Bonum est diffusiuum sui!
A conversão começa em nós e, como exemplo, bom é que
seja imitada pelo nosso semelhante. Se isto não sucede, de pouco ou nada aproveita
ao que a experimentou!
Que é, na sua essência, a conversão? Conversão firma
ou devia firmar o estado permanente de cada criatura racional, enquanto
peregrina na Terra.
Uma única excepção se encontra --- Maria SS.ma!
Esta excepção é também um privilégio, o
qual por caber na Sua omnipotência ordenada, quis Deus que a bendita Mãe do
Redentor não estivera um só ápice de tempo sujeita a sofrer os males, que o
século nos traz em consequência do pecado original. Ela é a Imaculada: assim
nasceu, imune a qualquer sequela deixada pelos nossos protoparentes e, já
desposada com José, foi com estas palavras saudada por Gabriel: «Ave gratia
pleta.»1
De resto, volta a lembrar-se, no passageiro e penoso
desterro que atravessamos, a ninguém mais é dado viver sem conversão. De modo
muito insinuante, reza a Escritura Sagrada: «Septies enim cadet iustus, et resurget:»2
Quem, pois, no âmbito desta matéria, exclama que não
se quer converter nem aprova que alguém se dedique à conversão de outrem, larga
um grito do qual não será temerário afirmar que, se não abandonar a obstinação,
profere um juízo suicida, caindo em grave
risco de o conduzir à morte espiritual, tornando-se assim um desgraçado que
renuncia a todo o BEM.
Porque hão-de os campeões das enganosas teorias
românticas, cujo mérito não vai além de um duvidoso sabor poético, insistir que
não devem ser calcados os princípios da Liberdade, por eles tão apregoados? E porque
oferecem, em troca, uma ou várias minas de riquezas bem escondidas nos seus
cérebros? O que o vulgo descortina são torrentes de oratória, anunciando
horizontes de delícias que ninguém chega a gozar; em seu lugar, sopram
fortíssimos vendavais!
Quando irá raiar o dia, em que ouviremos o pregão
daqueles arautos que anunciam o que é conforme à verdade que consola o nosso
espírito, mas que a iniquidade combate ferozmente e cega ou ensurdece os que
lhe prestam culto?
Enquanto esperamos, calha a propósito, em jeito de
quem se antecipa, expor o que se afigura como mais adequado ao correcto
entendimento da actividade humana, a que se chama pensamento e, na sua relação
com a faculdade de gozar uma genuína liberdade.
Com este objectivo, acrescenta-se já que, a respeito do pensamento, é e serão ineficazes
todos os processos, mesmo que recheados de artes mais ou menos mágicas, tendo
em mira agrilhoá-lo: quanto mais comprimido, mais explosivo se torna! Que ninguém, pois, se deixe arrastar na ilusão
de que há-de prendê-lo. É simples miragem porque o pensamento, se interiormente aspira a ser livre, bate as asas
com determinação, e eis que escapa voando!
Ainda não há um ano que se levantou uma onda sonora,
correndo Portugal de uma ponta à outra e estendeu-se fora dele. Transformou-se
num eco de compreensível regozijo, pois aplaudia o êxito de um acontecimento
merecedor de nota esperançosa.
Que arranque foi este para uma marcha que muitos vêem
como triunfal? Com efeito, tais proporções assumiu que bem pode arrogar-se a
dimensão de facto que foge à rotina.
Portugal, a Nação
Fidelíssima, aceitou ser palco nesta festa, contente por servir o que se
propunha atingir um ponto alto. Os protagonistas --- jovens na sua maioria ---
vieram de todo o lado. E a tutela de Maria SS.ma acudiu em socorro
de quantos demandaram a luz que a todos se oferecia, assim se mostrando a terna
Mãe que conhecemos, dignidade em que foi investida depois que no Gólgota, Cristo, em parcas palavras, ditou o que Leão
XIII inspiradamente chamou «solene
testamento»3
Se da Cruz corria então o sangue preciosíssimo do Redentor,
bem provável é que agora, na mansão do Pai, Cristo já esteja sorrindo diante de
alguns sinais promissores, que não custa ver naqueles lampejos de luz que
cortaram os céus de Portugal!
No relato de tão feliz evento não é possível esquecer
que, no meio de todos os seus actores, se vem falando deles e doutros que integram um povo de navegantes.
A referência a tal circunstância, de modo algum,
pretende sonegar o papel relevante de quantos ali acudiram a manifestar a fé
que os animava. Mas é também violento retirar, seja a quem for, a sua
identidade histórica, porque esta informa o que só muito raramente se sumirá. E
quando sobe à cena o povo português que teve por estrela polar a universalidade
do género humano, valor este que o guiou na sua epopeia marítima, não repugna aceitar
que calar este sinal tão característico do hospedeiro demonstra pouca agudeza
na apresentação do cenário de um acontecimento, que tocou uma dimensão apreciável.
Justificada por estas palavras o que é susceptível de chocar
algumas sensibilidades mais melindrosas, apenas resta aguardar melhores dias.
Nos tempos que correm, ponto é que bata certo o azimute que vierem a tirar!
Esta finalidade, ou seja, ansiar pelo regresso de um
Portugal cristão, esse desejo de uma Pátria restaurada nos valores perenes que lhe
transmitiram grandeza moral, nada tem de um ligeiro devaneio em que se entretêm
os amantes de proezas que ninguém viu nem verá. A ambição que aqui se declara não
esconde que obriga mesmo a uma tarefa arduamente pesada.
O ideário de moda é resultado de uma soma em que as
parcelas, representando caprichos mentais dispostos numa ordem por vezes arbitrária,
mais parecem um bricabraque, onde tudo cabe. É neste passo que o pensamento
perde desastradamente o equilíbrio. Comete uma falta filosoficamente inaceitável
porque radica na fragilidade da estrutura doutrinária que pretende apresentar
como ponto de partida.
Daqui para diante, um estilo como este só pode
conduzir ao aniquilamento de quem nele comunga, porque gera o vazio de um desencanto
que levará à destruição moral dos infelizes, em que acabam engolidos num abismo
de atrocidades, das quais são, ao mesmo tempo, agentes e vítimas.
O homem, com a capacidade de que está dotado pela razão
natural, é atraído por um impulso que o chama a travar conhecimento com tudo
aquilo que o transcende. Se não fica surdo a esse apelo, cumpre o que é desígnio da Divindade. O pior está
quando o homem olvida a lei eterna e salta as balizas fixadas pelo Criador.
Desde a base até à cúpula, é na soberba 4que
o relativismo se dá a conhecer. Pelos seus terríveis resultados, bem pode
cassificar-se como o de maior responsabilidade nas nefastas consequências que afligem
o género humano. Não é, contudo, o único sistema culpado por esta hecatombe moral:
outras escolas há, que se formaram em princípios de raízes mais ou menos
próximas e que também optaram por avançar de braço dado à subversão.
São deletérias as suas correntes, cada uma rasgando um
curso distinto por onde deslizam, para no final se reunirem num ideário confrangedor.
Esta liga conseguiu a proeza de atacar simultaneamente
os múltiplos pilares das sociedades modernas. É que a sua missão tem uma carga
pesada sobre os ombros. E se, orgulhosa do mal que espalha, eleva a voz para se
gloriar daquilo que intitula como sendo o progresso da humanidade, também
poderá ouvir a resposta de quem não se deslumbra com a propaganda que despejam de
suas bocas. O que dizem, não corresponde à verdade; o que fazem isso é já outro
conto.
Vejamos o plano que os anima: o alvo preferido é a
religião; segue-se-lhe a filosofia; vem depois a ética; a fechar, aparece a
política.
A doutrina de que são portadores instalou-se no seio
da religião com o indiferentismo; nos domínios de uma filosofia muito abalada,
ocupam-se a proclamar a fragilidade do entendimento humano para entrar na
transcendentalidade dos atributos do Ser;
no campo da ética, esta discipina do Bem e
do Mal vem hoje experimentando a
lenta agonia do processo que a vai separando da metafísica, para mergulhar num oceano de águas muito turvas; e por fim, na
política, o desconchavo das teorias democráticas.
É contra a religião católica que a sanha desses mal-aventurados
se mostra mais acesa. Teimosamente agridem a harmonia existente entre fé e
razão. Procuram com desespero rasgar esse laço e ousam mais: lançam uma contra
a outra!
Ora nem obterão
êxito no divórcio que se cansam a cavar sempre mais fundo; nem é uma fatalidade
que o antagonismo tão proclamado venha a constituir um estado permanente de
discórdia.
Ignoram esta verdade básica e singela: a fé pode ser
suprarracional, mas em ponto algum é antirracional!
Bom seria que os olhos de todos nós pousassem sobre o
campo onde reina a paz da teologia. Depressa veremos que ali se abrem dois
caminhos: a teologia natural e a teologia sobrenatural! A primeira das duas
vias enunciadas tem, na razão natural, a origem do conhecimento que guarda; na
segunda, a razão discorre iluminada pela fé.
O saber da teologia natural enche-se com as coisas
criadas; ao passo que a teologia sobrenatural vai buscá-lo à revelação divina.
Para ilustrar, o que se acaba de dizer, eis um exemplo: pela teologia natural,
o homem só pode subir até Deus uno; enquanto que, para voar até Deus uno e
trino, é o homem obrigado a armar-se de asas da teologia sobrenatural, porque o
dogma trinitário enuncia um mistério estritamente dito.
Que marco regista o litígio entre razão e fé? Não parece que noutro
espaço se ache para lá de encontrar poiso numas mentes enfermiças, onde
fervilham mil e uma teorias de muito nebulosas intenções.
No entanto, pior que tudo é a posição dos seguidores
de uma doutrina que não partilham com ninguém de fora --- não se lhes juntam,
mas também não os chamam. Traçam fronteiras sem que mostrem projectos de as
remover.
A suficiência de que andam cheios é acentuadamente hostil
à vertente religiosa. Por isso são inexoráveis contra os que depositam na fé autêntica
a resposta àquilo que o entendimento humano não alcança: a uns, esmagam-nos; a
outros, corrompem-nos com o ouro! Porém, mais grave que a violência sobre o
corpo, está a subversão do pensamento. Sobre este dom humano recai o ataque
mais temível.
É com farto azedume que o inimigo do género humano
acusa os que têm espírito catequético de fomentar a desunião entre os seres
humanos. Não falam certamente da unidade que a ontologia aponta como património
do Ser. Agem com dolo ou será uma incapacidade
visceral que os impede de beneficiar, em toda a sua extensão, daquele aforismo
de luminosa sabedoria, o qual sustenta: «ens
et unum et uerum et bonum et pulchrum convertuntur». Máxima lapidar, do
mais fino recorte escolástico, de cuja obediência anda o universo afastado porque
caiu em pecado ontológico!
Deixemo-nos de generalizações para incidir mais
directamente sobre o significado e alcance da conversão, que é o tema aqui
abordado. E vai o assunto ser tratado não no sentido com que o termo é vulgarmente
conhecido, mas naquele em que espíritos mais elevados se habituaram a entender
o conceito pela forma que, segundo eles, alberga maior precisão.
Prosseguindo:
Conversão é a atitude tomada por quem, no mais
profundo do seu querer, se entrega a uma constante prática de catarse, através da qual persegue o gozo
da redenção objectiva, operada pela satisfação vicária de Jesus Cristo, no alto do Gólgota e cujo fruto vai colher
pela justificação que fica a dever ao mérito do nosso bendito Salvador! Deve
fazê-lo na linha defendida pelos apóstolos Paulo e Santiago quando, com
discurso verbal aparentemente diferente, não deixavam in substantia de apontar à mesma doutrina, nas vezes em que não o
diziam claramente, movendo assim o crente a juntar à fé outros actos
dispositivos pelo que, afinal, era equivalente a doutrina de ambos.
A conversão, com o grau de rigor ao qual não se deve
fugir e também acompanhada por uma contínua ascese, é chamada a avançar sempre
enquanto dura o statu uiae de cada
um.
Não é o pecado, aquele que fere a alma de morte, uma auersio
a Deo pela conversio a creatura? Trento, com um anátema bem claro,
fulminou quem negasse ao homem a faculdade do livre arbítrio, depois da queda
de Adão.5. Este artigo dogmático é asseverado por S. Paulo quando, dirigindo-se
aos Coríntios, tem esta sentença eloquente:
«Omnia mihi
licent, sed non omnia expediunt: omnia
mihi licent, sed ego sub nullius redigar potestate.»6
Será, pois, excessivo esperar para quem gravemente
pecou e que, contrito e penitente, rasgado de remorsos, ofereça a vida que
ainda lhe resta voltando-se para Deus omnipotente? Quem peca rebela-se contra o
seu Criador, ao mesmo tempo que descobre um sintoma de ingratidão porque lança
no olvido a graça que sobre ele desceu por obra da redenção objectiva.
O trânsito neste mundo vai desenhando sucessivamente
os mais variados quadros. Não resulta fácil situar antecipadamente os
acontecimentos aqui ou ali. A própria topografia ignora o sítio que vão ocupar
os padrões que ao longo dela se espalharão, mais ou menos orgulhosos do
significado que cada um exibe!
A vontade humana tem nisto uma uis determinante, mas a natureza também actua nesta realidade e até
com larguíssima primazia no seu aparecimento. Haja em vista o colosso que é o
mar, esse quase infindável elemento líquido que se estende manso e sossegado
para logo depressa rugir fustigado por bravios temporais.
É o mar, umas vezes acolhedor e noutras áspero como se
acaba de dizer, essa imensidão de água, a receber o peregrino que se refugia na
solidão onde levar a cabo a sua conversão a Deus? --- Resposta impossível de
dar, porque tal decisão, de tão sagrada que é, apenas ao próprio cumpre tomar!
Imaginemos, porém, o caso de um peregrino que se
lançou ao mar ardendo no fogo de um desejo de conversão. Era este o rumo
escolhido e cumprida então a rota traçada, em que cruzou mares tormentosos, é atingida
a hora de arribar a porto de salvação. Pôde, então, saltar em terra, anunciando
que nunca escondeu dos mais tripulantes a fé viva e actuante que o movia em
direcção ao destino, em que esperava receber a graça da justificação porque,
também ele como o salmista, assim cantava:
«Misericors et propitius est Dominus,/ Tardus ad iram et admodum
clemens./ Non in perpetuum contendit,/Neque in aeternum succenset,/ Non
secundum peccata nostra agit nobiscum,/ Neque secundum culpas nostras retribuit
nobis.»7
E neste cantar não se eximia a juntar-lhe mais dois
versículos:
«Ne vocaveris in
iudicium servum tuum,/Quia nemo
vivens iustus est coram te.»8
Eis que estamos perante um quadro de conversão
exemplar! Já, numas linhas acima, se sustentou que a eleição do lugar para a
conversão não oscila por uma norma generalizada ou pré-estabelecida, mas pertence
exclusivamente ao penitente quando ele se abre à graça de Deus!
E isto, porquê? Simplesmente porque o percurso, em que
há-de procurar a sua santificação quem se quer converter, é outro; estende-se
dentro de si próprio, no repúdio tenaz ao convite incessante da concupiscência.
Caminhando arrimado ao bordão da verdade sobrenatural --- de que é única
depositária a Igreja de Roma --- esse peregrino vê luzir o farol da
Bem-Aventurança!
Em suma, conversão é quanto guarda o ensino de S.
Paulo, bem expresso no laconismo de um brado que o Apóstolo solta, formulando contra si mesmo esta maldição eventual: «(...)
vae enim mihi est, si non evangelizavero.»9
E como evangelizava S. Paulo?
Na sua máxima parte, a notícia da obra do Apóstolo veio até nós por ele próprio. De
modo que, para ninguém constituirá trabalho insano, pôr-se a coligir o que foi
a sua acção missionária.
Em S. Paulo, a dificuldade surge perante quem não pára,
numa azáfama laboriosa, até descobrir o que considera a melhor doutrina informando
a obra do Apóstolo.
Não fugindo ao que era sua
regra, numa palavra de fogo, assim falava ele aos Coríntios:
É altura de colocar a sua catequese ao lado de um lamentável episódio de que foi protagonista uma destacada figura da hierarquia eclesiástica, cujos ombros carregavam uma pesada responsabilidade durante a celebração das JMJ.
Que fez esse dignitário da Igreja? --- Como veremos,
não foi por certo uma ninharia.
Num cenário de tanta vibração religiosa, a sua boca abiu-se
desastradamente para negar interesse pastoral na conversão destes ou daqueles
que viviam o momento, desde há muito preparado. quando bem melhor seria se
houvesse emudecido!
Pouco importa que, só de forma ocasional, tivesse
emitido tal opinião. A gravidade da matéria tratada é de tal monta que o sopro
imprevisto chocou menos pela imprudência do acto como pela ausência de censura
que era legítimo esperar das competentes autoridades eclesiásticas. Censura, ou
no mínimo, recomposição correctora de tão desmedido erro!
Post tot
tantosque labores, diria talvez o genial clássico romano se tivera conhecido de S. Paulo o
suficiente. Se queremos, em vernáculo, continuar o elogio do Apóstolo pelo modo
como serviu a Deus, impõe-se gravar nas nossas memórias que, perante a
magnitude de quem, como ele, se dedicou a pregar a doutrina salvadora, é
forçoso confessar que custa sofrer a ousadia dos que parecem esquecer a sua obra
e atacam o conteúdo da palavra divina que tanto espalhou, consoante se extrai
do seu próprio depoimento: («Omnibus
omnia factus sum, ut omnes facerem salvos.»).11
Ousadia ou inconsciência. O benefício da dúvida tem
direitos respeitáveis. Esta não é, porém, ocasião para levantar uma denúncia
formal contra quem se atreveu a um tal destempero. Que o decidam as instâncias
com legitimidade para tanto.
Por enquanto, é outro o caminho:
Perdido o estado de natureza elevada em consequência
do pecado original, o homem é restaurado no estado de natureza resgatada.
Pregar o Evangelho é anunciar a Boa Nova aos que ainda não ouviram a Palavra; e
confirmá-la junto dos que têm a graça de já ser fiéis. Isto, pelo que até agora
se expôs, são as duas imagens da conversão. E quando ela não é procurada e
assumida por iniciativa espontânea, soa
a hora da caridade que nos chama a levar o Evangelho aos infelizes deserdados
de tão precioso bem!
A catequese é um labor com destino claro e bem
definido. Há-de entregar o que guarda para proveito daquele que dela espera
conforto espiritual. Deve, sem dúvida, partilhar o tesouro que transporta
porque dar é divino!
Uma longa tradição, sem vacilar, afirma para
qualquer homem a necessidade imperativa de ser membro da Igreja. É
antiga, insista-se, a fé da Igreja neste ponto.
O seu magistério é coerente e constante. Mas porque, é
abundante o argumento de autoridade, o recurso a esta fonte não cobrirá, em toda a extensão, o conteúdo daqueles que se achou
razoável reunir. Por isso, as transcrições serão encurtadas ao estritamente requerido
pelo justo equilíbrio que permita ao
leitor colher o que entenda que está a faltar ao seu completo esclarecimento.
Por outro lado, assim se criam as condições que não obscurecem o propósito que
terá animado os autores dos textos citados.
E é assim que temos:
O IV Concilio de Latrão (1215) declarou que: «Una vero est fidelium universalis Ecclesia,
extra quam nullus omnino salvatur.» 12 Na mesma linha, seguiu o
Concílio unionista de Florença.13
Pronunciaram-se também os Papas Inocêncio III, que ganhou
identidade nova quando pasou a ser conhecido também como Augusto do Pontificado e Assombro
do Mundo, esse Pontífice que defendia com zelo os títulos de primazia da
Igreja Romana , não sendo o primeiro que a caracterizava como «extra quam
neminem salvari credimus.»14;
Bonifácio VIII, de quem são estas palavras: «Unam sanctam Ecclesiam catholicam (...) extra quam nec salus est nec remissio peccatorum ...;»15; e Bento XIV, que sustentou: «Hanc fidem catholicae Ecclesiae, extra quam nemo salvus esse potest,
etc. (...)16, segmento
que não destoa da Professio Fidei
Tridentina.
Mais perto de nós, surge:
Pio IX, chamando à Igreja, Arca da Salvação, lutou denodadamente contra o dilúvio que o
indiferentismo causou no campo religioso.17 Sucede-lhe Leão XIII
que, como era de esperar, corroborou os ensinamentos que a Igreja desde sempre
veio ministrando.18
Já contemporânea de muitos vivos, a Igreja persiste em
manifestar-se tal como é. Decisivamente incapaz de outra atitude, a Igreja olha
os homens como se fora Mãe e não quer
abandoná-los a uma trágica orfandade.Tem inegavelmente uma vocação missionária,
o que abarca um convite cheio de amor à conversão salvadora.
É pois, modernamente, que falou o Concílio Vaticano II,
o qual, através da Constituição Dogmática Lumen
Gentium, proclama «(...) que esta
Iglesia peregrinante es necesaria para la salvación.(...) Por lo cual no podrían salvarse aquellos
hombres que, conociendo que la
Iglesia católica fue instituida por Dios a traves de Jesucristo como necesaria,
sin embargo, se negasen a entrar o a perseverar en ella.»19 Ressalve-se
o que, neste campo, dispõe a lei canónica ao condenar que seja exercida coacção
com o fim de obrigar alguém «(...) a abraçar a fé católica contra a sua
consciência.»20
Dante considerava que «entre los efectos de la divina sabiduría, el hombre es el más admirable, (...)».21 Entretanto,
aquele que tamanho elogio mereceu, caiu do pedestal em que fora colocado pelo
florentino.
Assim é que o género humano, privado da graça
santificante e dos dons preternaturais pela já assinalada causa que foi obra do
pecado original, acabou sufocando desesperadamente sob o peso da sua rebeldia.
Valeu-nos Deus, que não desiste de envolver-nos com o abraço
de um amor infinito, confirmando o poeta quando o seu juízo de valor não deixou
a fealdade do pecado destruir a beleza do ser humano.
Levado, primeiro, pela Sua excelsa bondade, Deus
criou; depois, ante uma ofensa infinita secundum
quid, com a Sua misericórdia, perdoou!
Só muito dificilmente poderão os dotes do ser humano avaliar,
na sua exacta dimensão, o extremo a que subiu e sobe a misericórdia divina, que
tocou o ponto de oferecer o Seu Filho Unigénito a um cruento Sacrifício! Tocou
e toca porque Cristo imolou-se como
vítima santa, não só no Gólgota, mas de cada vez que, sobre o altar, se procede
à consagração das espécies. Esta é a lição categórica que recebemos: uma
tradição de séculos traz-nos notícia de que o Criador incumbiu o Cordeiro
Imaculado de reparar o ultraje recebido; redimir quem pecou; e reconciliar a
criatura humana com Ele, Pai!
Nos arcanos da Salvação, para desvendar a satisfação
vicária, que Cristo tão generosamente cumpriu, faz-se mister acreditar
primacialmente no que a fé nos revela e, depois, num acto de confiança, que escutemos
S. Tomás de Aquino na medida em que Deus nos brindou com a razão natural.
Diz o Doutor Angélico:
«Homo autem
purus satisfacere non poterat pro toto humano genere. Deus autem satisfacere
non debebat;unde oportebat Deum et hominem esse Iesum Christum.»22
Eis aqui, de forma clara, o que nos fala do mais
sublime quadro daquilo que o homem, depois da falta cometida, beneficiou e
continuará a gozar até que Deus o chame a fim de pesar o uso que ele fez dos
talentos recebidos.
Por mim, muitas são as contas que tenho a prestar. E
não me acuso só por ter sido contumaz no erro, porque muito censuráveis foram
algumas das minhas infidelidades!
Sempre professei a fé católica. Com vivo sentimento de
culpa, pelo mal que fiz e, sobretudo, por quanto de bom omiti, bato no peito e
confesso-me pecador! O remédio ao quanto transgredi da lei de Deus, avistei-o
na conversão, uma conversão que não descansou nem terá repouso até que Deus me
cite.
Entretanto, confiante na mediação da SS.ma Virgem
e tanto quanto os meus reduzidos méritos o permitirem, é com esperança que busco
aproximar-me das palavras que S. Paulo nos legou, ao despedir-se do mundo:
«Bonum certamen
certavi, cursum consumavi, fidem servavi.»23
Semana Santa de 2024
Joaquim Maria Cymbron
____________________________________________________________________
- Lc.2,28.
- Prov..24,16.
- Adiutricem Populi, 3.
- Eccli. 10,15.
- DZ. 815.
- I Cor 6, 12.
- Ps. 102, 8-10.
- Ps. 142, 2.
- I Cor. 9, 16
- Ib. Cor. 9, 18-23.
- Ib. 9, 22.
- DZ. 430.
- Ib..714.
- Ib. 423.
- Ib. 468.
- Ib. 1.473.
- Ib. 1.677.
- Ib. 1955.
- Lumen Gentium, C.2, 14-17. Dignitatis humanae, 1.
- CIC 83, c.748.º, §2.º
- Obras Completas de Dante Alighieri,C 3,8, BAC, Madrid, MCMLXXIII. p. 628.
- S. Tomás de Aquino, O.P --- Summa Theologica, III, q.1, a.2.
- II Tim. 4, 7.
JMC