusado será que nos
aflijamos porque até o relativista é absolutista, sob pena de não ser nada se
não admitir que é absolutamente relativista. Chamam-nos radicais? --- Se isso
diz respeito à certeza que pomos nos atributos transcendentais do Ser e na segurança que recebemos dos
primeiros princípios metafísicos e das causas últimas, certeza e segurança que excluem
tudo o que se lhes oponha, também não mentem! Quer quando nos acoimam de
absolutistas; quer ao colar-nos o labéu de radicais, em ambos os momentos, os
que neste estilo falam, só nos honram. Consequentemente, pois, não nos dê
cuidado o conceito que formam de nós e pensem aquilo que tiverem na vontade.
Mas estejamos atentos a este cenário bem palpável:
A burguesia tem uma dupla intenção: na primeira vertente,
desenha-se a cupidez de exercer um domínio à escala mundial; a outra, traz
consigo sinais de uma desgraça, mais ou menos próxima e de difícil cura. Porém,
não combatamos a burguesia pelo seu apetite de domínio universal. Não é o fomes imperii que justifica o ataque à
burguesisa, mas sim o finis
operantis. Seria forte tolice ir à luta se a burguesia apenas quisesse
fechar o binómio: um planeta, um único governo. Não é novo este fenómeno:5 até
príncipes católicos sonharam uma soberania, que galgasse léguas sobre léguas de
território para além das marcas fronteiriças, e cruzasse oceanos que mais
pareciam não ter fim. É lei inexorável do fluir histórico. Povo que nunca
seguiu a voz do expansionismo, talvez porque nem sequer a ouviu, é povo que
fenece antes de desabrochar. A nossa Pátria é exemplo claro de vocação
expansionista: de Oriente a Ocidente, não havia franja de terra, afagada pelo calor do Sol, que não pagasse tributo à Coroa de Portugal.6 Quando o fogo de conquista arrefeceu, com ele também se foi apagando o
lume da evangelização que transportámos.
De per se, a
sedução do mando não é um mal ainda que seja intenso esse apelo e o poder que
dali sai. Se esse poder serve o homem, nada impede incluí-lo na categoria de
poder legítimo. Estar ao serviço do homem não é o mesmo que satisfazer
caprichos ou vis paixões. Tendo presente a velha lição que S. Paulo nos deixou,
só será legítimo o poder político que crie condições que permitam ao
homem viver sem que se prenda ao que não lhe convém e também de nada se faça
escravo.7 Dá isto que poder legítimo é aquele que
confessa a Verdade e a Bondade do Ser,8 e
obedece a estes valores. Coisa
impossível de suceder à burguesia, que aqui se combate, a qual é, por essência,
uma forma de estar na vida, em que se cultiva o agnosticismo.
Temos, assim, que o poder da burguesia é temível, não por
ser um poder colossal, mas porque é um poder que não está rectamente ordenado.
Não há motivo que possa fundamentar tanto o exercício de uma defesa: colectiva,
desde que a mesma se congregue sob o mando de um chefe e se mostre animada por
uma finalidade justa; individual, na condição de aquele que resiste a levar a
cabo com moderação e sensatez. Num e noutro caso, requer-se a prudência na sua
qualidade de virtude moral que o é por excelência.
Joaquim Maria Cymbron
_____________________________________________________
Quem são estes amos? Uns, adivinham-se; os que restam, nem tanto.
Pelo meio, esses amos, os de rosto visível e os que o trazem velado,
vão-se sentando em tronos feitos de
oiro, um oiro arrancado ao ventre da Terra, à custa do suor de muita gente
escravizada. Noutro texto, bem mais curto que este, também denunciei a
burguesia como inimiga da sociedade humana, e apontei a ligação das suas
mais altas camadas ao Sionismo apátrida e internacional --- http://legitimismo.blogspot.pt/2008/10/burguesia-o-inimigo.html.
Summa Theologica, I-II, q.
91, a. 2.
Io. 18, 37.
Constituição LG,
14.
Há reflexos na literatura. Um, de realce, é o famoso poema, que leva por título O Quinto Império.
Ninguém desconhece o nome do autor --- Fernando Pessoa. A estética
literária de Pessoa só não comove a matéria. Contudo, é complexa a sua
personalidade. Apesar disso, não deixa de ser curiosa a linha por ele
traçada dos quatro tempos que «se vão para onde vai toda idade.» É esta a
sucessão: Grécia, Roma, Cristandade, Europa. É facto que a Europa, depois
de Westphalia, vem substituir a
Cristandade, passando o governo do Mundo a essa Europa, cada vez mais
secularizada. Será a burguesia que vem viver a verdade esperada por
Pessoa? Pese embora, o que havia de esotérico e abstruso no carácter de
Pessoa, custa a crer que fosse esta a mensagem do poeta. Ou viria ele
afirmar que será precisamente a vitória sobre a burguesia o tão desejado Quinto Império? Deitemos o fardo de
deslindar esta melindrosa questão, para cima dos ombros de quantos são
apreciadores da cabala. O que nos há-de ocupar são os preparativos para a
luta, e não se é o quinto ou o sexto império que vai chegar. Ou até se
mais ainda virão, antes que se dê a escatologia. Isto de pouco monta
porque o triunfo será do último que vier. É um dado certo fide atque ratione.
Lus.,
I, 8, vv. 1-4.
I Cor. 6, 12-20.
Outro grande cultor de um império redentor, o P.e António
Vieira, anunciava a chegada de uma ordem universal, à qual já chamara Quinto Império. Para o grande jesuíta,
esse império é o Regnum Christi et
Christianorum (ou Sanctorum);
será um império temporal [«(…) et
omnes reges servient ei et obedient.»]; e, além de temporal, é
espiritual «porque o Reino de Cristo verdadeiramente era deste Mundo e de
todo o Mundo, e só não tinha os acidentes da vaidade e falsa grandeza com
que se sutentam os outros reinos do Mundo.» (História do Futuro, liv. II, maxime cap. I-V).
JMC