quarta-feira, 16 de abril de 2014

O TRAIDOR


Aproximamo-nos do dia 25. Há datas, umas boas e outras más, que é forçoso não deixar no olvido para as celebrar ou, então, procurar que não se repitam.
Tudo ponderado, julga-se oportuno publicar as declarações escritas que juntei a um inquérito que corria e veio a constituir o Processo n.º 2.410 da 2.ª Secção do 1.º Juízo Correccional, na comarca de Lisboa. Precisamente o mesmo processo de que já foi dada notícia neste blogue. 
Esta peça foi integrada nos autos, a 18 de dezembro de 1986. A legislação citada é, portanto, a daquele tempo. Refere-se o pormenor para facilitar o confronto entre o aqui afirmado e as normas invocadas. De resto, as alterações produzidas desde então, com excepção de poucas e inócuas modificações de ordem formal ou sistemática, deixaram intacto o conteúdo dos preceitos que fundamentaram o que se defende neste documento.

À época, Mário Soares não completara ainda um ano de exercício no cargo de Presidente da República.  
 
Chamei traidor ao Sr. Presidente da República e chamei-o com as veras da alma, e encontrando-me como agora me encontro, no uso das minhas faculdades mentais e no perfeito gozo delas. Fi-lo, ainda, sem o arrebatamento da paixão que pudesse toldar a tranquilidade necessária ao pensamento. Por isso, a afirmação, que produzi e pela qual estou respondendo, deve ser-me imputada sem desconto de uma só polegada. Reivindico essa honra e não abdico dela.

Dizer que o Sr. Presidente da República é um traidor, constitui uma atitude que vem na sequência de um comportamento que comecei a traçar há já quase doze anos (1). Ela não é, pois, novidade e só constituirá surpresa para quem me não conheça.

Eduquei-me no amor à Pátria, depois do culto de Deus. Evoco o passado, e aí venero a auréola dos mártires e a glória dos heróis; admiro o estoicismo de soldados e o labor pacífico dos artífices; ouço a prece de místicos e o cântico de poetas. Não vejo senão motivo de orgulho por tanta coisa bela!

Ainda hoje acredito no sentido transcendente da expansão portuguesa. Nós levávamos aos povos que contactávamos a doutrina de Cristo Salvador, não o credo num «Deus de compra e venda», como diz Junqueiro na sua conhecida apóstrofe à Inglaterra: evangelizámos, civilizámos, espalhámos uma cultura e tudo isto fizemos de um modo ímpar. Fomos, e com tanta alma que era para não virar costas. Devíamos ficar cá e lá. Desgraçadamente, isso não se deu: partimos na crista audaz de uma onda de fervor apostólico, mas regressámos na maré baixa de uma traição torpe.

É mister que se aponte o nome de quem renegou a Pátria, para nos começarmos a libertar da imensa vasa que sobre nós se derramou a ponto de submergir não só a identidade que temos como povo livre, mas, sobretudo, a nossa dimensão de povo missionário.

Vou esforçar-me, pois, para que seja prudente e recta a sentença que irá ditar o Tribunal que venha, eventualmente, a julgar-me.

Para tanto, terei de demonstrar como é verdadeiro o fundamento das razões que me levaram a chamar traidor ao Sr. Presidente da República. Implicará isto que o Tribunal se debruce, pondere e decida sobre factos constitutivos de um processo que alguns teimam em qualificar como processo de descolonização.

Antes, porém, cumpre saber se esse Tribunal terá jurisdição na referida matéria. Não é por mim que levanto a interrogação. Apenas faço a pergunta porque já foi sustentado que só a história é a competente julgadora.

Que pensar de tão desastrada ideia? --- Respondo que é insubsistente! E respondo deste jeito porque uma nação, sem de forma alguma se poder classificar como um organismo animado do mundo da biologia, mostra todavia vincadas semelhanças com ele. Como se fosse um corpo, ela nasce, cresce, revolve-se em crises, conhece a derrota e o triunfo, apresenta-se depauperada ou surge com uma força pujante. Neste desafio, que é um desafio de séculos, o que é acidental a essa nação vem e vai, mas a sua estrutura ontológica permanece e, com ela, a sua unidade metafísica.

Será isto a Pátria? --- Parece-me bem que sim: elo místico que une passado, presente e futuro, numa cadeia que é a memória viva e vivida da nação que já passou, a consciência actuante da nação que está e, por último, o projecto sem utopias da nação que há-de vir enquanto Deus o quiser.

Então, no rasto que, através dos tempos, cada nação vai deixando atrás de si, há-de ficar a marca indelével dos heróis que contemplamos. E, nesse sulco, caem também, como frutos daninhos gerados no seu ventre, os traidores que são execrados. Conhecemos uns e outros através da história. É ela, em parte, o imenso depósito onde se arquivam todos esses processos. Hegel não falou vaziamente quando disse: Weltgeschichte ist Weltgericht. Sendo a história do mundo, o tribunal do mundo, a história de uma nação é, evidentemente, o tribunal dessa nação. E se a história de uma nação é, de certo modo, feita por cada um de nós, se nela, de uma ou de outra maneira, todos somos protagonistas e, ao mesmo tempo, seus autores, uma instituição há que não deve furtar-se à ingrata mas excelsa missão de também escrever a história: essa instituição são os tribunais judiciais que, para o fim específico aqui abordado, têm de chamar sobre si uma responsabilidade não direi exclusiva, mas que é, seguramente, a principal. Por isso foram eles criados e por isso existem (2).

Apurada, pois, em meu juízo, como ponto incontroverso, a competência do Tribunal nesta matéria que é a questão do esquartejamento de Portugal, recai sobre mim o ónus de avançar com os elementos justificativos do epíteto que lancei sobre o Sr. Presidente da República. Limitar-me-ei, porém, a recordar que S. Ex.ª participou activamente em todos os actos de entrega de território pátrio, após a revolução de 25 de abril de 1974. Digo isto, assim em síntese, e dispenso-me de argumentar mais largamente ou mesmo de aduzir provas nesse sentido, porque de factos notórios se está tratando (3).

Constitui isto um libelo, que foi simples e breve de articular. Contém tal libelo acusações que doem como punhos. Treme-se e receia-se o peso das suas consequências a ponto de já se ter pretendido descortinar, em preceitos legais dispersos, a magna charta ilibatória destes crimes de lesa-Pátria.

Será no facto de Portugal consagrar «(...) o direito dos povos à autodeterminação e à independência (...)» (4) ou ainda no de reconhecer «(...) o direito dos povos à insurreição contra todas as formas de opressão, nomeadamente contra o colonialismo e o imperialismo (...)» (5) que se julga ver o manto de cobertura a tantas e tão ignominiosas traições? --- Eis um ponto que pede uma resposta cuidada e essa resposta desdobra-se em duas partes, tantas quantas os números citados do mencionado artigo 7.º da lei constitucional.

Na primeira, devemos examinar o enquadramento temporal do referido preceito:

A partir de que momento obriga o conteúdo do trecho em análise? Desde quando opera efeitos o que nele se encontra previsto e estatuído? --- Não é senão depois da entrada em vigor do diploma em que se insere! Os povos dos territórios ultramarinos portugueses não foram ouvidos para, de acordo com o Programa do MFA, decidirem o seu próprio destino: não se procedeu a qualquer consulta nos moldes mais seguidos daquilo a que se convencionou chamar democracia; os desgraçados foram, pura e simplesmente, empurrados para uma independência muito equívoca; e, nesse empurrão, atiraram com eles para debaixo de regimes que, se não são a clara imagem de uma das formas que pode assumir a opressão condenada no n.º 3 do art. 7.º da Constituição (6), então, dentro do mesmo diploma e porque não é crível que o conceito de opressão, expresso na lei constitucional, seja tacanho a ponto de, por exemplo, só se ligar com o Chile de Pinochet ou com o apartheid sul-africano (7), nesse caso, insisto, nem fará sentido o n.º 5 do art. 33.º (8) perderá signigicado o n.º 1 do art. 8.º (9) e será perfeitamente inútil o n.º 2 do art. 16.º (10).

O respeito de Portugal pelo «direito dos povos à autodeterminação e à independência» não se deve, pois, entender com o caso histórico das nossas províncias de além-mar.

E tratada a primeira parte desta questão, vamos à segunda:

O colonialismo e o imperialismo, na actual concepção do direito constitucional português, são actos condenáveis. Até aqui, nada a opor. Mas, para saber quando há tais delitos, importa averiguar antes se existe uma colónia oprimida por uma potência imperialista, sem o que se ofenderia um princípio liminar de toda a ordem jurídica, sempre que se trata de um facto ilícito, e que é o princípio da tipicidade!

O padrão, único e indiscutível padrão que existe, aquele que é competente para proceder à definição que se busca, encontra-se no direito político de cada nação e em cada época histórica, e só esse interessa seguir. Assim, pelo texto constitucional em vigor, à data do 25 de Abril, Portugal não era, de modo nenhum, uma potência imperialista pelo motivo bem simples de não ter estatuto de colónia nem uma das parcelas que, do Minho a Timor, integravam o seu território, gozando dos mesmíssimos direitos todos aqueles que nelas nasciam e viviam. Logo, o estabelecido no n.º 3 do art. 7.º da lei fundamental (11), que agora nos rege, não se encaixa no quadro político português, tal como ele era antes da revolução que se deu em 1974 e cuja particular fisionomia, neste ponto concreto, não sofreu a mais pequena mexida até à entrada em vigor da actual Constituição.

Querem, agora, pintá-lo de cores que ele não tinha quando se deram os acontecimentos que aqui se debatem? --- É uma aberração jurídica! Nota-se alegria e vida nessas pinceladas novas com que o desejam cobrir? --- Não concordo e nem me dou ao trabalho de dizer porquê. Julgo que não me cumpre fazê-lo neste momento, porque se me arredasse do plano estrito do Direito, então, por uma questão de coerência, teria de pedir a remoção da causa que se discutirá perante a barra de um Tribunal para um anfiteatro de sociólogos ou até de filósofos da política. Assim, continuo a debruçar-me sobre este melindroso problema dentro da mais escrupulosa observância pelas linhas mestras do direito instituído.

Na verdade, que parte, que título, que capítulo ou mesmo que artigo da Constituição permite concluir que não eram terras de Portugal aqueles pedaços que foram alienados? Em que fragmento do seu texto se pode apoiar uma tal opinião?

Será naquelas linhas do preâmbulo onde se afirma que «libertar Portugal da ditadura, da opressão e do colonialismo representou uma transformação revolucionária e o início de uma viragem histórica da sociedade portuguesa?» --- Se, por aqui, desejam fazer a demonstração de tão peregrina ideia (como parece ter já sucedido), é singularmente infeliz a via que escolhem.

Com efeito, só o paciente pode ser liberto dos males que o afligem. Portugal foi, pois, na letra do preâmbulo, liberto da ditadura, da opressão e do colonialismo. Entretanto, não indica o trecho que Portugal tenha sido vítima da ditadura e da opressão, por um lado, e agente de colonialismo, por outro. Esta redacção, embora --- frise-se uma vez mais --- ao arrepio da realidade jurídico-política do tempo a que se reportam os factos dos quais se vem tratando, seria a única que permitiria a conclusão que alguns pretendem tornar válida: a lei fundamental vigente sancionou a entrega das províncias ultramarinas porque estas não passavam de meras colónias (art. 7.º, n.º 2 e n.º 3) (12).

Mas, para tanto, retomo a ideia, impunha-se que o texto indicasse claramente que parte de Portugal se viu livre da ditadura e da opressão, e de que territórios foi sacudido o pretenso jugo colonialista português, tarefa que se me afigura impossível prosseguir pois, volto a destacar, para o efeito que estamos tratando, não vejo como definir inequivocamente o que é colónia, fora das normas constitucionais portuguesas de 1933, sem quebra da dignidade da ciência jurídica e do respeito que se lhe deve.

A verdade, porém, é que a frase do preâmbulo que vem sendo analisada não distingue expressamente, nem acredito, pelas razões acima expostas, que possa comportar qualquer distinção. E como manda a boa hermenêutica, ubi lex non distiguit, nec nos distiguere debemus.

Contudo, se a frase em causa não admite qualquer distinção, indicará ela que Portugal também sofreu o colonialismo? --- Não o creio! Para além de esbarrar com dificuldades idênticas às apontadas para a posição anterior e que se condensam na pergunta --- como pode juridicamente falar-se em colónia? --- tal solução arrastaria a um absurdo ridículo e que repugna ao mais elementar senso comum: que parte de Portugal se separou de Portugal, a fim de que Portugal se visse liberto do colonialismo?

Não esperemos nunca que um texto, seja ele qual for, vingue com um sentido que contrarie a intenção do seu autor; mas, se esse texto é um preceito legal, ele também não pode valer com qualquer orientação que fosse desejada por quem o fez. Julgo francamente que, no labor de interpretar as leis, não devemos ceder à tentação de considerar o pensamento legislativo cuja expressão verbal não encontre no mundo jurídico um mínimo de correspondência lógica. Acima do pensamento e da vontade do legislador, ainda que de um legislador constituinte se trate, paira a majestade daquilo que o Direito, na sua dimensão transcendente, tem de uno, de verdadeiro, de bom e de belo.

O trecho preambular, de que venho falando, não encerra, pois, nada que conduza ao sentido com que querem interpretar o n.º 3 do art. 7.º (13) da nossa lei fundamental.

Mas admitamos, por breves instantes, que a parte do preâmbulo em análise sempre confere a esse preceito aquele fantástico alcance que muitos lá pretendem encontrar. Que restaria então do n.º 2 do art. 11.º (14), consagrando como hino nacional A Portuguesa, esse sublime canto concebido quando o nosso povo explodia de indignação contra a ávida cobiça da Inglaterra, precisamente sobre alguns territórios africanos relativamente aos quais se vibrava no impulso de um justo sentimento de posse porque eram territórios portugueses, em perfeito pé de igualdade com outros que, hoje, clamam que não integravam a nação por não serem mais que meras colónias?

Se se persiste, pois, na ideia de que o conteúdo do n.º 3 do art. 7.º (15) da Constituição descrimina os factos que eu imputei ao Sr. Presidente da República, então, dentro da mesma linha de pensamento, teríamos de acabar por repudiar as estrofes que a inspiração fulgurante de Henrique Lopes de Mendonça nos legou: elas são o eco de um ambiente de exaltação que essa corrente de opinião só poderá qualificar como os paroxismos de um delírio colonialista! Assim, a Constituição entraria em conflito consigo mesma, tornar-se ia a apoteose da semântica, o que ninguém, por certo, se atreverá a sustentar sob pena de, com isso, sair seriamente abalado todo o edifício constitucional.

Recapitulando o que para trás deixo dito, nada vejo que possa servir ao Sr. Presidente da República como paládio dos seus tremendos crimes. Encontrará ele, porventura, abrigo no n.º 1 do art. 5.º da Constituição (16)? --- Eis mais um problema de interpretação que se nos depara!

Qual, pois, o alcance preciso que se há-de atribuir ao disposto no trecho em questão? --- Obviamente aquele que ressalta da sua letra e apenas esse: a definição territorial do Portugal que sobra. Ver nesta delimitação um anseio de proteger todos aqueles que reduziram Portugal aos estreitos limites a que ele agora se confina, é um erro palmar. As amnistias concedem-se no âmbito criminal: nunca se dão fora dele, ainda que seja em sede constitucional.

Se o Sr. Presidente da República se não resigna a esta fatalidade, não tem mais remédio senão o de esconder-se debaixo da capa de uma amnistia formal. A seguir, em memória dos crimes de alta traição de que é responsável, peça como galardão uma venera da Ordem da Liberdade porque, enquanto for agraciado com ela, não obrigará os que têm outras condecorações portuguesas (aquelas que enobrecem e dignificam, as que, na verdade, é uma honra recebê-las), não levará esses, repiso, a restituírem-nas. Por último, proclame-se benemérito da Nação para que todos os que a serviram, com denodada galhardia, no sacrifício e no dever, se apresentem como renegados e maus portugueses. Se assim o quer, faça-o, pois, mas faça-o prontamente porque já tarda a hora de separar o trigo do joio: não haverá qualquer inconveniente que se comece a chamar branco ao que é preto, desde que se possa falar em preto onde virmos branco.

Vou-me chegando ao final destas alegações. Não sei se as palavras com que desejo fechar ajudarão à minha defesa, ou servirão antes para minha condenação. Elas prendem-se, todavia, com os meus brios de homem e a minha condição de português, e estas são qualidades que não podem ser postas em almoeda porque não têm preço.

Não transijo, não me acomodo, nem cedo um palmo quando se trata de honra. Por isso, antes de me calar sobre este asunto, aqui ou noutro lugar, agora ou mais tarde, sempre direi: se o Sr. Presidente da República não é um traidor, então, para que as palavras ao menos conservem algum sentido, eu terei de passar a chamar traidores a todos os homens que, em Portugal, ainda não dobraram o joelho diante das Internacionais e, sobretudo, vejo-me na necessidade de lançar este nome sobre a memória sagrada de quantos, ao longo de séculos, empenharam vidas e fazenda, deram tudo, nada regatearam em prol de uma cruzada de civilização, a mais épica e a mais abnegada cruzada a que povo algum já se votou.

VIVA PORTUGAL!

­­­­­­­­­­­­­­­­­­Joaquim Maria Cymbron
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1.   Haja em conta, o ano que corria.
2.   CRP art. 205.º (actual art. 202.º, n.º 1); Lei n.º 82/77, de 6 de dezembro, art. 1.º (id.).
3.   CPC art. 514.º, n.º 1 (actual art. 412.º, n.º 1).
4.   CRP art. 7.º, n.º 1.
5.   Ib., n.º 3 (substancialmente o mesmo na redacção actual).
6.   V., supra, n. 5.
7.   Mais uma vez se chama a atenção para o momento em que foram produzidas estas  alegações.
8.   É o actual n.º 8 do mesmo artigo.
9.   Inalterado.
10.  Inalterado.
11.  V., supra, n. 5.
12.  Quanto ao n.º 3, de novo se remete para a n. 5.
13.  V., supra, n. 5.
14.  Inalterado.
15.  V., supra, n. 5.
16.  Inalterado.
 
JMC

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