Tenho o hábito de estudar história com minúcia, mas
não me agrada reproduzi-la a não ser na medida exacta em que possa funcionar
como mestra da vida. Como o observador da paisagem natural se serve de um óculo
de longo alcance para encurtar os horizontes espaciais, assim eu corro os olhos
pela história, buscando nela aquilo que se vai desenhando nos arcanos dos
tempos vindouros. É esse o propósito que me anima, na incursão a que vou
proceder.
Em 1823, o partido apostólico levantava-se, pela
primeira vez, com as armas na mão, e fazia cair a constituição saída da
revolução jacobina. Era o princípio de um período agitado por sublevações e
pronunciamentos, golpes e contragolpes, começo este que foi apenas o
prelúdio de um conflito que havia de se tornar numa guerra de morte,
a qual estalou entre o Portugal histórico, de seiva católica e monárquico até à
medula, e as forças liberais, alimentadas pela agiotagem de fora.
A revolução de Julho de 1830, em França,
e a mudança, operada em Inglaterra, durante o mesmo ano, quando um
ministério tory é substituído por um wigh,
determinam uma inversão de rumo na grande nau da política europeia. Os liberais
portugueses aproveitam habilmente esta conjuntura e acabam derrotando D.
Miguel.
Ao deixar definitivamente terra
portuguesa, o monarca legítimo podia, com inteira propriedade, dizer a seu
vitorioso irmão que, nos lugares do desterro, com a sua honra intacta, ele
seria mais livre que todos os usurpadores nos palácios onde representariam o
desastrado papel de reis liberais.
A guerra, em termos clássicos, tinha
acabado. Não obstante isso, nos recônditos perdidos de uma província de
Portugal, o antigo reino dos Algarves, nesse solo de onde partiu o primeiro
brado de revolta contra as altaneiras águias napoleónicas, refugiou-se um
punhado de valentes que, sob o comando do lendário José Joaquim de Sousa Reis,
por alcunha o Remexido, saíram a campo em 1836 e, durante mais dois anos,
mantiveram encarniçada luta de guerrilhas, até que o governo liberal, que havia
destacado importantes efectivos militares para lhes dar combate, logrou deitar
a mão ao intrépido caudilho, passando-o seguidamente pelas armas.
Assim se pôs ponto final no primeiro
acto do drama político que Portugal vivia. O segundo desenrolar-se-ia oito anos
depois, quando, em 1846, de novo se acendeu a fogueira da guerra civil. Foi um
conflito de fisionomia muito particular: primeiro, cartistas e progressistas
vieram às mãos; depois, os miguelistas entram na contenda. Uma vez mais, sem
êxito: em menos de dois anos foi sufocada esta revolta que acordou, no povo,
sentimentos de amor a D. Miguel, que se julgavam mortos, mas estavam
simplesmente adormecidos.
No dia 5 de Outubro de 1910, a inglória
monarquia liberal era substituída por uma república formal. A 28 de Maio de
1926, o exército e a marinha intervieram para salvar a nação, à beira de outra
guerra intestina. Seguiu-se um período de ditadura militar, a que sucedeu um
regime de forte autoridade, que conseguiu realizar alguma justiça social, a par
de inegáveis progressos materiais e de uma indiscutível recuperação do
prestígio perdido. Mas o talento do homem que se pôs ao leme, estadista genial
e português da mais pura gema, não foi o bastante para devolver a uma sociedade
dessorada por um século de liberalismo e de jacobinismo, a força necessária
para evitar que, numa triste madrugada de Abril de 1974, através de um golpe
militar, alastrasse uma revolução que fez em estilhas uma obra de civilização
multissecular.
Que causas deram origem ao desabar de
Portugal até cair no estado em que presentemente se encontra? Estou convicto de
que não errarei se disser que a causa próxima é o espírito liberal saído da
Revolução Francesa, por sua vez, produto de outro acto de orgulho desenfreado:
a rebelião de Wittenberg.
Quando o frade apóstata, a respeito da
Bíblia, proclamou a tese do livre-exame, abriu a vala onde, muito depois, o
racionalismo kantiano, escavando mais, ia assentar o cimento da autonomia do
homem contra a tradicional heteronomia da moral católica. Do subjectivismo, que
atingiu o espiritual, imediatamente se passou ao individualismo no campo
político, tudo dentro de uma sequência má, à qual a dialéctica não permitia que
se fugisse.
A revolução liberal de 1789 é a
revolução da burguesia e a burguesia, segundo Marx, tinha a sua religião no
protestantismo.1 As excepções que diminuem a precisão desta
sentença não impedem que a correspondência resulte quase perfeita: se for
coerente, um liberal, em matéria religiosa, trará consigo o selo do
protestantismo; por sua vez, um protestante, em política, há-de mostrar as
marcas do liberalismo, se não for o mais destemperado absolutista.
O triunfo dos princípios liberais
provocou, por toda a parte, um cataclismo medonho, ao qual também Portugal não
escapou.
Derrubada, entre nós, a monarquia
tradicional, levantou-se em seu lugar um cenário dúbio, enfeitado com as cores
da realeza. E a este conjunto de pompa balofa, mas sem identidade definida,
convencionou-se chamar-lhe monarquia liberal. A estrutura desta monarquia não é
mais do que o conúbio entre um poderosíssimo factor de estabilidade – a
dinastia, elemento que brota da essência da autêntica monarquia; e, por outro
lado, a confusão parlamentar – o sancta sanctorum do partidarismo
e do alvoroço das urnas eleitorais. Este conúbio sem harmonia, sem verdade e
sem bondade, é uma das manobras mais logradas da revolução mundial, que assim
conseguiu disfarçar a desordem ingénita da Democracia debaixo
do esplendor do manto e da coroa, ao mesmo tempo que conserva, no seu seio,
todo o veneno do liberalismo, esquecido no meio dos clarões de uma realeza de
reis que reinam, mas que não governam.
A crise, que assola o mundo, não é
apenas uma crise de verdade nem uma crise de moral. Ela é ambas estas coisas,
mas é também uma crise de beleza. O mundo sofre os danos causados por um lento
mas porfiado processo de profundos desvios estéticos ao lado de graves falhas
éticas e de defeitos ontológicos inilidíveis.
A Democracia é uma
coisa torpe e a monarquia liberal é o seu quadro mais aprazível. Como o comum
das pessoas costuma misturar a transcendente objectividade da beleza com aquilo
que é predicamentalmente belo, resulta que a monarquia liberal é um sistema que
se tem de repudiar porque é aquele que, vestido das roupagens que mais seduzem,
transporta dentro de si quanto de abominável há na Democracia.
Esta é a monarquia que se intitula
constitucional e chama absolutistas àqueles que, como nós, combatemos nas
fileiras da Tradição. Salvaguardada a devida proporção,
peçamos-lhes, à maneira de S. Tiago, que nos mostrem a sua fé sem obras, que
nós lhes mostraremos a nossa pelas obras.2 Gama e Castro, um
dos mais salientes autores miguelistas, dizia que assim como não é a gramática
que cria a língua de uma nação, apenas a explica, também a constituição não faz
a vida política de um país, limitando-se a revelá-la aos que a querem conhecer.3 Num
patamar superior, eu acrescentaria que entre constituição e política se observa
a mesma relação que há entre dogma e fé, fé que não existe porque um dogma a
define, mas sim que este define porque a pressupõe.
A estrutura da monarquia liberal é
um conúbio sem harmonia, sem verdade e sem bondade. Não passarei adiante sem
expor o porquê da minha afirmação, dentro da brevidade compatível com a
natureza deste assunto:
Apresenta-se como um conúbio sem
harmonia, porque sendo o hibridismo de dois princípios – o hereditário e o
electivo – acontece que o segundo deles não exibe a necessária consonância. Com
efeito, a política está na comunidade como num sujeito de sustentação. A
comunidade, politicamente organizada, provém da forma produzida pela acção de
um eficiente sobre a causa material extrínseca, que seria o povo enquanto massa
bruta. A partir daí, essa massa, de materia secunda passa
a materia prima, a qual não pode fisicamente existir sem uma forma
que a determine. A Democracia não é capaz de conduzir-nos até
esta unidade do poder político, porque não indica, com exactidão, o agente que
imprime essa forma.
Em segundo lugar, este conúbio não
apresenta a dose de verdade aceitável. E isto por duas razões, sendo uma que,
com o seu desgraçado mito da soberania popular, mete no mesmo saco a causa
eficiente e a causa material extrínseca do poder, o que deve rejeitar-se pelos
motivos antes invocados, os quais, como foi assinalado, fazem que falte
unidade à Democracia. A sua ineptidão para impedir que a referida
causa eficiente se feche num ciclo vicioso, se perca num processo ao infinito,
ou se desfaça numa flagrante contradição, é a outra razão:
Com efeito, salta aos olhos de todos
que, resultando a capacidade eleitoral da lei elaborada pelos que colhem o
mandato legiferante dos mesmos a quem conferem o poder de eleger, se impõe
concluir que o sistema democrático corre numa linha circular, em moto contínuo.
E quando se alega que o poder constituinte do povo rompe esse círculo, não nos
dizem qual a fonte desse poder, nem o poderiam fazer, porque as suas mentes não
conhecem, no plano contingente, nenhuma origem do poder fora do povo, o que,
manifestamente, não consegue evitar a petição de princípio. Por fim e porque a
capacidade eleitoral não é universal, sempre se sublinhará que está pejada de
autocratismo a decisão que fere de incapacidade originária alguns cidadãos, os
quais não tomaram parte nessa deliberação porque, se eram capazes de votar onde
se discutia essa incapacidade, então não seriam incapazes de raiz; e, não se
tendo pronunciado, a solução já não será democrática. Este último aspecto é
suficiente para se ver como a Democracia, na sua praxis,
desmente o proclamado princípio da soberania popular.
Falta tratar da privação de bondade que
afecta a monarquia liberal devido à sua componente democrática. Constitui
elemento essencial da Democracia um obstinado relativismo, o
qual fatalmente conduz à adulteração dos valores porque considera bom o que é
apetecido, em vez de exortar a que se deseje o bem. O bem é inseparável da
verdade,4 verdade que não pode estar sujeita ao voto, verdade
que não é mais nem menos verdadeira conforme reúna mais ou menos sufrágios. A
verdade não espera licença de ninguém para ser aquilo que é. Nós é que temos de
nos esforçar por a encontrar. Estando com a verdade, estaremos com a bondade. O
valor da bondade, casualmente, não é impossível de ser alcançado pelo método
democrático, porque ex absurdo sequitur quodlibet; por norma, não é
uma via adequada.
Foi a monarquia liberal o corolário
lógico do regalismo absolutista, fruto apodrecido dos desmandos do
enciclopedismo. Depois, veio o que veio. Hoje, ao que parece, o mundo regressa
à Democracia e, por isso, soltam-se vivas. Não entendo!
A Democracia representa a maior ameaça à restauração da ordem
tradicional: a Democracia é subversão, a Democracia é
poluição, a Democracia mata aquilo em que toca.
Não estou descansado. Pressinto que
outras convulsões, decerto não menos letais para a sociedade, se vêm
preparando. Da Democracia aos clássicos totalitarismos, a
transição é apenas teórica: os totalitarismos são o desaguar de correntes
democráticas, que deslizam nessa direcção configurando aquilo que poderia condensar-se
na fórmula seguinte – democrático, logo totalitário!
Tudo pela maioria! Tudo pelo partido!
Tudo pelo estado! Que diferença faz? O critério de governo já não é o critério
objectivo da bondade, mas sim o apetite, sem freio, da monarquia estadual, do partido
único ou da arbitrariedade das massas. A esta heterodoxia, opõe-se a doutrina
tradicional do poder político, que tira a sua legitimidade da realização do bem
comum. Que as leis provenham de uma maioria ou de uma minoria, isso é
secundário: o que importa é a bondade do seu conteúdo. E porque é isto que
conta, também não está correcto dizer-se que as leis têm de ser consentidas
pelos seus destinatários para que sejam legítimas.
As antigas cortes portuguesas eram
simplesmente consultivas e reuniam-se quando o rei as convocava. Se lhes
atribuímos força deliberativa e as tornamos independentes do monarca,
introduzimos, no nosso ideário, um clássico vício liberal. O poder político, se
é um poder soberano, será um poder supremo e exclusivo. Daqui resulta que não
pode coexistir com outro poder do mesmo grau. O sistema de pesos e contrapesos
é uma quimera porque o poder não se trava institucionalmente: se é poder,
impõe-se e, se não se impõe, não é poder.5
Depois desta passagem sobre os
enganadores postulados da soberania popular, regresso à história.
Enquanto avançava o século XIX e
Portugal descia pela vertente da revolução, que faziam os legitimistas? –
Passados os insucessos bélicos, que, a seu tempo, mencionei, limitavam-se à
disputa de uns quantos lugares no parlamento liberal e guarneciam algumas
trincheiras na imprensa. Era muito pouco, mas ainda davam sinais de vida. A
situação havia de piorar, e se a eficácia já era então pequena, mostrar-se-ia
quase nula até desaparecer por completo.
Como se deixou debilitar gradualmente
uma falange que provara bem a sua combatividade?
Com a morte do último rei do ramo
liberal, a 6 de Junho de 1932, extinguiu-se a sucessão nesta linha. A 19 de
Outubro desse mesmo ano, os liberais aclamam como herdeiro do trono o
representante legitimista. Deste modo, acabou-se com as dificuldades levantadas
pelo problema dinástico sem, todavia, compor a divergência doutrinária, pelo
que não se alcançou a projectada união: a cisão entre legitimistas e liberais
não foi uma questão sucessória, mas sim de ideias. O resultado foi um afrouxar
das hostes tradicionalistas já tão debilitadas pela letargia em que haviam
tombado.
O Rei, de direito, imediatamente se viu
a braços com a tensão provocada pelas relações entre duas filosofias de vida
opostas: de um lado, a consciência do que eram os valores tradicionais; e, do
outro, a impertinência dos que, apesar de terem reconhecido a dinastia
legítima, não desistiam dos seus nefastos princípios. É dever de um rei, que o
seja de facto, ser rei de todos os seus súbditos; é muito duro para um rei, que
só o seja pelo direito, cumprir esta obrigação; e é quase sempre fatal
para os que se lhe conservam leais, que se dê o segundo dos casos enunciados.
Evidentemente, isto não é resposta total
para o problema, como conto esclarecer com maior detalhe.
O miguelismo, insisto, não está
agonizante: há muito tempo que entrou num estado próximo do comatoso. Na linha
de um mau hábito, que se criou, de imputar a terceiros culpas que nos
pertencem, surgiu nas nossas fileiras a teoria grosseira de acusar Oliveira
Salazar como causador do nosso marasmo. Os comunistas, durante o consulado
salazarista, sofreram as perseguições que bem sabemos e, quando os cravos se
espalharam pela ruas, todos vimos o que se passou. Nem sequer os seis anos do
complexo governo de Marcello Caetano servem para explicar a pujança que o
partido de Cunhal exibiu, porque o regime era de abertura a todos.
Esta dialéctica de uma pretensa
justificação seria risível, se não fosse a calamitosa realidade presente, agora
que já decorreram quase quarenta anos desde que uma grave doença privou
Oliveira Salazar do poder.
Antes de avançar, sempre direi que esta
é uma situação muitíssimo triste. É, de facto, lamentável que haja quem se
desculpe de forma tão pouco digna, quando não sabe ou não quer lutar pela causa
em que diz acreditar. No que se segue, porei o dedo na chaga, mas espero dar
uma resposta:
Para lá de todas as circunstâncias que
houve e que há, a culpa do insucesso é nossa e de mais ninguém. O inimigo, se
faz o que pode e o que lhe permitimos, está fazendo o que deve. Dos males que
nos afligem só temos de pedir contas a nós próprios. E não conseguiremos solver
essas contas, antes de assumir a nossa condição política, sem vacilar e pondo
de lado o temor de que isso divida a sociedade portuguesa.
Este temor é um temor infundado. Eu
diria mesmo que se trata de uma ingenuidade quase pueril. De facto, nós somos o
que somos. E não será por declará-lo e agir em consequência que a sociedade
portuguesa se vai dividir de forma mais trágica do que já está. Creio
precisamente o contrário.
Para demonstrá-lo, seria fácil e cómodo,
aduzir que a ordem política tradicional era a que vigorava à data em que foi
derrotada pelo inimigo e, por esse motivo, não fomos nós quem provocou a
divisão. Isto não passa de um acidente no devir cronológico e, portanto, com
todo o seu grau de relativismo e contingência. Daí que não recorra eu a este
tipo de argumentação e prefira caminhar num sentido que se me afigura como
solução válida para qualquer época e em qualquer sítio.
Com este propósito, direi que a divisão
aparece seguindo um processo que apresenta quatro momentos culminantes: o
primeiro sucedeu com a prevaricação angélica; deu-se o segundo com o pecado
original originante; após este, vimos o terceiro na Redenção; o último será com
o juízo final. A divisão verifica-se, pois, onde não há adesão à verdade:
afastou-se dela Lúcifer; contrariou-a a soberba do primeiro homem; negamo-la
todos cada vez que, pelo pecado actual, voltamos a romper o que Cristo veio
reatar; e sofrerão o castigo da geena os que morrem impenitentes.
A tragédia, propriamente, não está na
divisão: a questão é saber qual a divisão que convém e qual a que temos de
repelir. A divisão de que possamos ser ocasião em nome da verdade, é um acto
agradável a Deus.6 A divisão condenável, a divisão temível, a
divisão atroz é a divisão do amontoado da eterna desesperação porque é a
divisão sem remissão da criatura apartada do seu Criador.
Ora bem: ou a doutrina que seguimos não
está dentro da verdade e, nesse caso, temos de esquecê-la porque não é
verdadeira e não porque vai desunir; ou, pelo contrário, pisamos o trilho bom e
aí não vejo motivo para não levantar, de novo, a bandeira miguelista.
Levantando o estandarte do miguelismo, seremos conhecidos como legitimistas e
como portugueses, com o que em nada se contraria a Tradição, porque
se a Tradição ultrapassa fronteiras, é certo que as não apaga.
Eu sei, sei de sobra, que nos é pedida
moderação e nada de agitar os ânimos. Não tem de estranhar-se! Já, em 1831,
José Agostinho de Macedo, talvez a mais poderosa inteligência do miguelismo,
preveniu «que devem os Reis e os povos, se querem a sua conservação, detestar
ou fazer calar duas bosinas: a bosina da moderação e a bosina do
adormecimento».7
Aos ataques dos que nos hão-de acoimar
de facciosos, responderemos que estamos prontos a abandonar a intransigência de
que nos acusam, no dia que deixem o seu indiferentismo e o seu latitudinarismo:
um indiferentismo, no qual é heresia a afronta aos seus cultos; um
latitudinarismo que nos excomunga se não adoramos no templo da sua tolerância.
Dir-nos-ão ainda que arvoramos uma
bandeira de partido. Na medida em que sustentei que a verdade divide, a nossa
bandeira é, com efeito, uma bandeira de partido porque é a bandeira daqueles
que tomam partido por Deus e pela Tradição: Deus, que é verdade no
plano necessário; Tradição, que o é a nível do contingente. Estes
dois princípios, o primeiro, eterno e o outro, transcendente, são os que
sagraram a nossa bandeira, que milhares de combatentes da legitimidade já
tingiram com o seu sangue.
S. S. João Paulo II, numa das visitas
que nos fez, convocou-nos para uma missão. Sabia o Papa que falava aos
herdeiros de um povo evangelizador até ao heroísmo, povo que, à semelhança do
Apóstolo, se fez tudo para todos a fim de ganhar todos para Cristo.8 A
resposta a este desafio, está na Tradição. Voltai à Tradição!
Eis como nos poderia ter falado Sua Santidade. Se regressarmos à Tradição,
o momento desse retorno será a hora do reencontro com a nossa perdida vocação
histórica: a de fazer Cristandade.
Há mais de quinhentos anos, Portugal
levou a semente do Evangelho aos gentios das mais remotas paragens. Se, no
passado, a um mundo que O desconhecia, anunciámos o Deus verdadeiro, o presente
impõe que o preguemos a um mundo que Lhe virou costas.
Quando alerto para a necessidade de uma
cruzada que não tem de confinar-se a Portugal e que terá a Tradição como
adail, conheço os riscos que podem derivar de uma interpretação defeituosa do
que proponho. Eu não quero nenhuma internacional. As internacionais, como a
própria palavra o indica, formam-se a partir das nações. Ora a ideia de nação
começou com a Idade Moderna e ninguém nos afiança que não termine um dia – é um
conceito positivo de sociologia; em contrapartida, a Tradição, já o
disse noutras ocasiões e volto ao mesmo, temos de relacioná-la com o Ser rodeado
dos seus atributos transcendentais – a Tradição é, portanto,
um conceito universal de ontologia.
À mistura do sincretismo
internacionalista, contraponhamos o ecumenismo de povos, politicamente
distintos, mas moralmente unidos sob a bênção da Igreja Católica. É esta a
única instituição composta por homens, que, em razão da sua origem, dos seus
meios e dos seus fins, goza da garantia de ver a consumação dos séculos; e cujo
senhorio não conhece limites por imposição de espaço porque é, antes de tudo e
acima de tudo, um senhorio espiritual. Esta é uma construção que já governou o
mundo: o seu derrubamento foi obra da revolução antropocêntrica.
Que é esta revolução? Mais que um marco
histórico, ela é a revolução do homem que, cheio de vanglória, se crê absoluto
e declara a sua insubmissão diante de qualquer poder que lhe seja exterior.
Esta revolução é ainda a maior de todas as ingratidões: a um Deus, que se
tornou homem e desceu do céu à terra para elevar o homem da terra ao céu, o
homem paga este prodígio de amor, procurando subir da terra ao céu para lançar
a Deus por terra. Tão monstruosa infidelidade é a revolução gerada pela
satânica mentira da igualdade que é negação da ordem e, por isso, filha
estremecida da soberba.
Os homens, na medida em que foram
criados por Deus à Sua imagem e semelhança e por Ele chamados à felicidade
eterna, são, neste sentido, iguais. Mas, com a mesma fé, havemos de acreditar
que a graça santificante, que recebe cada um de nós, e a coroa de glória, que
lhe está reservada se merecer aquela graça, não são iguais às de ninguém mais.
Nem isto nos deve afligir, porque o que Deus nos dispensa, em vida, basta à
nossa salvação e o prémio que nos espera, se correspondermos ao dom divino, é
recompensa adequada aos nossos méritos. Se entramos em comparações, sem a
coragem da humildade, virtude necessária para reconhecer a existência de
maiores perfeições, vem o sentimento de inveja e, com ele, a tentação de ter
mais, sempre mais: a comparação sobe de grau até que chega ao zénite, quando se
ouve o eco do anjo rebelde.9 O cume da ambição pecaminosa foi
tocado – é a revolução por excelência!
A economia da salvação no campo
político, não obtém remédio fora da tradição. É imprescindível que se recorra
à Tradição, porque a Tradição não é a inércia
conservadora, nem tão-pouco o automatismo na observância de mitos obsoletos:
a Tradição é aquele conhecido tesouro que, identificado com
o Ser no plano metafísico, como acima o disse, nos dá a pura
expressão do movimento, entendido este dinamismo nos termos da solução
aristotélica do sentido análogo.
Na Tradição está o
fundamento da essência de Portugal. Fincada nessas raízes, a sua constituição
política fez-se com a história. Enquanto guardou a pureza de princípios, foi
uma monarquia admirável que cumpria o ideal mais exigente para todo o poder
político.
Comecemos pela sua unidade:
O rei, figura viva da dinastia, cabeça
da grei, responsável porque governava, aval dos direitos concretos dos seus
súbditos, encarnava a causa formal desse poder, causa esta que se situava num
tempo mais ou menos próximo; a seu lado, todo um povo organizado
hierarquicamente, fazendo ouvir a sua voz por meio de genuínos representantes,
diverso nos seus foros, o mesmo na consciência de que não era mais do que um
efémero momento da Pátria, trazia-nos a imagem da causa material limitando a
causa formal.
Duas linhas, agora, sobre a génese desse
poder:
O acto de soberania é um composto do
conhecimento do que se quer, da decisão bem definida de alcançar esse objectivo
e, por fim, da capacidade de concretizar essa vontade. Se o primeiro destes
elementos não toma forma, estaremos diante de um estéril capricho; sem o
segundo, será o vazio; e, se falta o último, o acto, que se pretende soberano,
não passará de um sonho mais ou menos bonito, mas sempre um devaneio. A
história portuguesa é pródiga em exemplos de como houve sempre quem exerceu a
soberania, pelo modo que acabei de apontar. Esses foram os varões suscitados
por Deus que se destacaram do povo para ser causa eficiente do poder político
na comunidade que lhes deu vida.
Falta o exame da bondade da nossa
monarquia tradicional:
Há quem separe religião e política,
dizendo: «Para adorar Deus, a religião; para servir a Pátria, a política.»
Tremendo erro é este! O serviço à Pátria não se entende se não se leva a cabo
com os olhos postos em Deus, o que provoca que a política tenha de ser também
profissão de fé. Este é o sentido que confere legitimidade à política e que
pode conduzir os povos a uma paz duradoura e universal, porque é o único que
coloca a política como meio de o homem atravessar a cidade terrestre com
destino à cidade celeste.
Recordo, aqui, a minha ideia de sempre:
o que é estritamente religioso não é político, mas o que é político, sem perder
a sua específica autonomia, tem de ser religioso como acto que liga o homem a
Deus, sob pena de ser obra morta. Por esta dimensão religiosa da política, não
hesito afirmar que, quando ela é justa, soa como hino de louvor a Deus e,
quando não é, converte-se num atentado à majestade divina.
Se o trono de S.to Estêvão foi o
trono apostólico, o de S. Luís, o trono cristianíssimo, e o de S.
Fernando, o trono católico, o nosso foi o trono fidelíssimo. Com este
título, os Reis de Portugal reconheciam, no domínio espiritual, a autoridade da
cátedra romana, ainda que actuassem, no âmbito do que é temporal, livres de
todo o império eclesiástico. Este governo, reflexo maravilhoso do agostinismo
político, era o governo dos nossos soberanos, que se moviam com um acrisolado
amor à coisa pública, observando deste modo a causa final do seu poder.
Eis, em traços muito largos, a monarquia
de Ourique, uma monarquia, repito, que se confunde com o ser histórico de
Portugal, um longo viver de glórias imperecíveis, ao lado de momentos maus.
Desgraçada e ferida é quando a Pátria mais requer o nosso carinho filial
porque, tal como os Pais que não são objecto de escolha, assim é a Pátria:
somos o abraço que estreita a venerável memória dos mortos à esperança risonha
dos que virão, não formamos mais do que um anel nessa monumental cadeia de
gerações. A Pátria, devemos admirá-la pelas suas grandezas e temos de
querer-lhe apesar das suas misérias. Não são estas senão a terrível punição que
Deus envia para escarmento dos povos desatinados com as paixões que envilecem.
Se nos orgulhamos por ser soldados
da Tradição, temos de aspirar à coroa do martírio, resgatando
Portugal do pecado social em que caiu!
Joaquim Maria Cymbron
____________________________________________________________
- O Capital I, Delfos, p.448.
- Tgo. 2,18.
- O Novo Príncipe, Lisboa, Empresa Editora Pro Domo, Limitada, 1945, pp.144
e s.
- S. Tomás de Aquino, O. P. --- Summa
Theologica I, q.5, a.1.
- V. citações 10 e 11 em Monarquia Pura.
- Mt. 10, 34 e ss.; Lc. 12, 51 e ss.
- O Desengano, n.º16, p.7.
- 1 Cor. 9, 18-22.
- S. Tomás de Aquino, O. P. --- Summa
Theologica I, q. 63, a. 2 e a.3.
JMC
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