Princípios inegociáveis? Ignoro o
que sejam! Haverá, porventura, princípios negociáveis? Em bom rigor e são
critério dialéctico, julgo que qualquer princípio é inegociável, sob pena de
trair a sua natureza de princípio. Assim penso, e conto vir a demonstrar como é
correcto.
Tanto quanto alcanço, princípios,
princípios sem mais --- e não sei de outra espécie, insisto, --- são os
fundamentos sobre os quais assentamos a construção de uma doutrina, autênticos
alicerces do edifício onde se guarda o sistema político, económico ou social
que temos como justo. Ali se encerra a nossa filosofia de vida no que é
temporal, sem nunca esquecer a vocação sobrenatural, esse convite à salvação
eterna que a todos foi dirigido. Se a razão natural basta para atingir a
certeza da existência de Deus (1), a
fortiori pode o homem conhecer, com verdade lógica, os princípios mais
adequados ao preenchimento do exemplar divino. São princípios imorredouros e, nessa
qualidade, não sofrem qualquer tipo de arranjos espontâneos ou forjados.
Por isso, a doutrina, que acatamos,
ou está conforme à verdade, ou anda afastada dela: no primeiro caso, são
intangíveis os princípios em que fundamos as nossas crenças; na outra hipótese,
também nada existe para negociar, porque a única opção, que se oferece, é corrigir
o que há de errado com o propósito de encontrar o caminho da verdade perdida.
Àquele que se deixa assaltar pela
dúvida de que são inegociáveis os princípios que formam as bases da sua mentalidade
e da sua maneira de estar no mundo, se for honesto só lhe resta uma saída: rever os
seus princípios, e se resultar que decaiu na convicção da bondade do credo até
aí professado, crie então outra escala de valores, e apresente-se com nova
identidade moral, assumindo o nome que lhe couber. Agora, sustentar que apenas meia
dúzia de princípios merecem o estatuto da intangibilidade, eis aí algo que não
hesito em repudiar.
Todos os princípios, na sua
génese, na sua marcha e na sua finalidade, devem reconduzir-se à Unidade, à Verdade, à Bondade
e à Beleza do Ser. Estes atributos transcendentais, os quais pela sua
universalidade são absolutamente necessários, conferem ipso facto um valor indefectível aos princípios que neles encaixam,
sem excluir nenhum. Uma simples excursão por terrenos da ontologia, e temos tudo
o que a razão põe à nossa disposição, com suficiência plena, para resolver o
problema da ascese pessoal ou do convívio com o semelhante.
Pergunto:
Contidos nos atributos
enunciados, que espanto pode causar que todos os princípios tenham a mesma
categoria? Com que autoridade se separam uns dos outros? Será demasiado pedir que
se compreenda que há pontos de apoio, dos quais o agente arranca com o
objectivo de tocar o cume da santificação, a que está chamado no plano
misericordioso de Deus? Ora esses pontos são outros tantos princípios. Efectivamente,
«(...) hoc nomen principium nihil aliud
significat quam id a quo aliquid procedit;» (2). Como podem, pois,
negociar-se se o seu objectivo é servir a efectivação dos princípios que alguns
(e, neste segmento, bem) decretam que não permitem a mínima renúncia?
Quem se despir de preconceitos,
terá de conceder que, no domínio do temporal, o Legitimismo é o único sistema
capaz de responder ao que se quer preservar com a observância dos chamados
princípios inegociáveis. Tem a exclusividade? --- Se atendemos à primazia da
qualidade, a resposta é forçosamente afirmativa, porque é aquele que, se for
aplicado observando a sua pureza abstracta, tanto quanto o homem pode
aproximar-se do ideal, perfaz melius et
conuenientius a nobilitante missão de orientar a cidade terrestre em
direcção à cidade celeste.
Alianças escoradas nestes
princípios, ditos inegociáveis, não servem a ninguém porque descaracterizam
todos. É tamanha a amálgama que, a certa altura, não se defende nada: nem os
princípios inegociáveis, nem os negociáveis, aceitando como válida tão triste e
infeliz distinção. Os que se encontram em comunhão connosco, crendo no que
classificam como princípios inegociáveis, se estão de boa fé, que se juntem a
nós; se aguardam o contrário, será porque querem algo mais, e não têm de
admirar-se se concluirmos que então se desvanece a sua recta intenção.
No esforço contínuo de penetrar
na essência das coisas, não vejo outro direito além de poder requerer condições
a fim de dar matéria e forma ao que é nosso dever realizar.
A obrigação de cumprir só na
monarquia se manifesta com luminosa clareza, porque essa obrigação se reflecte
na primeira figura da grei pelo simples facto do nascimento. Em mais nenhuma
instituição humana, a consequência entre nascimento e serviço é tão estreita e
inexorável.
O herdeiro do trono, por força do
berço que o acolheu, recebe o encargo de servir, reinando; cada homem, ao
renascer para a Graça através do baptismo, contrai outro vínculo que parece o
oposto do anterior: reinar, servindo. Parece, disse eu. Mas não é. A sequência verbal não é suficiente para que dela se conclua pela diferença --- no fundo, é do mesmo que se fala porque Rei posto e
gente comum, todos são herdeiros da promessa que dá o prémio onde houver
serviço: só a servir é que se reina; e apenas se chega à coroa da
bem-aventurança, quando se serviu. E o que daqui resulta há-de sempre ser para
glorificação de Deus Omnipotente, sem o que se constrói em vão.
Se é verdadeiro o juízo de que
viemos para servir --- e é piamente que nele acredito--- temos provada a
excelência da forma monárquica para regimento dos povos. Falei de forma
monárquica, a que se plasma nos moldes da monarquia tradicional, a única digna
desse nome. Porque nos simulacros a que dão o nome de monarquia, não se
descortina ponta de serviço real. Não o descortinamos, nem podemos avistar pela
razão de que serviço pressupõe responsabilidade, e os reis dessas monarquias
são irresponsáveis por definição constitucional. Ou antes: por defeito
constitucional, um aleijão que algumas vezes transforma em pigmeu quem poderia
ter sido um gigante.
No dia em que me convencer de que
é negociável o princípio monárquico, será porque ou enlouqueci, ou perdi a noção
do significado das palavras. Ao mesmo tempo, partindo da firme opinião de que
nenhum princípio é negociável, sob pena de que, se o fosse, seria tudo menos
princípio merecedor de veneração como desde o início venho sustentando, também não há razão para fugir a uma aliança
circunstancial. O todo informe, desfecho fatal onde desembocarão os que se revolvem
na incredulidade da existência perene do princípio legitimista, um princípio
indestrutível como todos os princípios que não se dispõem a perder o foro daquilo
que são --- princípios ---, passando à tranquibérnia do que calha dizer, esse
amontoado sem rosto que nos permita saber de quem se trata, esse monstro colossal, insisto, não é propriamente
o mesmo que lutar ombro a ombro. Momentos há, nos quais o combate lado a lado é
não só lícito como até obrigatório.
De resto, a dicotomia princípios
inegociáveis-princípios negociáveis gera um contraste, falso no seu âmago, e
perigoso na sua prática. É uma situação muito próxima da teoria do mal menor. No entanto,
para acertar ideias, cabe sublinharo que o mal menor, apesar da repugnância natural que desperta em nós, sempre tem a
seu favor uma causa escusante: a não-exigibilidade, a qual não se verifica na
questão aqui abordada, pelo menos com igual frequência e na mesma intensidade.
Em contrapartida, o fabuloso confronto, que nos absorve, surge com uma nota agravante
e que é o de ser mais enganador, porque tem a dose de alguma sedução. Com
efeito, no momento de optar pelo mal menor, tem-se consciência do erro que
comporta a nossa decisão; quem deixa para trás os pretensos princípios
negociáveis, voga nas ondas de um mar de aparente bonança, mas corre o risco de soçobrar
porque esqueceu o rumo de bom porto.
Nunca dei, nestas estranhas
coligações, por nada de inegociável fora dos dogmas de quem não comunga connosco em toda a linha: os outros
princípios, esses são negociáveis e, portanto, prescindíveis. Isto é uma
desastrosa ilusão, porque é grande, mesmo enorme a probabilidade de acabar em
tragédia. Antevejo --- e Deus me perdoe se é temeridade --- que ou fazemos o mesmo
que Ulisses, ou, arrastados pelos cantos de novas sereias, iremos navegando de
encontro às rochas que nos hão-de fazer naufragar.
Os anos e o estudo que os vem
acompanhando confirmaram o que, talvez por índole temperamental, eu já intuíra:
a rigidez nunca é vício próprio; está
sempre com os outros. E o meu passado não regista um episódio de cedência por
parte dos que apregoam a sua própria flexibilidade. Por isso, surpreende-me a
facilidade com que gente provadíssima na defesa da ortodoxia e da mais inconcussa
fidelidade à Tradição se deixa embalar por melopeias, que são outras tantas
embustices.
Ao longo destas linhas, mais de uma
vez confessei abertamente a minha devoção política ao Legitimismo. Também ficou
explícito como entendo que é um princípio inderrogável e o motivo por que o é:
Do direito, dispõe-se; o dever é
para ser escrupulosamente observado. O peso deste fardo aumenta, à medida que
se vai subindo na hierarquia do século. Ocupando a mais alta posição na escala
humana da esfera temporal, a autêntica majestade real está condenada, em sumo
grau, ao dever de servir. É a sua uia
crucis, mas é igualmente por onde se vai desdobrando o caminho da sua
ascensão à Glória. Como Salomão, saiba o Rei pedir sabedoria para exercer com
êxito a sua espinhosa tarefa! (3)
Regresso, pois, à correspondência
entre o direito e o dever. Acabei de afirmar que a razão de ser do direito
está subordinada ao exercício do dever. Na curtíssima relação, que estabeleci,
deixei categoricamente gravada a ideia de como o homem, mais do que titular de
direitos, é sujeito de deveres. Nada mais acrescento a este respeito, porque se
então as minhas resumidas palavras não convenceram, também não será agora pela
extensão que virá o acordo.
Para mim, a ordem desta
composição é evidente. E da evidência
não pode dizer-se que dispensa demonstração: a evidência nega a
demonstração, porque dela se parte para provar o que se pretende. E até,
no plano moral, não se tem notícia de santo que brade por direitos, mas sim
preocupado pelas faltas cometidas e sempre animado da vontade de melhorar. Santo
ou herói desprendido, que ambos são modos de santidade, nada pedem nem esperam em
troca. Dão-se por inteiro para acrescentamento da Fé e em prol do comum. Leiam-se os hagiológios,
compulsem-se os anais militares e nenhum desmentido ali se encontrará ao feito
irrecusável que é o de uma dedicação constante a Deus e ao próximo, rota de sacrifício esta quantas vezes marcada pela oblação da própria vida.
É altura de concluir:
Os princípios não se negoceiam como se fossem mercadoria, cujo preço oscila ao sabor das flutuações próprias da lei da oferta e da procura. Há princípios genuínos e, a par destes, correm máximas que nos confundem, porque são trapaças inconscientes ou maldosas. Quem falar em princípios inegociáveis, na eventualidade de emitir um juízo certo, abre porta à existência de princípios negociáveis. Ora já se viu como todos os princípios têm de germinar, desenvolver-se e terminar na Verdade. Nessa medida são inegociáveis. A valer a opinião da existência de princípios inegociáveis, essa mesma opinião transportaria o morbo do relativismo. De facto, esta desgraçada divisão dos princípios não consegue impedir que se levante a interrogação de ser também negociável o princípio lógico-formal que afirma a sua suposta realidade: se a resposta for negativa, entra-se num processo indefinido; se se decidem pelo sim, então nada disseram. Pelo que não tem dignidade de princípio senão aquilo a quo aliquid procedit (4), que é coerente e que está acima de qualquer transacção!
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Os princípios não se negoceiam como se fossem mercadoria, cujo preço oscila ao sabor das flutuações próprias da lei da oferta e da procura. Há princípios genuínos e, a par destes, correm máximas que nos confundem, porque são trapaças inconscientes ou maldosas. Quem falar em princípios inegociáveis, na eventualidade de emitir um juízo certo, abre porta à existência de princípios negociáveis. Ora já se viu como todos os princípios têm de germinar, desenvolver-se e terminar na Verdade. Nessa medida são inegociáveis. A valer a opinião da existência de princípios inegociáveis, essa mesma opinião transportaria o morbo do relativismo. De facto, esta desgraçada divisão dos princípios não consegue impedir que se levante a interrogação de ser também negociável o princípio lógico-formal que afirma a sua suposta realidade: se a resposta for negativa, entra-se num processo indefinido; se se decidem pelo sim, então nada disseram. Pelo que não tem dignidade de princípio senão aquilo a quo aliquid procedit (4), que é coerente e que está acima de qualquer transacção!
Joaquim Maria Cymbron
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- Dz. 1806.
- S. Tomás de Aquino, O.P. --- Summa Theologica, I, q.33, a.1.
- 1 Rs. 3, 9.
- V. supra, 2.
JMC
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