Se
houve períodos na nossa história, em que a grei portuguesa parecia sumir-se,
perdido o rumo e interiormente possuída de uma hostilidade muda, mas nem por
isso menos destrutiva, o tempo que vivemos, desde o 25 de Abril até
hoje, é certamente aquele no qual a esperança num porvir de justiça e de paz
está cada vez mais afastada.
Como
ficou dito, além de uma aflitiva desorientação, volta a sentir-se uma
hostilidade muda: porque é muda, não se ouve; mas, por ser intensa, também não passa
despercebida. Por enquanto, o sangue ainda não jorrou em torrentes de largos
caudais, lembrando episódios funestos do nosso passado. Mas nem por isso nos
podemos julgar a salvo desse flagelo, porque se o que temos não traz, por enquanto, as mágoas
que formam o cortejo de um enfrentamento armado, é indubitável que provoca
danos pelo menos tão dolorosos como se já houvesse estalado um conflito bélico. É uma fatalidade, mas é, ao mesmo tempo, um desfecho natural e até lógico, porque essas reacções são a chave dos problemas criados pelas indefinições e pelos erros da política. Na realidade, quando tais indefinições e tais erros se mantêm teimosamente, por enquanto não existe outro remédio contra o mal a não ser o recurso a esses meios.
São,
pois, cinzentos os dias do presente. Brada-se (às vezes, mais que vozes
humanas, há a impressão que se ulula), grita a multidão, frise-se de novo, que muitas
coisas vão mal, mas que se goza a felicidade suprema da liberdade. Surpreendentemente, isto parece bastar-lhes. O que as
turbas alucinadas por esta miragem não conseguem, é explicar de que lhes serve
uma tal liberdade, quando apesar dela se mostram ineptas para usufruir aquilo que ambicionam, e continuam
privadas do que lhes cabe com lídimo direito. E que liberdade é essa assim
uivada? --- É um título oco que permite a cada um rebaixar a sociedade a plano
igual ao de uma imensa latrina, na qual se despeja como se quer e quando se
quer toda a espécie de imundícies.
A
verdadeira liberdade de modo algum se há-de confundir com a via que leva à
profunda cloaca em que se vai transformando uma Pátria, abnegada e de recta
intenção, como foi a nossa. Não é fenómeno exclusivo de Portugal, porque o mal
não nos afecta só a nós. Bem pode dizer-se que é geral. Mas a nós, Portugueses, o
que deve interessar, em primeiro lugar, é o caso nacional. Com todos os desvios
e infidelidades em que infalivelmente cai o que é humano (e as Pátrias outra
coisa não são do que um aglomerado de homens ao longo de sucessivas gerações),
apesar dessas falhas, repita-se, no velho Portugal tinha-se uma correcta noção
de liberdade, conquanto, como se acabou de referir, nem sempre se lhe seguisse
uma aplicação condizente. Liberdade, a autêntica, não pode estar imóvel enquanto
estivermos em estado de peregrinação, porque o seu conceito nunca pode andar
desligado da nossa vocação sobrenatural; liberdade, esse precioso valor, há-de entender-se como o
cume atingido por quem busca a santidade. Este percurso ascético, enquanto
dura, é a liberdade que cresce. Quando essa liberdade em movimento dá entrada na
Glória, aí temos a liberdade definitiva, porque é a liberdade da bem-aventurança,
uma liberdade-resumo da caridade que, na sua catequese, já o Apóstolo pregava.1 E porque do magistério de S. Paulo também se tira que a caridade não terá fim,2
eis aí a razão para chamar definitiva à liberdade que aqui se aponta como a única digna de se observar.
A
fonte dessa liberdade não a conseguiremos achar fora de Jesus. A Cristo ficámos
devendo o nosso resgate. Daqui resulta que, resgatados, nos tornámos livres. E,
nesta condição, fujamos do pecado para não nos atolarmos outra vez na servidão
em que jazíamos.3 Aquele que peca, se persistir na impenitência,
rouba eficácia a um sacrifício que foi universal na sua suficiência. Ao
imolar-Se, o nosso bendito Salvador cumpriu, em toda a sua plenitude, a vontade
salvífica de Deus Pai, que abrangia o género humano por inteiro. Esquecê-lo é a
mais pavorosa das ingratidões, e o desgraçado, que o fizer, atrai sobre ele a maldição
eterna!4
A
liberdade, que gozamos, a verdadeira liberdade, embora nalguns momentos nós
próprios nem dela tenhamos consciência, essa liberdade rejeita a divindade
falsa que informa a liberdade democrática, ídolo triunfante dos tempos actuais
e cujo culto, que não é de hoje, há muito vem fazendo estragos. Viveu
escondido, e permanece sem desvelar por completo o seu rosto humano. Isto não o
impede de se expandir e ganhar volume, de tal forma que vem de molde afirmar não
haver povo que escape aos seus efeitos desastrosos, e que o mundo, na quase
totalidade, senão mesmo em toda a sua extensão, se inclina reverente e submisso diante
desta moderna deidade que a Democracia constitui. Esta pérfida divindade que, com direito satânico e por isso mesmo muito próprio, se apressa já a
recolher as libações reservadas à Besta nos tempos apocalípticos, esta deusa
também ela embriagada nos vapores das bebidas com que os seus partidários a vitoriam,
fez subir a autonomia da vontade humana a um grau apoteótico. Pese embora as
palavras seguintes venham a soar com aspereza aos ouvidos dos que queimam
incenso nas aras deste culto perverso, a que alguns teimam em atribuir
proporções religiosas, o facto é que não está o Bem onde cada um quer colocá-lo, antes o devemos procurar fortalecidos
por uma inteligência rectamente ordenada,
que nos descobrirá a Verdade e, com
ela, o Bem que sempre a acompanha.5
Então, sim, já a vontade não só pode como também deve querer o que a mente lhe
indicou como certo. Por outras palavras: não é o apetite o caminho último para
o Bem porque apenas constitui o laço que une o
sujeito cognoscente àquilo que o deleita. Só isto marca a distância e faz pensar que, nessa relação, se impõe uma exigência de licitude no que foi apetecido, na falta da qual, o que houver, não será mais que a aparência de Bem!
Pasma
ver como há quem, depois de entoar um hino à liberdade que conhecemos por revelação divina e pelo
raciocínio, queira associá-la à Democracia, estreitando-as num abraço
impossível de dar-se. As notas distintivas da Democracia são a negação do que
aqui se defende, e não se encaixam, de modo nenhum, no essencial da manifestação
daquilo que é a liberdade. Que seja democrata qualquer um quanto lhe der na
vontade, é uma escolha ditada pelo seu livre arbítrio que nada tem a ver com a liberdade
como ela aqui é exposta. Mas, por amor de tudo o que se chama coerência, não se
pretenda ligar duas coisas separadas por um divórcio tão fundo como o que corre
entre as duas: era o mesmo que juntar água e azeite. Desista-se, pois, do
propósito de casar Democracia com a legítima liberdade: seria antinatural esse
conúbio. Divide-as um repúdio mútuo que é intrínseco e, portanto, insanável.
Diz-nos a própria razão que ao Bem só
corresponde o que é verdadeiro, assim como a Verdade apenas compreende o que é bom.6 Ora a Democracia
não é verdadeira, sendo inclusive uma das mais grosseiras mentiras do
pensamento: logo, está desprovida de Bondade!
A
economia da Salvação é toda ela uma torrente
de prodígios que formam o maior tesouro da humanidade. Porém, um momento há, com
base no qual não será ousado proclamar que esse é o instante onde está gravado,
com maior nitidez, o mérito da liberdade alcançada por Cristo a nosso favor. Acontece
no Calvário, quando Jesus, a ponto de morrer, exclama: «Eli, Eli, lamma sabacthani?»7 O génio
de Bossuet legou-nos um retrato de extraordinária beleza, a propósito desta
sublime passagem das Sagradas Escrituras: «(…) pendant qu’il délaisse son Fils innocent pour l’amour des hommes
coupables, il embrasse tendrement les
hommes coupables pour l’amour de son Fils innocent.»8 Entra a Democracia
em cena e faz o que costuma: vira tudo do avesso. Por isso, repele este generosíssimo
dom e dá corpo ao paradoxo que nos desumaniza: embora desempenhe esta missão
sem confessar os seus intentos, ela veio para açoite indiscriminado de culpados
e de inocentes por amor ao mistério da iniquidade! No turvo panorama que se
estende ante os olhos, não repugna crer que é a Democracia o justo castigo pelo
pecado social. O fogo, que reduziu a cinzas Sodoma, nem dez justos encontrou e,
por isso, a cidade não foi poupada.9 Quantos justos são hoje
precisos para que se afaste o flagelo democrático?
Porquê
este discorrer simultâneo sobre liberdade e Democracia, se tão antagónicos são
os conceitos que ambas encerram? É exactamente este antagonismo recíproco que
aviva a cor de uma e de outra: deste contraste, saem muito mais claras as
características de cada uma na sua relação de oposição. Temos, por conseguinte,
que a liberdade nos resgata da morte do pecado para uma vida de graça, ao passo
que a Democracia, mergulhada num feroz apriorismo de matriz kantiana,
desenvolve o absurdo do relativismo até extremos catastróficos e, deste modo,
sufoca no homem o que nele há de mais valioso --- o espírito.
A
Páscoa cristã tornou-nos livres da escravidão a que ficámos sujeitos pelo pecado
original; a Democracia precipita-nos num reino confuso, em cujos domínios não
há farol de luz pronto a iluminar o caminho, e que houvesse, de pouco adiantava
porque, dado o que precede, é cego quem nos guiaria nesse terreno.
Nas
convulsões, que ameaçam tragar-nos, será que a paz ainda é possível? E que categoria de paz nos pode calhar? A pergunta é
pertinente porque envolve questão aqui tratada. Realmente, é a paz um bem
apetecido por todos. Onde não há unanimidade, é no tipo de paz desejada. A este
respeito, ensina S.to Agostinho: «Pax omnium rerum, tranquillitas
ordinis.»10 É, porém, concebível uma tranquillitas ordinis fora do que é justo? Parece bem que não,
porque de contrário teríamos que desejar, como paz, o silêncio dos cemitérios, espaço
ocupado pelas sepulturas dos mortos e onde reina a quietude para os que lá
descansam. Não é esta propriamente a paz por que suspira a sociedade política.
Se a tranquillitas ordinis não pode
conseguir-se separada do que é justo, eis-nos regressados ao ponto de arranque:
bom só o verdadeiro; e apenas o que é verdadeiro nos brinda o que é justo. Dá isto que a paz para ser
boa tem de ser verdadeira, coisa que a Democracia é incapaz de oferecer porque não sabe o que é a Verdade.
O
relativismo democrático, como vem sendo dito, misturou querer com saber e, logo
a seguir, subordinou o saber ao querer, deste modo invertendo a ordem natural
que sobrepõe a Verdade à vontade.11
Operada esta subversão pela doutrina democrática, viu-se cada membro do corpo
político arvorado em dono de uma verdade que se choca com a dos outros,
conflito que vem a ser solucionado por umas banais contas de somar: a vontade da
comunidade é apurada pelo resultado desta adição, e a facção que reunir o maior
número de sufrágios é aquela que se identifica com a verdade democrática. Daqui
se extrai uma lição: não vale a pena que nos esfalfemos a moldar o nosso
pensamento à Verdade. Para quê esse
esforço? --- Limitemo-nos a querer e, se houver oposição, a aritmética resolverá
o caso. Magnífica ideia, não tem dúvida: os frutos estão à vista!
«Ego sum uia, et ueritas, et uita.»12
Estas palavras de Cristo, na despedida aos discípulos, dizem tudo. Ninguém vai
ao Pai a não ser por Ele. De todos os sistemas de pensamento, que os homens
levantaram, o mais próximo da verdade evangélica é o que foi erguido pela filosofia
escolástica. A Igreja Católica chama-lhe filosofia perennis. Ela é, por certo, a base mais bem estruturada de um
sistema de pensamento perfeitamente conforme à natureza da razão humana. E é nos
primeiros princípios metafísicos, tal como os enuncia esta filosofia perennis, que vamos ler a condenação da
Democracia.
Páscoa,
2017
Joaquim Maria Cymbron
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1. Gal.
5, 13.
2. I
Cor. 13, 8. Quadro esplêndido desta perícope paulina é dado na Divina Commedia, quando o seu autor nos
transmite que o reino dos Céus «(…) violenza
pate / da caldo amore e da viva
speranza, / che vince la divina
volontate, / non a guisa che l’omo a
l’om sobranza, / ma vince lei perchè
vuole esser vinta, / e, vinta, vince com sua beninanza.» (PA 20, 94-100).
3. I
Cor. 6, 12.
4. A
ideia de condenação assinada pelo florentino Dante, no mesmo imortal poema,
assume uma magnitude poética conjugada com uma raríssima precisão teológica
que, por felicidade, se ajustam maravilhosamente ao defendido no texto. São
estes os versos de encantamento: «Giustizia
mosse il mio alto fattore / fecemi la divina potestate, / la somma sapienza e’l
primo amore.» (I 3, 4-7).
5. São
Tomás de Aquino, O.P. --- Summa Theologica I, q. 16, a. 4 ad 1; q. 59, a. 2 ad 3; q. 79, a. 11 ad 2; q. 82, a. 4 ad 1; q. 87, a.4 ad 2.
6. Ib.
7. Mt.
27, 46.
8. Sermon sur la Passion de
Notre-Seigneur, 2.nd point.
9. Gen.
18, 32; ib.: 19, 12.
10. De Ciuitate Dei, XIX, 13, 1. A mesma lição já saíra da boca do profeta Isaías: «Et erit opus iustitiae pax, et cultum iustitiae silentium, et securitas usque in sempiternum.» ( Is. 32, 17).
11. O nosso Épico, em pura
consonância a uma correctíssima filosofia dos valores, escrevia: «Vê, enfim,
que ninguém ama o que deve, / Senão o que somente mal deseja.» (Lus. IX, 29,
1-2.
12. Io. 14, 6.
JMC