O homem não deve arrogar-se a majestade que só a Deus cabe. E, ainda que o quisesse, jamais poderia alcançá-lo. Daí, as aberrações dos regimes imbuídos de totalitarismo, seja ele império de autocratas ou o paganismo das maiorias democráticas.
Mas se o homem não é capaz de se tornar Deus, já pode Deus fazer-se homem. Esta é a sublime grandeza do Natal, quando Deus, na Sua infinita misericórdia, desce à Terra e sagra o humilde recanto de um presépio. Sem se despojar da Sua natureza divina, não desdenhou ligar a Si a condição humana, habitando entre nós, para que, por este mistério da Encarnação, seguida da Sua Paixão e Morte e, por fim, da Sua triunfal Ressurreição, nós pudéssemos de novo habitar junto d' Ele.
Depois da desobediência de Adão, operou o Verbo feito carne para nos restituir a vida da graça perdida com o pecado. O Natal de Cristo é, pois, o ponto de partida para um segundo Génesis da Humanidade. Deus criou-nos duas vezes com vocação à Sua imensa glória: no «estado (...) da quieta e da simples inocência» (1), porque bonum est diffusiuum sui; na cruz lavada com o Seu sangue, porque nos ama com loucura!
«Tu dicis quia rex sum ego. Ego in hoc natus sum, et ad hoc uenio in mundo, ut testimonium perhibeam ueritati: omnis qui est ex ueritate, audit uocem meam.» (2) Nascendo em Belém, pagando no Gólgota a nossa culpa, ressuscitando ao terceiro dia, o Rei dos Reis confirmou-nos a Boa-Nova de um Reino que «non est de hoc mundo» (3).
E que dizer dos Reis deste mundo? Principalmente, do mundo que mais nos deve interessar --- Portugal?
A vida da graça, em política, chama-se Tradição, porque só a Tradição encerra a verdade. E foi da verdade que Cristo deu testemunho, sofrendo e morrendo por causa dela. Fora da verdade, portanto, não há salvação possível.
Que nenhum príncipe português aspire a reinar sem percorrer um longo e duro calvário, preço a que não há-de furtar-se caso queira exercer o mester de Rei.
Como dizia o grande Vieira, «a pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte, é aquela que lhe dá pena.» (4) Áulicos, sempre os Reis os terão por perto. Enxameiam nas cortes de todos os soberanos. Mas não lhes falam verdade: dizem só o que afaga a vaidade ou a concupiscência do príncipe. Também o Diabo tentou Cristo com as pompas deste mundo: «Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraueris me.» (5) Sob as mesmas miragens, continua a sua obra procurando seduzir os que têm a seu cargo o governo dos povos. Pervertidos os chefes das nações, a ordem natural, querida por Deus, é gravemente atingida --- a prova, temo-la debaixo dos olhos! E, deste modo, satisfaz o Demónio a sua sanha maligna.
A Nação Fidelíssima suspira ansiosamente pelo seu resgate e, por isso, aguarda o Rei. Um Rei que, à semelhança do Redentor do género humano, tenha clara consciência de que o ofício de reinar não se constituiu para vanglória do seu titular, mas sim para serviço da grei. Um Rei que entenda a lição de S. Paulo, quando o Apóstolo exortava Timóteo nestes termos: «(...) praedica uerbum, insta opportune, importune: argue, obsecra, increpa in omni patientia et doctrina. Erit enim tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt, sed sua desideria coaceruabunt sibi magistros, prurientes auribus, et a ueritate quidem auditum auertent, ad fabulas autem conuertentur.» (6) Um Rei, enfim, sabedor de que Portugal pode perdoar muito aos seus monarcas, mas não desculpa a felonia nem tolera que algum deles exalte os traidores!
O Salvador libertou o mundo com a verdade; Portugal, se quiser encontrar o caminho da restauração, terá de buscar arrimo na Tradição, depósito da verdade ontológica, logo, também da verdade política. E a Tradição rejeita farsas, especialmente se trazem máscaras de monarquia.
Joaquim Maria Cymbron
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- Lus., IV, 98, vv. 5-6.
- Io. 18, 37.
- Ib. , 18, 36.
- Sermão da Sexagésima, X.
- Mt. 4, 9.
- II Tim. 4, 2-4.
JMC
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