Portugal, diz a lenda (e a lenda pesa alguma
coisa na memória dos povos, eu entendo mesmo que conta muito nas suas vidas)
teve o seu crisma em Ourique. Aí recebeu a graça de ser tocado pelos santos
estigmas, ainda quando mal nascia num baptismo de sangue, que derramava
generosamente contra o Mouro infiel. Seguiu dando testemunho da fé, em que fora
confirmado nas planuras transtaganas. Hoje, porém, nega-se Cristo em Portugal.
Como Pedro também Portugal O negou não uma vez só: negou-O em 1820, em 1910 e em 1974. Em 1820, pela boca de uns românticos demagogos, Portugal nega Cristo com o liberalismo; surge 1910 e os jacobinos renegam-n'O com o laicismo e o igualitarismo; cai-se em 1974 e de novo se nega Cristo com o socialismo, desde o socialismo reformista da social-democracia até ao socialismo que tem ao menos a sinceridade de se proclamar internacional e que é o dos comunistas.
Em todos estes momentos, foi a Revolução que venceu. A Revolução que é negação; que é subversão; e que é privação: privação do bem; subversão de valores; e negação da verdade!
Mas se Portugal nega Cristo, Portugal nega-se a si mesmo, Portugal então já não é Portugal, porque se tornou ANTIPORTUGAL. Com Bossuet entendo que a marcha da história universal «dépend des ordres secrets de la divine Providence.»1 Procurando acompanhar o voo da Águia de Meaux e apoiando-me noutros pilares da Igreja como S.to Agostinho e Orósio, também eu acredito no pecado social. E o pecado social de uma nação cifra-se nas revoluções políticas, estas são sempre o seu resultado inevitável. Em Portugal, o seu quadro, até ao presente, vê-se nos acontecimentos vividos entre 1820 e 1974.
E, agora, uma de duas:
Ou Portugal chora amargamente a negra traição cometida pelo ANTIPORTUGAL, para voltar em martírio ao cumprimento da sua missão evangelizadora e terminar em glória; ou sofrerá a sorte do Iscariotes, destino reservado àqueles que entregam o Filho do Homem de Quem tudo recebemos. Ou rememorando o exemplo do Antigo Testamento, se encontram em Portugal os trezentos homens que Gedeão, ajudado pelo Senhor, levou à vitória contra Madian; ou não sairemos do cativeiro em que nos lançou a heresia do ANTIPORTUGAL. Finalmente, ou Portugal paga, com juros, o que deve o ANTIPORTUGAL; ou veremos a condenação irremissível de um réu relapso, lá para o lugar onde há pranto e ranger de dentes.
Referi acima que 1974 nos trouxe as legiões do socialismo. Enquadrei-as no corpo do mesmo exército, porque julgo que com o socialismo, em que os povos se embriagam, se passa aquilo que, já no século passado, Sardá y Salvany dizia a respeito do liberalismo: «Es asunto de escala alcohólica y nada más.»2 Por outras palavras: é a intemperança que só varia de grau. Pecado capital, portanto!
Esta é a morfologia do sistema vigente, entre nós. Para conhecer o seu funcionamento, impõe-se perguntar:
Quem elabora as leis que nos regem? – Parte delas é a Assembleia da República! Quem a compõe? – Os deputados! Quem os escolhe? – Aqueles que têm capacidade eleitoral! Onde é fixada essa capacidade? – Na lei eleitoral! Quem faz tal lei? – A Assembleia da República! Formada por quem? – Pelos deputados!
Consideram alguns que isto é o exercício da democracia. Está correcto, porque se trata de um ciclo vicioso!
Mas a Constituição, que regula e comanda todo este processo, não rompe esse ciclo? --- Analisemos o caso:
Quem redigiu a Constituição? – A Assembleia Constituinte! Como se formou essa Assembleia? – Em obediência aos ditames do Pacto MFA - Partidos!
Há quem chame a esta operação soberania popular e poder constituinte democrático. Não serei eu a opor-me, porque isto é a mistificação em alto grau. Logo, devem ter razão!
Ora é esta a Constituição que, votada em consonância com esse Pacto, nos lançou a praga socialista. Interessa todavia, que a Constituição seja ainda objecto de análise quanto a outro ponto: trata-se do poder dos deputados constituintes, poder latíssimo que apenas foi condicionado pela vontade discricionária do MFA.
Isto é uma barbaridade política e jurídica. É uma monstruosidade política porque os eleitores ficaram à mercê dos humores dos senhores deputados; é uma aberração jurídica porque a própria dogmática do direito a repele.
Com efeito, quando o direito privado marca bem a extensão da figura jurídica que é o mandato, procura por este meio evitar que, no uso da sua capacidade de exercício, possa uma pessoa ofender os direitos inalienáveis da que lhe conferiu esse mandato.
É estranho que a porta que tão zelosa e compreensivelmente se pretende fechar neste campo, venha a ser arrombada no exercício de uma faculdade de direito público. Realmente, o voto no sistema de sufrágio em moldes tais como ele hoje se pratica, outra coisa não é senão um mandato e um mandato muitíssimo vago, que permite as maiores arbitrariedades.
É, na verdade, o direito público que define o direito privado. Na prática da democracia, pode, deste modo, chegar-se ao extremo de se sonegar, por esta via, o que, na outra, era inatacável. Ora bem: todo o princípio que vise proteger a capacidade de gozo como direito que é da pessoa humana, deve ser tido como um princípio cuja universalidade e necessidade são de carácter absoluto. É precisamente isso o que não se verifica naquilo a que dão o nome de democracia.
Mas, então, qual a alternativa?
Em primeiro lugar, torna-se imperioso afirmar a existência de uma causa que não se confunda com a natureza do poder de representação, ou seja, uma causa extrínseca a esse título de legitimidade. Deve-se fazê-lo, sem rodeios nem escamoteações, pois só assim se evitará a petição de princípio, e não se cairá em contradição. Seguidamente, temos de proclamar a necessidade do mandato expresso, conferido dentro de uma competência bem especificada, visto que é este o único meio capaz de fazer ouvir, autenticamente, a voz da nação.
Utopia? – Uma utopia que já esteve em prática na nossa velha monarquia, quando os procuradores iam a Cortes contar os seus agravos aos Reis de Portugal.
Certo é que as Cortes só reuniam quando o monarca as convocava e não tinham mais que poder consultivo. Aqui, porém, convém que paremos um pouco para recordar em breves linhas um processo que se arrastou durante séculos e que acabou por olvidar uma instituição, em que se falava com desassombro, não poucas vezes tocando a rudeza, mas onde repercutia o eco fiel da comunidade nacional:
Quando o humanismo apareceu, com ele surgiu uma nova cavalaria: os legistas. Entre nós, na precisa altura em que as Cortes desempenharam um dos papéis mais significativos ao longo de toda a história portuguesa, é que se assistiu ao paradoxo de estar nelas talvez aquele que mais fortemente as influenciou e que, ao mesmo tempo, foi em Portugal o primeiro grande campeão da ideia absolutista do poder real, ao jeito e sabor justinianeu, que ele bebera nos centros universitários de Itália. Trata-se de João das Regras, cuja acção está abundantemente documentada em fontes acreditadas e foi divulgada por Alexandre Herculano, num romance sempre apaixonante de ler.3
Os anos rodam e sobe ao trono D. João II, o homem que sabia haver tempo de coruja e tempo de falcão. Este monarca, príncipe perfeito, protótipo do estadista, aquele que poderia ter servido de modelo a Maquiavel, era contudo um homem plenamente consciente da transcendência da missão que exerceu, com tacto e até com génio. Todavia, estava já aberta a senda que conduziria ao despotismo iluminado, fenómeno que, de resto, se não circunscrevia a Portugal.
Entra em cena Sebastião José de Carvalho e Melo, pejado das doutrinas dos enciclopedistas, espírito bronco, monstro de orgulho, tirano feroz, «infame imortal», conforme lhe chamou Camilo.4
As Cortes eram já uma saudade. Antes de Pombal, tinham reunido a última vez para garantir o trono na descendência de D. Pedro II, e reuniriam ainda em tempo de D. Miguel para proceder à justa aclamação deste príncipe, o derradeiro soberano legítimo que Portugal teve. Instalavam-se as condições propícias à Revolução.
A um poder dos reis que, abusivamente, se arrogava de direito divino, como era o do despotismo iluminado, responderam os corifeus de 1820 com a pretensa soberania popular, de igual modo ilimitada. Quando os homens perdem o justo equilíbrio e a recta noção das coisas, sentem a necessidade de se agarrarem a fábulas, a mitos, a deuses vãos. A uma divindade falsa como era a majestade real, substituía-se o império ao mesmo tempo caótico e opressivo da canalha que tripudiava nos seus instintos bestiais. A uma arbitrariedade que, por vezes, até reconhecia limites, sucedia outra, mais desenfreada. E se a esta balbúrdia, não se opuser uma reacção sadia, na qual pulse a vibração de uma ordem estabelecida segundo a lei natural, a alternativa será, fatalmente, a vertigem de um abismo sem caminho de volta.
Quando se revolvem os sedimentos que a história vai depositando ao longo do seu curso, aqui como noutras nações cujo berço foi cristão, vê-se que foram violentamente arrancadas as raízes tradicionais: a origem do moderno parlamentarismo, arauto de interesses exclusivos e muitas vezes inconfessáveis, assentando remotamente nas falácias dos doutores da Itália humanista, repousando num direito simultaneamente individualista e imperial como era o direito romano da decadência, embrião do direito ululado pelos pregoeiros da democracia, direito algoz de uma representação genuína, direito que é contubérnio de valores antagónicos, antagonismo que é benquisto da Revolução, tudo isto explica a subversão que grassa diante dos nossos olhos.
Esta subversão, de momento, apresenta-se institucionalizada. E digo isto, porque o descrédito e a falta de autoridade dos órgãos de soberania aumentam progressivamente. Quando o poder constituído se mostra impotente para se fazer respeitar (e prescindo agora de um juízo sobre se existe bondade na ordem por ele ditada), sempre que isto acontece, então não há dúvida possível, esse poder nega-se a si mesmo.
Não temos de nos admirar. Tudo o que está à vista se coaduna com a democracia: são os corolários lógicos de um sistema privado do mais elementar equilíbrio. E é contra esta normalidade chocante, esta coerência na incongruência e esta dialéctica sem ponta de razão, que eu me revolto.
Peçamos a Deus que seja feita a Sua vontade 'assim na Terra como no Céu', obedecendo à oração que Cristo ensinou aos discípulos. Quando isso se realizar, ganhará pleno sentido aplicar ao mundo temporal daqueles que não cairão na apostasia, o verso que Dante dedicou à soberania divina, ao exaltar o regnum caelorum :
«E, vinta, vince con sua beninanza.»5
Joaquim Maria Cymbron
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- Jacques-Bénigne Bossuet --- Discours sur
l'Histoire Universelle, Garnier Flammarion, Paris, 1966,
3 ème partie, chap. VIII.
- Félix Sardá y Salvany --- El
Liberalismo es Pecado, novena edición, E.P.C., S.A.,
Madrid, 1936, cap. V, p. 26 .
- O
Monge de Cister.
- Perfil
do Marquês de Pombal, 7.ª ed., Porto Editora, L.da,
p.282.
- Divina
Commedia, PA,
20,99.
Obs.: Aludiu-se
a este texto, nesta
página.
JMC