Não há dúvida que sem dinheiro a vida é
impossível. Mas nem tudo na vida se reduz a dinheiro: estão nesta categoria
todos os bens que não são quantificáveis. Conto aqui um episódio, que é bom
exemplo do que acabo de afirmar e o qual, apesar de vivido em circunstâncias
particularmente duras, nem por isso deixa de constituir uma das lembranças mais
gratas de toda a minha vida.
À data do desastre --- 25ABR74 ---,
encontrava-me em Angola à espera de entrar nas Forças de Intervenção do
Comando-Chefe daquela Província. Era a minha segunda ida a África para defender
aquele terrão. Escusado será dizer que o sonho de poder continuar o combate,
até que se alcançasse uma paz justa, ficou anulado pela traição que se conhece.
Entretanto, dava-se o 28 de Setembro
na Metrópole. A 03OUT74, era eu detido, em Luanda, por ordem de Rosa Coutinho. Assim estive
poucos dias (três semanas e mais qualquer coisa), mas com a nota muito
incómoda de ter passado esse período praticamente isolado e sem saber
quanto tempo ia durar o que veio a ser um cárcere curto.
Quando me libertaram, passei à
África do Sul e daí, decorrido mês e meio, voei para Madrid. Em Espanha, mandaram-me para
Barcelona, onde estive uns quatro meses. No rectângulo português, ia viver-se o
Verão Quente. Antes de entrar nele, tive de deslocar-me a Paris.
E é aí que sucede o que me propus
narrar. Todo este relato teve a finalidade de mostrar um quadro que, dadas as
razões, não era nada agradável, o que ajudará
a compreender a emoção sentida por mim na ocorrência que segue.
Percorria eu os corredores do Metro,
bastante atribulado, quando começo a ouvir uma música lindíssima. Saía das
cordas de um violino: Brahms? Beethoven? Sempre confundi os dois, nalguns
trechos. O compositor até podia ser um terceiro. Mas, para o efeito que trato,
isso de nada interessa: sei é que a música parecia caída do Céu. Já não me
lembro se caminhava na direcção de onde vinha o som. É provável que eu tivesse
feito um desvio, tal a magia daquele momento.
O certo é que ia caminhando para
lá, e nisto, à medida que descia umas escadas, começo a ver a figura de um homem que
arrancava aquelas notas de tanta beleza. Era cego. Tinha aos pés, como é
costume nestes casos, uma caixa onde se via dinheiro. Aproximei-me e, em termos
genéricos, disse-lhe que me encontrava ali condicionado por causas muito especiais,
não podendo levar-lhe nenhum socorro material. Acrescentei ainda que, mesmo
tendo os bolsos a abarrotar, supunha que não conseguiria pagar-lhe o conforto
que recebera com a música por ele tocada.
Não menos comovido que eu,
retorquiu-me num tom que parecia mais agradecido do que ficaria se eu o tivesse
coberto de moedas!
Joaquim Maria Cymbron
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