segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

1.º DE DEZEMBRO


Tenho necessariamente de me regozijar por que haja datas que ainda congregam alguns Portugueses e despertam nas suas almas brios há tanto adormecidos no conjunto da grei à qual pertencemos. Mas lamento profundamente que não se dê o mesmo relevo a Aljubarrota e tenhamos deixado que a festa dos Combatentes do Ultramar caísse nas mãos do poder.
 
Portugal, como corpo nacional, surge em Guimarães; recebe os santos estigmas em Ourique; afirma as primícias da sua virilidade em Aljubarrota; revela-se ao mundo; cai em Alcácer-Quibir; levanta-se numa manhã de Dezembro; afugenta as águias napoleónicas; divorciam-no da fé em Évora-Monte, mas sangra ainda em África numa guerra de cruzada, até que o apunhalam pelas costas.
 
O tempo vai provando que Portugueses, vibrando com os feitos heróicos que recheiam a nossa história, não desapareceram. Mas aqui, usando o peso da experiência que os anos me deram e visto que os assuntos se ligam ratione materiae, aproveito para uma curta observação:
 
Todos temos o direito de manter viva a recordação de tantas efemérides que são caras ao sentimento nacional. São devoções patrióticas muito legítimas e, portanto, dignas dos maiores encómios. Porém, no momento que passa, o nosso amor, a nossa acção, os nossos esforços devem dirigir-se eminentemente para o que é essencial.
 
Nós, que há quase trinta e cinco anos, deixámos que a traição nos arrebatasse um império magnífico, sem que até agora se definisse uma estratégia de reparação do estrago causado, não podemos, antes de resolver esta magna questão, dispersar-nos com objectivos que, nada tendo de despiciendos, são, no tempo actual, perfeitamente secundários e alguns deles até conjunturais. Mais: mesmo que alcançássemos nesse campo os fins que todos apetecemos, nem por isso ficava a nossa independência assegurada, se as feridas abertas com a tragédia do Ultramar continuassem por sarar.
 
Perseguir a vitória, descurando a batalha principal que devemos travar, não nos dará o triunfo na guerra: provocará em todos a nostalgia de um passado que se queria restaurar, mas que a nossa imprevidência terá perdido. Até agora, a actuação que sai das nossas fileiras tem sido ineficaz, assistindo-se mesmo a comportamentos notoriamente infelizes.
 
O Ultramar foi a teleologia da nossa razão como país independente. Não devemos esquecê-lo! Se queremos sobreviver, não podemos pensar que o conseguiremos, ignorando a nossa vocação atlântica. E, em vez de nos virarmos para aí, na tentativa de repetir a epopeia que nasceu com Aljubarrota e foi enterrada às portas do Carmo, repeti-la obviamente com contornos distintos, porque, no mundo contingente, nada é inalterável, em vez disso, insisto, navegamos à beira da voragem de um mar, agora sim, verdadeiramente tenebroso, já que nos deixamos levar na onda de correntes anti-imigratórias, em proporções tais e com uns critérios de exclusão que comprometem uma história de mais de quinhentos anos, e consequentemente nos negam como povo.
 
Porque, para mim, a verdade nua e crua é esta: biologicamente, não temos raça; a nossa raça é uma identidade cultural e afirmou-se numa capacidade única de lidar com povos de todo o mundo, convivendo e cruzando-nos com eles.
 
Se reconquistarmos essa dimensão, então podemos cuidar de tantos casos que agora nos apoquentam e nos irão parecer aquilo que verdadeiramente são para uma nação forte e equilibrada --- episódios de importância relativa. Não defendo que então cedamos à tentação de os abandonar, por luxo ou comodismo, uma vez que a nossa existência colectiva os dispensa bem. Nem tudo é riqueza material; a dignidade também conta. Por isso é bom que, entretanto, se mantenha acesa a chama para que esses objectivos não sejam esquecidos. Mas a prioridade é sobreviver. E o caminho não está na Europa, permaneça esta unida ou rompa-se por completo.
 
Aljubarrota e Carmo são, conforme acima disse, os marcos da nossa gesta. Aljubarrota é a arrancada gloriosa; o Carmo guarda o registo do termo ignominioso. Aljubarrota e Carmo, dois nomes indissociavelmente ligados a Nuno Álvares Pereira, o Condestável que o povo português há muito canonizou. Corre a notícia de que, dentro de pouco tempo, este guerreiro formidável subirá aos altares.
 
Conheço quatro ocasiões em que se pode falar de nascimento: a primeira sucede quando a criatura humana vê a luz deste mundo; a segunda, no momento em que, pelo baptismo, se abre à vida da graça; a terceira ocorre à entrada da bem-aventurança eterna; a quarta dá-se assim que alguém é proposto como modelo a imitar e oferecido ao culto dos fiéis, através de uma declaração de santidade proferida pela Santa Madre Igreja.
 
Será a canonização formal do Condestável o sinal para o renascer de Portugal, a pátria terrestre que ele tanto amou? --- Queira Deus que este seja mais um milagre do novo Santo!

Joaquim Maria Cymbron

Sem comentários: