Até à data, não me inteirei dos precisos termos estabelecidos
nos tratados que vinculam as partes no conflito que opõe – uma à outra – Rússia
e Ucrânia. Fiquei sem fundamentos sólidos para indicar quem faltou à fé do que neles
se acordou e assim me mantenho.
Ignoro, repito, qualquer compromisso dessa natureza havido
antes da entrada de tropas russas no seu vizinho território. Julgo, porém, conhecer
de sobejo aquilo a que chamam Ocidente
e é a seu respeito que discorro a partir do miserável e nefasto papel que vem
representando neste drama. Desde já importa assentar que este Ocidente moribundo não pisa somente chão
que é europeu; atravessa o Atlântico e estende os braços até ao mais forte inimigo
da verdade e da bondade que o direito natural guarda.
É, pois, aos seus chefes que me dirijo: a eles e ao público
em geral!
Como quereis vós, amos de um Ocidente sem esperanças de futuro, visivelmente reduzido a um alento
que só lhe permite agitar-se em convulsões, prenúncio seguro de um fim próximo,
como é possível, insisto, que venhais medir forças com uma Rússia habituada a
sofrer e, depois que emerge da dor, sempre pronta a aceitar novos desafios?
O vosso coração está prenhe de ódio, a ponto de transbordar e
fazer com que o já encolhido raciocínio da maioria de vós fique sumido quase
por completo. Não percebeis que entrastes numa lide, carregados de hostilidade contra um povo audaz na peleja, povo composto de
lutadores estóicos, enfim, povo capaz de roer pedra? Não me espanto! Nunca tive
em grande conta a vossa argúcia.
Confesso que muito me confortaria ver Rússia e Ucrânia
estreitamente unidas. A essa confissão, junto que seria para mim tarefa árdua,
quando não impossível, dar primazia a uma de estas duas nações, em prejuízo da
outra. Pela íntima conexão, que liga estes dois povos, é efectivamente de
grande melindre, para a minha sensibilidade, tomar partido. Antes do que agora
sucede, tivestes a infeliz ideia de andar, vós e outros arautos da falácia
democrática, numa teima pesada e suada, ao longo de setenta anos, procurando
convencer o mundo de que a Rússia era aquela imensa e sórdida enxovia, onde os
seus próprios filhos gemiam de fome, quando não expiravam no potro das torturas.
E, por mal dos pecados de todos nós, uma entidade sem rosto – a opinião pública
– lá ia acreditando. Esta mesma entidade, assim como não perdia pitada do que
então lhe era servido, continua a alimentar preconceito idêntico ao daquela
época, porque a opinião pública, além de no plano moral não ter rosto, intelectualmente
também é cega.
O que nunca lembrais em toda a sua extensão e profundidade,
raça de hipócritas, são as condições do proletariado em sistema de economia de
mercado livre. Escondeis que tanto se revela injusto o açoite do chicote, como
é violência o salário de equidade muito duvidosa, auferido pelo trabalhador que,
se o não aceita, corre o risco de cair no desemprego!
Ide, pois, em frente com um trovejar no
meio do qual despedis cargas de raios que são umas sanções económicas, talvez adequadas
a tolher o ânimo de alguns pobretanas, sem eira nem beira, que imediatamente
ajoelharão a vossos pés e se converterão ao vosso credo. Continuai, pois,
adormecidos nessa ilusão que forjastes e vos consola. Tomai cautela, no
entanto, porque pode não ser doce o vosso despertar: outro, realmente, é o
quadro que contempla quem vê o povo russo com olhos bem abertos!
Reparai que um povo, com dotes de resistência tantas vezes
provada, não é natural que vá a terra facilmente; e que a táctica, por vós imposta,
não entre em ricochete, ainda há-de surpreender mais. Ou será que o comércio tido com a Rússia foi até agora praticado com o
fito de a socorrer como se ajuda um país do Terceiro
Mundo? – Não desejais certamente que acreditemos numa abnegação de tamanho
grau! Porém, só por mera diversão, convenhamos que assim é. Parece-me lógico,
então, concluir que as temidas sanções decretadas vão decidir a contenda que se
trava. De caminho, talvez sorriam algumas balanças de pagamentos, que neste vaivém
encontram um sonhado equilíbrio, pese muito embora o empobrecimento das
respectivas economias.
Redunda em tarefa ociosa procurar uns vestígios de ética, se
falamos do conúbio que América e União Europeia formam numa promiscuidade aflitiva! Sejamos directos: no
que hoje se chama Ocidente, há
muitíssimo tempo que os valores do espírito foram secando gradualmente. Entretanto,
a Rússia conserva esse tesouro precioso. Era e continua senhora de um sentido
transcendente da existência do ser humano. Por vezes, a noção do que isso é
padece desvios pelo que nem sempre se traça a rota mais curial, ou seja, aquela
que uma filosofia de vida com raízes lançadas no solo ubérrimo da Tradição possa aprovar. Mesmo aí não
deixa de ser um código de valores sujeitos a aclamação ou a repúdio como acabou
de ser dito. Pior que não ter a exacta medida de Bem e de Mal é, contudo, aquilo
que despoja a mente humana de todo o raciocínio pronto a distinguir o
verdadeiro do que é falso. Este agente monstruoso tem um nome – relativismo!
Todo o seu proceder é negação do Ser – gera a desolação do vazio! Conquanto o vazio nunca se atinja
nem atingirá, porque o nada não existe, tal comportamento constitui, sem cessar,
uma grave falta ontológica: desdobra perante os nossos olhos um panorama
privado de um mínimo razoável de conteúdo! Maldade, e bem arraigada que é, se
há consciência clara da orientação seguida e a vontade se conforma
deliberadamente ao resultado; sinal de pavorosa desgraça, quando se age por
incapacidade de buscar a Verdade!
Pelo seu passado mais remoto e por um presente em que se adivinha
o propósito de regresso às glórias vividas, a Rússia está isenta dessa culpa.
Por clareza de linguagem, que tanto prezo e a mim próprio exijo, cumpre-me já
interpor que não é a Rússia desta ou daquela figura marcante de uma história,
rica em feitos, que eu exalto, mas sim a Rússia intemporal.
Embora em todos os sectores, onde o homem actua, o que aí se
passa diga respeito à ética em geral, neste momento debruço-me sobre matéria que
traz a marca profunda da política.
Por isso e pelo que até agora se desenvolveu, vem de molde indicar
o evento histórico mais ajustado a servir de marco cronológico à alteração do relativo
equilíbrio experimentado, até essa data, pelas potências europeias. E isso tem
a ver com a revolução de mentalidades que já vinha de trás e que, como tudo que
neste campo acontece, não se fixa de um dia para o outro.
Quando tal sucedeu, a genuína Europa, um continente que, no
presente, despede gritos de raiva e se revolve no frenético delírio de quem nada
mais tem a dar, esta Europa irreconhecível, iniciou a marcha desastrosa que até
aqui a trouxe. Nada tendo de valioso a oferecer, ocupa-se em lançar medidas cheias
de uma triste similitude ao comportamento adoptado pela generalidade daqueles,
cuja instabilidade nervosa ou de ordem moral os priva de um juízo sereno e lúcido
que os levaria a agir com boa fé.
Para melhor entrar nisto, força será afirmar que, nos últimos
séculos, a ética política acusa a sua queda de mais nefastas consequências, em Westphalen. Na Rússia, a vinda de Pedro,
o Grande, não tardava; apareceu, e transcorridos alguns anos, era coroado
Imperador. Com este Czar no trono, a Rússia abriu portas e janelas ao mundo, tornando-se
um colosso no concerto europeu.
O devir histórico não demorou muito a mostrar de que fibras
era feito o novo potentado. Quando a Europa ameaçava desaparecer sob o avanço
de umas hordas nascidas no seu próprio solo, é das imensas e gélidas estepes
russas que vem um sopro de vida, arrastando um corpo de nações capazes de ensinar
o caminho de casa ao Átila contemporâneo.
Não desconheceis certamente quem foi a personificação desse
sopro salvador: não era austríaco nem
prussiano; e teve a ventura de também não ser inglês – chamava-se Alexandre e era
Czar da Rússia. Graças a ele, constituiu-se a Santa Aliança. Não foi só questão de a levantar: quando todos
julgavam terminada a missão, foi o autocrata russo quem, com a sua tenacidade, não
desistiu e empurrou os demais para o objectivo que não largava de vista. Armado
dessa tenacidade, veio a transpor as portas de Paris e acabou por sentar o
Bourbon no trono de São Luís. Waterloo foi o remate feliz de uma estratégia,
cujo mérito pertence na sua máxima parte a Alexandre I. O orgulho gaulês denota que ainda não se terá recomposto do
choque que sobreveio à humilhação causada por esse triunfo retumbante.
E foi assim que este Romanov livrou a Europa das garras de
uma águia, que ia fazendo ninho por onde pousava. No entanto, a essa mesma Europa,
que muito tinha já para purgar, volvido um século e poucos anos mais, vamos dar
com ela chocando um ovo goro que tomou o nome de União Europeia.
Atenção, tiranetes do Ocidente:
Bonaparte, vencido naquele colossal duelo, era um génio, enquanto vós, se algo
vos aproxima do petit corse, será
apenas o mal que sempre conseguis derramar. Salva-nos a distância de talentos
que separa uns e outros!
Prosseguindo:
Na presente conjuntura, como sempre que se lida com o foro
interno dos agentes, que entram em acto, manda a prudência que se fuja a uma
opção tomada com exclusão da outra abstractamente possível. Por esta razão é
que recorro a uma dupla interpelação:
Qual, então, o pecado que vos imputo? – Muito simplesmente, o
da idolatria que alimentais no culto tributado ao capital, em detrimento das
correntes socialistas. Ou não sois capazes de distinguir os dois estilos de
gerir as economias das nações; ou assim procedeis levados por um propósito
acintoso. No primeiro caso há tanta ingenuidade que ninguém lhe prestará fé; no
segundo não vos livrais de que outrem vos chame infames!
Pessoalmente, nutro uma profundíssima admiração pela Rússia,
o que imediatamente se infere à medida que se lê o texto que assino; não é
menor o meu apreço pela Ucrânia. De resto, pergunto como poderia enaltecer-se
uma, desprezando a outra, se a Ucrânia é a matriz da actual Rússia?
A guerra, que as atira uma contra a outra, é um combate muito
especial. Difere, com efeito, do comum dos pleitos bélicos porque este
integra-se na categoria, cada vez mais rara, formada por aquelas lutas em que colidem
dois modos de entender a vida: de um lado movimenta-se uma hoste empenhada em
recuperar, para o homem, a dimensão a que este tem direito; do outro, está a horda,
que já espalhou os seus erros. Contrariamente ao que o cenário imediato mostra,
o confronto não é entre Rússia e Ucrânia. Por mim, caciques do Ocidente, na pugna em curso só reconheço
dois antagonistas, stricto sensu: a herdeira
da Santa Rússia; e vós, que sois a personificação do Mal; pelo meio, resta a Ucrânia que é simples pau-mandado.
De mistura com outros dislates vossos,
surgem as habituais e pouco sentidas farfalhices arrancadas ao intitulado Direito Internacional; às regras de
civilizada convivência; e temperadas de umas quantas coisas mais, bem
repolhudas. Pois bem, essas preciosidades
que tanto vos deslumbram e que pouco observais, têm o dom singular de pôr a nu
como é possível olhar e comportar-se alguém como se quase nada visse. É este o
vosso caso!
O sujeito cognoscente, quando está possuído das mais baixas
paixões que se assenhoreiam do homem e que, entre outros danos, também produzem
o efeito de afectar as suas faculdades mentais a ponto de acabar por ver a sua
própria pessoa pintada de cores que lhe são estranhas, é um ser perturbado.
Desenham-se todos os indícios de ser este o vosso estado psicológico. E, para
cúmulo do desplante, é neste estado que vos apresentais como anjos custódios do
género humano!
Como pensais protegê-lo? – Desde que as doutrinas
antropocêntricas entoaram os primeiros brados de vitória, viveis segundo as
escalas de valores do relativismo com que pretendeis subjugar o mundo: os
vossos códigos cobriram a terra e entulharam oceanos; os vossos exércitos têm continuado
a obra!
Simplesmente, o relativismo destrói-se a si mesmo. Mas enquanto vai durando, traga os seus sectários
como o animal voraz engole a presa. Daqui, pois, se conclui que ninguém guardais. Ides desaparecer assim como
o sistema que vos perverte e os suplícios que dele provêm.
Falais do moderno Direito
Internacional, em vigor, como se
ele fosse uma realidade palpável. Mas não é exactamente como dizeis: há um
nítido erro de classificação. Daquilo que mostrais pretendendo que seja mais um
ramo da ciência jurídica, lá internacional
certamente que o é; agora, o que de maneira alguma pode é ser integrado na
categoria do Direito! O que temos à frente dos olhos é um telónio, à volta do
qual alguns chatins traficam bens que guardam e podridão que semeiam. Não
fossem as lastimosas consequências deste logro, que é um dos vossos ardis mais disseminados,
eu diria hilariante essa simulação impudente. Pois não descubro que outro nome
se lhe possa atribuir, quando é certo que o Direito
Internacional, que sufragais, apesar de não estar privado de juridicidade
em toda a sua construção, enferma no entanto de um vício de tanta gravidade, o
qual basta para lhe retirar dignidade jurídica.
Parai, por momentos, e reflecti um pouco se ainda conservais
esse privilégio humano:
Saturno tem um rival no planeta que habitamos. Sobre este
novo anel, com que asfixiais o mundo, espalha-se uma autêntica babel de documentos e entrevêem-se as mais variadas
instâncias. São Tratados; Cartas; Pactos; Estatutos; Comissões disto e daquilo; Acordos; uma amálgama de Organizações Internacionais; Tribunais de latíssima jurisdição; e,
provavelmente, outras maravilhas que não descrevo por andarem perdidas dos meus
olhos. Os Tribunais, então, postos ao
lado uns dos outros, dariam a imagem de uma cidadela quase sem vida. E é todo
este amontoado que nomeais pilares da Nova
Ordem, que já rompeu a marcha e cujo avanço, até à data, se vem mostrando imparável.
Não é novidade: há muito que vindes instalando esse sistema,
que atirou os povos para a esfera do pensamento onde se adultera a pureza do Ser, que o mesmo é dizer, a todos sufoca
no quotidiano do convívio político, sob a medonha prepotência que se cifra na
tirania omnium erga omnes.
Para além dos vícios ontológicos, que transporta, a Nova Ordem exibe ainda deformidades,
cujo grau de abstracção é inferior e, por isso, estão mais perto do alcance do
homem médio. Palpita-me, contudo, que as insígnias desse paraíso valem tanto como, por exemplo, umas quantas peças
heráldicas bem polidas e que um dia poderão encantar os visitantes de algum
museu de antiqualhas.
Até lá e por ora, só isto a inquirir:
Será cordato falar de Direito
Internacional, enquanto lhe foge um poder judicial com eficácia? Estará de
pé algum Estado soberano, sem tribunais que funcionem? – Quem diz Direito, diz tribunais! Segue-se
que onde não há tribunais, também aí não existe Direito por manifesta
superfluidade! E onde falta Direito, não há soberania!
Na verdade, não se concebe um edifício de leis, de cima a
baixo e de uma ponta à outra, onde falte a acção dos tribunais. Não trato aqui,
propriamente, dos órgãos jurisdicionais quando abundam em erros de ofício ou de
malícia, porque, naqueles que ataco, a doença é outra – bom número de vezes, nem
reagem quando, para essa missão, são solicitados. Ora Direito, sem órgão
judicial vivo, não é corpo saudável e afasta de si a dignidade da categoria institucional
que se arroga!
E nem se diga que cada Estado soberano acolhe, no seu direito
interno, as normas cuja tutela é descurada pelos sobreditos tribunais, os quais
se situam em plano superior porque são alegadamente instituições de Direito Internacional. Aqui, duas vias
se poderiam abrir: ou abandonais o vozear que soltais, numa repetição constante
dos efeitos positivos do vosso Direito Internacional;
ou lhe dais uma estrutura completa, perseguindo o vosso arquétipo político e,
se não vos falecer engenho suficiente, instituís a Soberania Mundial, o que desde sempre é a jóia por vós mais cobiçada.
Creio, porém, que não o conseguireis. Pois como se poderia
então manter o conhecido Direito Internacional
sem que logo se criasse um Direito Mundial? Para lá desta barreira, outras razões
há para a minha descrença, as quais irão aparecendo até final do que hoje lanço
nesta página:
A primeira via, por mim indicada, requer que soubésseis ouvir
os outros e isso equivale a pedir-vos demasiado; no que diz respeito ao Estado Universal, há longuíssimos anos que
vêm sendo feitos alguns ensaios nessa direcção. Estareis tão desprovidos de massa
encefálica, a ponto de esse defeito vos impedir de notar, já não digo a
amoralidade dos papéis que representais, invocando uma suposta sacralidade do Direito Internacional, mas sim a falta
de nexo lógico que se descortina na vossa actuação? E é este um atentado, do
qual não ficais a salvo do ferrete que vos é colocado, porque, na qualidade de
seus autores, vindes maculando a majestade do Direito.
Na vossa arbitrariedade, sobrará espaço para nela se incluir
a verdade apodítica de que é o sentimento jurídico que gera a lei e não o
inverso? Afigura-se-me o contrário. E porque é sina vossa subverter o
sentimento, não há que admirar dos baldões do mundo!
Olhai e meditai em consonância:
É ponto incontroverso que está vedado a qualquer nação chamar
a si o ius puniendi para alcançar o
que tem por justo, enquanto lhe sorrir a possibilidade de recorrer a meios
incruentos, fora o que lhe assiste legitimidade para declarar guerra. Repetis
esta verdade incontestável num autem
genuit interminável. Perfeito! Porém, mais perfeito sairá quando
notificardes e, sobretudo, explicardes a uma opinião pública, cada vez mais
embrutecida, como foi que se desenvolveram casos de quebra da paz ou com desfecho
muito próximo desse resultado, e de que está repleta a história do vosso celebérrimo
Direito Internacional.
Reporto-me, bem entendido, aos episódios marcantes após o
nascimento da sacrossanta ONU, essa reles
comediante de feira que não vos cansais de proclamar como sendo paládio dos
direitos humanos. E apenas contam estes sucessos porque antes, como é voz
corrente, não se via mais que a desolação de um deserto de garantias, onde só a
vontade do mais forte era lei.
Nem sempre! E ainda quando o foi, vive-se hoje diferente comportamento?
– Para melhor, certamente não será!
Basta atentar nos chamados crimes de guerra: Nos tribunais
que os julgam, quem é réu? – É o vencedor? E de que banda provêm os juízes? –
São escolhidos de entre os vencidos?
Vem-me à memória este sucinto trecho arrancado às lições de
um mestre coimbrão: «O Direito é a expressão de um justo coactivamente imposto:
força que seria violência, sem o apoio da Justiça; Justiça que seria precária,
sem o apoio da força!»
Frase lapidar, esta; e carregada, que está, de aguda
sabedoria! No dia em que, criteriosamente, vier a dispensar-se a coercibilidade
das sentenças judiciais, os tribunais perdem razão de existir. Os vossos, especialmente,
bem podem ser despejados pela janela mais à mão!
Soará, nesse momento, a hora de entrada num estado de
felicidade quase sobrenatural. Para tamanha empresa, requer-se Fé! E não é o vosso agnosticismo que nos
transportará a esse paraíso renovado!
Prestemos atenção e ver-se-á, de imediato, que a realidade circundante
é claramente outra. Com efeito, se é delito o ataque da Rússia à Ucrânia, que
nome reservais aos embargos levantados contra ela? Ou foram essas medidas
decretadas judicialmente nalgum dos cantos, onde se acoitam os magistrados de qualquer
desses órgãos, que tanto venerais? Se fosse o caso, tornar-se-ia forçoso convir
que esses recantos andam bem arredados da aura pública, porque nem sombra de
sentença se avista no horizonte. Aliás, como poderia ser de outro modo, quando
de todos é conhecida a ineficácia dos órgãos competentes, padecendo os mesmos de
uma tal inanidade, que nos autoriza a duvidar da sua existência no âmbito dos
factos concretos. Ainda agora se tratou desses seres fabulosos.
Líquido, aqui, só temos que reprovais
à Rússia, o que levais a cabo de forma primorosa. Despertai, pois, de um sonho
que, desde há muito, vai atirando convosco para o estado de quem entrou num delírio
colectivo. Fazei-o, sem tardança, se ainda quereis arribar a porto de salvação!
As sanções económicas que é de uso decretar em situações
análogas, são espelho do cinismo de quem as põe em vigor. Pouco preocupado com
abstracções, direi mesmo que algo de perverso subjaz a esta táctica. Poderá
admitir-se que escapem aos seus autores os efeitos reflexos de tais medidas,
como já antes se salientou nesta peça?
Será então de toda a prudência que cureis no que tendes à
vossa volta, pois sempre que os poderes públicos se revelam impotentes para
fazer observar as leis que regem uma comunidade, logo deveríeis ver que assiste
aos particulares a faculdade intangível do recurso à acção directa como
resguardo dos seus próprios direitos. Isto assim é na ordem interna de cada
Estado soberano. Subindo ao plano internacional, se os órgãos competentes para
impor as normas validamente estabelecidas, mostram uma inquietante debilidade,
que os leva a vacilar no cumprimento desse dever, cada nação é titular de um
direito análogo!
Importa ter presente a proximidade que, por vezes, pode
existir entre a acção directa e a legítima defesa preventiva. Bastante
elucidativo a este respeito é o caso da célebre crise dos mísseis de Cuba,
quando o confronto iminente só não deflagrou porque a nação ameaçada viu que o
risco de agressão se havia sumido.
Não é, pois, de esperar que a nação em perigo, renuncie a um direito
cristalino e superior àquele que, algumas vezes, o esmero académico hesita em
classificar de acção directa ou de legítima defesa preventiva. Antes, pois,
desse exercício de sistematização, é da mais elementar prudência e sagacidade
olhá-lo como um direito natural, sem mais qualificativos. Eis porque essa
nação, sempre que não depare, em tempo útil, com outro meio que lhe permita preservar
os valores que dão suporte à sua identidade própria, está legitimada para
reagir. Se a análise de todos os quadros de guerra, para saber da oportunidade
de cada uma, se reveste de grande delicadeza, este tipo de situações – acção
directa ou legítima defesa preventiva – não
é decerto dos menos complexos. Já acima foi este
caso aflorado.
Acudam, gritará horrorizado o vosso descaro pretendidamente
pacifista! E os que dele fazem timbre, com maior destaque, acrescentam que o
remédio contra a guerra não está em normativos mais ou menos justos. A esses,
dou-lhes razão.
Mas pergunta-se: haverá, porventura, alguém de consciência
tão adormecida ou de coração tão cheio de fereza que negue as marcas de quanto a
guerra é terrível?
A tragédia é começá-las. E a culpa assenta principalmente nos
agentes patogénicos que são a sua causa: entre eles, como encarnação de um disforme
paradoxo, apareceis na primeira fila, entrajados numas vestiduras que já não
disfarçam a vossa procedência satânica!
Não venho aqui reabrir o arquivo de todas as guerras passadas
e dos nefandos crimes que, no seu decurso, se cometeram. Bastará apenas
recordar, como exemplo, Hiroxima e Nagasáqui. Disto, pouco se fala. Porque
será? Óptimo seria se os que aspiram a doutrinar o mundo com uma catequese que
vê fugir os seus prosélitos, não se comportassem como tendo memória tão curta.
A guerra oferece, pois, um quadro de catástrofe: esta
conclusão não admite contradita! É triste, mas constitui uma realidade que
perdurará enquanto os povos se conservarem insubmissos ao imperium das leis eternas. Contudo, a responsabilidade do desastre –
quando é plural – não cabe a todos no mesmo grau, nem começa no preciso instante em que se ouve o troar de canhões, sempre que
o choque é desejado e preparado com uma antecedência bem sensível. Isto imprime
a nota mais aflitiva à generalidade dos conflitos bélicos, acarretando uma mais
severa censura porque é com absoluta clareza que aí se descobre um propósito elaborado
antecipadamente.
Para quem, como vós, tanto insiste na solução pacífica dos
litígios inter gentes e não vos
cansais de alardear poderes, de que vos dizeis investidos, não é hora de uma
catarse purificadora? Infelizmente, se soou, não foi ouvida: pelo menos, é
certo que não seguistes o caminho nela indicado.
Neste ponto, a vossa posição, como ela se desenha perante
olhos que queiram ver, é com toda a nitidez diferente da minha. Vem incubada na
orgia dos prostíbulos em que maquinais a ruína dos povos. Tomais lugar nuns
antros de podridão, onde corre a mais letal peçonha que jamais trasbordou de
peito danado e que, por vós espalhada, vai criando um deserto de valores éticos.
Que conste mais uma vez: a guerra é inegavelmente um flagelo
para quem sofre os seus efeitos. Deixa, atrás de si, um cortejo imenso de dor
humana, a que não falta a ruína material.
É, pois, de não festejar. Mas uma é a atitude do insensato
que se proclama, sem restrições, contra a guerra; e outra, completamente
distinta, a de quem, num juízo equilibrado, declara que não é a favor dela. O
horror do primeiro, tantas vezes farisaico, por norma vem acompanhado de uma
série infindável de lamúrias, qual delas a mais desprovida de genuinidade.
Para se acertar com o estrito conceito de guerra, torna-se
imperioso distinguir entre guerra justa e guerra injusta. Definido o âmbito da
guerra justa, toda aquela que caia fora da linha, que a delimita, é uma guerra
injusta. E, como tal, nem o nome de guerra lhe devia caber, pois mais não é que
matança hedionda!
Na tarefa de estremar os dois campos, não podemos esquecer a notabilíssima
escola que fixou as bases do que é a guera justa, ou a paz dinâmica como,
inspiradamente, também foi chamada. São aqueles que, no rasto luminoso de S.to
Agostinho e de S. Tomás, constituíram a poderosa legião formada nos
claustros universitários de Salamanca. De resto, já a Sagrada Escritura nos
traz notícia de guerras conformes à Justiça.
Sustentar que a guerra é invariavelmente um comportamento
iníquo, sem atender a um quadro em que se verificam as condições que a legitimam
como único meio de defesa colectiva, tomar esta posição, é pois um juízo
viciado se não for maldoso. Quem tal dislate profere, nega o direito à defesa
individual. Salvaguardadas as devidas proporções, as duas situações, no fundo,
são análogas. E, para marcar de forma transparente a próxima identidade que entre
elas existe, cumpre afirmar que casos há em que sobre o titular do recurso à
guerra, recai não só esse poder como ainda fica sujeito ao ónus de a mover
contra o injusto agressor. Tal qual se passa no universo jurídico de cada
estado soberano, quando deparamos com o socorro prestado a terceiro. Mais um
traço a unir as duas categorias de defesa!
É conforme ao direito dos povos a guerra que a Rússia leva a
cabo contra a Ucrânia? Logo a abrir esta exposição, eu disse que não invadiria
esses terrenos. Não encontro dados fiáveis que me permitam apreciar, ponto por
ponto, esta questão candente e após isso, estar apto a pronunciar-me.
Limito-me, portanto, a emitir o que a minha intuição dita desde o princípio
deste conflito armado – a Rússia, cruzando a Ucrânia em pé de guerra, oferece-nos
apenas o exterior visível dos seus objectivos profundos, porque aquilo que a
Rússia combate é o Ocidente, que hoje
vagueia, esquecido de um passado histórico que renegou, perdendo desta maneira
o que de muito valioso esse passado reuniu.
Mas nem é preciso retroceder muito no tempo para observar
como o Ocidente é traidor. Com tanta
deslealdade fere os valores, que o informaram, que não hesita morder agora,
aquele a quem antes lambeu as mãos, e que porfia em tratar como se fora o
modelo ressuscitado desse corpo que ajudou a nascer.
Como se deu isso? Pois bem: nada teve de complicado; foi
somente vil, na correspondência exacta do carácter de quem o praticou. Ou seja,
vós!
Ouvi, pois:
Na verdade, o horizonte, que nos circunda, traz-me à memória
um dos maiores abalos que fizeram estremecer a civilização humana, e cujos
efeitos não deixarão de se sentir, enquanto a vossa desgraçada mentalidade
ditar leis. Refiro-me, ao que se viveu no ano de 1917, quando a autocracia
imperial se afundou na velha Rússia. Nessa conjuntura, que fizeram as potências
de então? Acorreram como amparo do poder deitado por terra? – Todos sabemos que
isso não aconteceu: e quando não hostilizaram, primaram pela omissão de
qualquer auxílio relevante!
Em sentido contrário, nenhum sinal que proibisse ir em ajuda de
alguém que, pela primeira vez, aparecia no cenário internacional. O que veio a
suceder, marcando no campo dos factos concretos uma manifesta assimetria, que
denuncia bem a equidistância dos
benfeitores, relativamente às forças que, na Rússia, entraram em choque.
Eis uma amostra do que, então, no jogo das diplomacias e de
muita perfídia agarrada, decretou a morte da Rússia dos Czares.
Por essa ocasião, quem abriu, a Lenine e a outros proscritos,
o caminho de regresso à Rússia senão a Alemanha imperial? E quando Lenine, ao
notar que o fruto ainda não tinha amadurecido o suficiente para que ele trepasse
ao poder, busca refúgio na Finlândia, quem é que lhe estende a mão salvadora, a
ele e ao projecto que sempre acalentou? Terá sido o proletariado daquele país, ou o apoio
chegou da banca?
Com efeito, foi o mais genuíno distintivo da burguesia capitalista
que valeu ao prócere vermelho. Não podia ser mais apropriado: capital e
socialismo em estreita união! Como é facto notório, quem ganhou com este
episódio foi o capitalismo imperialista. Teve o mundo o que fatalmente havia de
suceder e, sem temeridade, pode acrescentar-se que colheu o fruto que apeteceu.
Assim continuará até que haja uma profunda reforma na economia, o que exige
antes outra mais difícil de alcançar e
que é a recuperação dos valores morais, por vós tão castigados e adulterados!
Este concubinato causa surpresa a muita gente, que nem se
dispõe a acreditar nele. Não é a repulsa verberada pela moral: trata-se, basicamente,
de uma acentuada carência de formação intelectual. A vossa amaldiçoada cartilha,
posta a correr pelos bonzos da informação, conseguiu fazer passar a ideia de um
antagonismo que não existe.
Quanto à Rússia, se viveu 70 anos de bolchevismo, em grande
parte a vós o deve como é patente no que se vem expondo. Cessai, portanto, de a
atormentar por um erro de que fostes culpados e que continuais na ânsia de o
ver frutificar por esse mundo fora. Atentai bem, demónios infernais, no que
sabeis desde sempre: o capitalismo é a semente do socialismo lançada ao chão
onde floresce o comunismo, fronde da árvore que assim medrou ao deitar raízes
naquele solo.
Capitalismo e socialismo, além desta relação de origem, têm
outra nota a ligá--los: são como dois mancos em que cada um se serve da perna que
ao outro falta. São, pois, dois sistemas aleijados, condenados a coexistir,
enquanto na sua relação não se operar uma mudança tão grande como aquela que
separa a animosidade de um estado de concórdia.
Por acção do que parece ser ironia, o socialismo, enquanto praticado
nos cânones que os seu corifeus apregoam, é escravo de quem o gerou – o
capitalismo. No palco em que se movem estes actores e como se mexem, é visível
que não é pouco o que, ao segundo deles, rendem as mais-valias que os
tentáculos das multinacionais vão sacar do baixo custo de produção que se vive
no mundo socialista.
Urge que não faleça nos povos o sentido que, a todos subjaz,
e leva a que nos precatemos contra um mal que vem crescendo de forma apavorante.
Deste horrível contubérnio, há muito que despontou um
fiscalismo cada vez mais pesado. É a outra via por onde escorre o veneno.
Entretanto, não esqueço que a malvadez das vossas entranhas vos torna obtusos; e
se tanta é que vos impeça de apreender a verdade contida nestas palavras, a
cura só poderá ser obra de um milagre!
Até quando se aguentará a carga deste jugo? Deus escolhe quem
quer, quando quer, e se quer para cumprimento dos seus desígnios. De momento,
guardo no íntimo do meu ser, a convicção de que a Rússia falará com voz eloquente
no âmbito desta matéria. Por isso é que a atacais com tanta sanha! Se vos dói
ouvir isto, apenas vos resta que procureis solução numa profunda metanóia.
Os vossos argumentos, desde o germe deste conflito, nunca
convenceram as mentes mais esclarecidas quanto à real natureza da contenda que,
no Leste, se dirime a ferro e fogo.
Na verdade, as vossas razões estão esvaziadas de sentido e de tão repetidas,
que vêm sendo, tiveram o condão de provocar o fastio àqueles que as escutaram.
Graças a Deus que se vai chegando a este ponto!
Que quereis, pois, impostores da verdade? A mim, não me colhe
de surpresa a volubilidade do vosso proceder, uma vez que, há longo tempo,
conheço quanto sois malignos. O vosso desplante assume uma proporção desmedida.
Depois dos festejos celebrados após a queda do muro de Berlim – do qual, de
resto, também fostes cabouqueiros, como atrás disse – sucedeu o ofício de serdes
agora verdugos da Rússia, lançando sobre esta nobre nação o labéu infamante do
seu recente passado comunista, do qual, acabei de o lembrar, partilhais a
autoria.
O vosso agir é, inequivocamente, o de quem suspira pelo
regresso à disjuntiva desses anos: ou o Tio
Sam, com a paisagem daquilo a que dais o nome de amplas liberdades; ou a
aparição do Urso de abraço
asfixiante!
Cuidais que havemos de recear outro leninismo; ou estalinismo;
ou outro avatar marxista? Se é o caso, esperemos sinceramente que estejais
preparados, para enfrentar esse retorno plenos de ardor, aquele mesmo que se
viu em 1917. De outro modo, quem esqueça a dedicação com que abristes os sulcos
do edifício bolchevista, cujos campos, nos vossos torpes manejos, viestes
depois adubar com muito sangue inocente, esses, friso bem, não terão direito a
estranhar o que, por este andar, infalivelmente se há-de repetir. A menos que
se erga o campeão intimorato e, brandindo a clava, com ela esmague a cabeça da Besta
apocalíptica!
Por conseguinte, amos do Ocidente,
tomai tento e vede que cautela nunca será demais. O vosso crónico maniqueísmo,
ao contrário do que imaginais, não sobreviverá na duração dos tempos. O Bem triunfará e a paz descerá dos Céus
sobre os homens. Não a paz de que vos dizeis arautos e cujo pregão passa pelas
vossas bocas enganadoras, mas sim aquela que repousa sobre os valores perenes
da Justiça eterna, ou seja, a paz que
nos trouxe Cristo Redentor!
O rodar da história mostrou, ainda recentemente, como se
passa dos ergástulos de um qualquer gulag
para as delícias do paraíso
capitalista – é um dizer adeus ao cárcere para logo ir enterrar-se no aviltamento do lupanar mais à
mão.
Das vossas bocas não pára de sair em jacto a dialéctica de um
romantismo falso e oco que cheira a bafio. Não se vislumbra justificação para
este recuo no tempo quanto ao modo de comunicar.
É diáfano o que trato e que está no cerne de tudo que abordei
até ao momento. E faço- - o num estilo despido das fórmulas de um sentimentalismo
piegas e hipócrita! Enfim, sem amenidades na palavra, dentro do jeito em que me
eduquei e também por temperamento, findo como iniciei – volto à guerra na sua
brutal crueza!
Desde a primeira linha que me debruço sobre um caso que não
se reduz a mera questão de forma, porque substancialmente todo ele é muitíssimo
complexo. E como se esconde sob o manto astucioso da mentira, o seu exame
merece um cuidado ainda mais aturado. Nesta sequência, muito surpreenderia que
se guardasse silêncio em redor dos danos colaterais. No meio destes, é tecla
muito batida a que nos dá conta das perdas humanas entre a população civil, mormente
quando envolve crianças.
A morte sempre provocou angústia no ser vivo. Porém, a
morte temível não é a morte do corpo; é
a morte da alma! No entanto, a força devastadora que a morte física exerce
sobre a sensibilidade de cada um, é não só compreensível como até traduz uma
reacção, à qual se há-de tributar um elogio. Contudo, a este propósito, cabe interpor
umas palavras que, por imperativo de consciência, não me é lícito calar.
Derrama-se, pois, muito choro pelo ror de mortos que a guerra
vai provocando. Essa dor – insista-se – magoa imensamente mais se as vítimas
são crianças. Tudo em obediência a sentimentos de humanidade. Ouço, pois, esses
choros por todo o lado e nada tenho a opor. Pena é que, em contrapartida, veja
muitos rostos enxutos das lágrimas que não caíram por aqueles que não chegaram
a ser crianças porque, antes disso, os trucidaram nos ventres das próprias
mães. É natural que essa mortandade não perca em relação ao número de baixas
mortais e que são resultado directo de um estado de guerra. Todavia, não irei apelar
a estatísticas mais ou menos reais, para mostrar o que destoa nesta diferença
de comportamentos. A vida humana vale tanto que não ocupa espaço em soma de
qualquer espécie, porque o número é grandeza que ali não tem lugar. Para vós,
fica a tarefa de pesar essas vidas abortadas como quem conta votos: é uma
digníssima ocupação democrática!
Sabeis, Herodes das modernas eras, a causa justificante da
tamanha infâmia que são estas incessáveis matanças de inocentes? – Receio bem
que não! E não tenteis ocultar a malvada atrocidade, a que aludo, entoando
hinos de indulgência para com os protagonistas desse cobarde açougue,
garantindo que reservais as mais ásperas censuras para o facto sub iudice.
Se porventura avançásseis com esta justificação, impunha-se
saber porque não seguistes até hoje na mesma linha, clamando que os vossos
raios não fulminam Gregos nem Troianos e que, nessa ordem de ideias, vos
limitais a ser contra a guerra que uns e outros travam. Porém, o que até agora
se viu, contraria a possibilidade de qualquer resposta neste teor. E a razão é
que, desde o inicio do estado de guerra entre Russos e Ucranianos, nem uma
pausa houve no ataque cerrado, repleto das culpas que atribuís aos primeiros,
soltando as barbaridades do costume!
Que legitimidade invocais para punir os Russos pelos crimes que
lhes imputais, ainda por cima sem que se conheça, por enquanto, qualquer
decisão condenatória emanada de órgão competente? Ou será porque, há muito
amarrados de pés e mãos à outra parte em conflito, não sentindo força para
desatar esses nós, teimais em sonhos passar a imagem de uma integridade que vos
permitiria alegar uma equidistância capaz de vos transformar em julgadores
deste pleito? Resposta afirmativa à última pergunta, só teria cabimento junto
de quem quisesse rebentar com qualquer teatro deste mundo, numa explosão de
risota colectiva!
Regressemos ao que vale como triste drama que é:
Desconfio que a explicação do quadro real desta guerra entre
Rússia e Ucrânia está na resposta afirmativa à última pergunta, não obstante o
que com ela transporta de risível e descontando, é claro, o que ali coloquei acompanhado
de uma ponta de sarcasmo! O mais grave, contudo, é que a vossa aliança com uma
das forças em confronto não é um pacto de alma e coração, como devia ser
qualquer laço que une os homens, porque é uma estratégia de cizânia que só para
vós tem utilidade – não é apenas ao inimigo que inflige mal; atinge também
aquele a quem chamais aliado! Este juízo, além de espelhar o que se passa
naquela parte do mundo, é sobretudo um juízo de valor moral pelo que pouco eco
encontrará entre vós. De antemão, o sei. No entanto, aqui fica porque é um
ponto da matéria que bem pode considerar-se como integrando o âmago desta tragédia
lancinante.
Perfilados lá para os confins da Europa, um diante do outro,
estão pois dois beligerantes que se vão matando no fluir dos dias passam. Pelo
meio, vêm soando agora e depois alguns rumores de negociações; simultaneamente,
consta que a luta no terreno vai aumentando em dureza com todas as suas
consequências. É muito possível e, se acontecer, nada tem de inopinado dentro do
desenvolvimento de uma lógica de guerra.
De que lado paira a razão? Esta pergunta, se não se levanta
em todos os palcos bélicos, faltará por pouco. Neste, não me repugna declarar
que não vejo com a clareza que baste a afirmar, categoricamente, quem é
agressor e qual o defendente. Já o dei a
entender ao longo do que aqui venho escrevendo. Posso, como já fiz, acusar o Ocidente, este amálgama de estofa moral quase
impossível de definir, como sendo o grande responsável da catástrofe e, se não
o maior, talvez o único culpado pela fogueira que arde no Leste europeu.
Não constitui surpresa, para mim, ver as posições que tomam
os que vivem agarrados a conceitos de uma nacionalite
aguda. Não comungo desse destemperado apego a uma doutrina de que se diz
depositária uma força política – a extrema-direita – que sempre achei um
desperdício de energias.
No universo político, não conheço mais que Ordem, ou seja, a lei natural que, na
sentença tomista, é participação da lei eterna na criatura dotada de razão; e Revolução
em que, de um extremo ao outro de uma linha, se coloca quem nega essa lei. Como
se intuirá sem dificuldade, sou pela Ordem!
Por isso, de novo afianço que não ouso tomar partido entre os
que se defrontam de armas na mão. Em verdade, não me deixarei arrastar por essa
corrente de paixões e, por isso, não me pronunciarei declarando que temos em
campo duas forças estranhas uma à outra e visceralmente inimigas, porque hesito
entre sustentar que a Ucrânia é russa ou
que a Rússia é ucraniana. Não dito leis em lado nenhum e muito menos em casa
alheia; e como nunca me enchi de crenças democráticas, desse tipo de governo que
é delícia quando os fados correm de feição, e mau se os ventos mudam, eis-me
dentro de um pensamento próprio, sendo assim levado a esperar que estes povos
escolham o rumo certo e naveguem de braço dado.
Menoscabar o inimigo, não raras vezes é de funesto resultado!
No couto selvagem, do qual este Ocidente tormentoso,
a cada momento, se aproxima mais, breve se provará como todo aquele que não participe
dos padrões míticos que a Besta cultiva,
depressa irá provar os requintados gozos que a tolerância democrática reserva
aos impenitentes!
Toda esta peça foi iniciada e, até aqui, escrita sob o peso
de muita amargura. Não vale a pena apontar motivos. Quem precisar que lhos
enuncie, também nada entenderia do que me ouvisse. Dou graças a Deus, porque sinto
disposição para fechar com estas palavras, que ressumbram esperança e optimismo:
O mundo é presa da Revolução.
Anseia por quem venha salvá-lo. Ora esta
mudança pede um grande esforço.
A Rússia é forte e voluntariosa. Nesta hora, os sinais de
vida do espírito estão gravados no estandarte russo. E ali se mostram muito
mais vincados do que em qualquer outro pendão que em todo o mundo se possa hastear!
Esses sinais chocam-se com os que se lêem na cartilha de um Ocidente abastardado. Por outro lado e
ao mesmo tempo, a Ucrânia, que é altar de Santa Olga e de São Vladimiro, nada
deve a ninguém, se a medimos em valor anímico. Quando também ela acertar com o seu
verdadeiro destino, a ordem escrita na lei eterna regressará ao seio desta
gente tão experimentada no decurso dos séculos e de raríssima bravura!
LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI !
Joaquim Maria Cymbron