Movidos, um após outro, na sucessão imparável do devir, os dias escapam-se e encerram o presente fugidio no sepulcro do passado. Esse presente ressuscita incessantemente – a sua ressurreição chama-se presente projectado no futuro! Quando a linha, que ata estes momentos, é poderosa e reflecte a lei eterna, aí damos de rosto com a Tradição!
A riqueza do passado; a evidência do presente; e a chegada
próxima do futuro são, pois, o património da Tradição. Vivemos no presente,
escorados no passado e com os olhos postos no horizonte do futuro.
Nostálgicos
do passado, nós? Não, mil vezes não! Entre os que o afirmam, alguns não são
capazes ou não querem reconhecer como a transparência cristalina dos factos
desmente o erro crasso em que incorrem; a maioria, porém, limita-se a fazer eco
do que ouve a outros sem perceber uma palavra do que esses dizem. Para as
mentes transtornadas que despejam tal desconchavo, a nossa nostalgia está na
confissão da fé tradicionalista que professamos. Esses infelizes nunca
repararam, que não é a nossa doutrina que regressa ao passado, mas são os
tempos pretéritos que revelam uma força profética, só explicável por serem
perenes os seus princípios.
A
justeza dos ensinamentos, que nos legaram, salta à vista. A sociedade degenerou
de maneira assustadora – confirmou-se o vaticínio formulado para o caso de os
povos se desviarem do caminho que o direito natural aponta. Mas a salvação
continua guardada no depósito impoluto da Tradição. A esperança segue
viva por muito que os cépticos desanimem e declarem o contrário. E há-de ver-se
justificada porque não é possível que a Tradição se extinga.
Na sua raiz ontológica, a Tradição política tem a potência constante
de se ir tornando actual e, por isso, é dinâmica. Nenhuma confusão, pois, com
sectores cronicamente avessos à mudança, os quais já apodreceram por acção dos
miasmas dos pântanos em que estagnaram e onde tornam a mergulhar. A Tradição,
no domínio do que é temporal, espelha a imagem do Ser rodeado dos seus
atributos transcendentais: a Unidade; a Verdade; a Bondade;
e a Beleza. A sua unidade permite-lhe exibir a elasticidade que basta
para se manter indefectivelmente válida, sem perder a identidade metafísica que
a distingue. O tempo passa, mas não a mata. Não a matou até hoje, nem
conseguirá fazê-lo, porque a Tradição é um formidável desafio à morte.
Formidável e vencedor, registe-se.
De facto, a Tradição não morre. Pode, contudo, revestir-se de dó. Hoje, esse dó alastra por um modo que inquieta porque sobram motivos para que a Tradição se cubra de luto. A Tradição parece prostrada esperando a hora de despertar. Este farol, guia fiel da Humanidade, dá a impressão dolorosa de que se apaga. Num mar de ondas alterosas, sobre o qual navegamos em nau desarvorada, sem agulha e sem leme, são claros os prenúncios de naufrágio.
Sabe-se que, na profundeza dos seus abismos, os oceanos revoltos do passado escondem muitos testemunhos da via-sacra da Tradição: a história nacional, aqui como noutros domínios, é eloquente. Mas repita-se a ideia: morte e Tradição não combinam. Os soldados da Tradição podem morrer (já muitos morreram e, após eles, muitos mais hão-de morrer); porém, a Tradição, essa não morrerá jamais.
A morte, em política, é a meta de uma enfermidade que toma nome na Revolução. Mas é bom que se saiba que, para o desenlace mortal, não trabalha só a Revolução. Não descuremos o perigo do conservadorismo e a morna religião dos moderados, seus parceiros de catástrofe.
O conservadorismo, esse agente morboso, que se insinua no meio dos povos, teme a flexibilidade da Tradição que vai quebrantar o sossego da sua fixidez. Entretanto, de envolta com ele, surge o moderado, ser incaracterístico, feito de metades, subespécie do género conservador, que se revolve na ilusão de ter descoberto a pedra filosofal da política num ponto de equilíbrio imaginário. O conservadorismo é, assim, a bissectriz da notória demência que um desenhador híbrido traçou, enquanto verberava os tumultos da Revolução e se retraía diante da agilidade da Tradição. O que faz com que conservadores e moderados sejam, há muito, cúmplices da Revolução: a maior parte das vezes sem dolo, talvez, mas nem por isso menos cúmplices.
José
Agostinho de Macedo, homem de superior engenho, afirmava que os povos são
desviados da Verdade por duas buzinas:1 a buzina da
moderação e a buzina do adormecimento. Já assim era naqueles anos distantes.
Nos tempos modernos, a buzina da moderação, baixando o som do pregão, segreda a
ouvidos descontentes: não peças muito a ti próprio nem aos outros, porque isso
é um resvalar desastrado para terrenos muito perigosos. Segue-se-lhe a do
adormecimento: caladas as vozes contestárias, é o torpor que vem
e as pessoas passam a andar como se fossem sonâmbulas: não repugna
admitir que estas são as buzinas tocadas pelos conservadores, as da música do
antes mal que pior. E é sob o efeito deste estupefaciente duplo, que os povos
vão avançando cegamente para o precipício que os há-de tragar.
Anos
mais tarde, o espanhol Donoso Cortés, também ele figura de eleição, sustentava
que as revoluções não existiriam se não houvesse moderados.2
Triste
desfecho das contradições humanas: o moderado e o conservador, que se ufanam de
não ser o que eles chamam retrógrados nem aceitam o nome de progressistas, que
detestam a reacção, ao mesmo tempo que abominam as bruscas e violentas
convulsões, estes estranhos actores são afinal o principal veículo da Revolução.
Lado a lado, com eles arrastam a sina fatal do relativismo doutrinário, de
cujos malefícios sofrem!
A
Revolução terminará por sumir-se tão violentamente como é assassino o
rasto que deixou e conforme os ódios que espalhou, enquanto quis modificar o
homem. O conservadorismo, com a sua crónica esterilidade, há-de esboroar-se
porque não sabe resistir aquele que não tem aptidão para renovar. Os moderados
também se desfarão em pó porque são matéria informe e quem está neste caso não
evita o aniquilamento. Juntos, uns e outros, eis formado um tipo curioso de
monossomia, isto é, dois monstros vivendo como se fossem um só corpo: ora o
destino das naturezas monstruosas é o desaparecimento. Os conservadores
planeiam pôr freio à marcha das coisas, o que logo a simples evidência se
apressa a mostrar que não é susceptível de se concretizar; os moderados, por seu
turno, são como grimpas instáveis tomando a direcção para a qual o vento sopra.
O conservador presta tributo ao positivismo legal: para ele quod constitum est, iustum est.
Desprovido de um padrão absoluto, não rejeita a Revolução desde que
ela se instale: numa rápida metamorfose, lá irá despontar outro acérrimo adepto
desse novo estado de coisas. Do moderado, esse arauto do centrismo sem uma
circunferência de raio curto ou longo porque nada há que se veja no centrismo,
desse ente por definir, não é melhor o que se possa dizer: moeda fraca,
oscilando ao sabor das flutuções daquelas que ditam o valor do câmbio, nunca
alcançando cotação credível no mercado, satisfaz plenamente a especulação
revolucionária. Só a Tradição perdurará porque, como resulta da sua
natureza filosoficamente definida, ela apresenta, a seu modo, todas as notas
constitutivas do que é um princípio transcendente e, nessa qualidade, de
vitalidade imperecível.
Os
pergaminhos da Tradição servem de justo fundamento à sua exigência e à
sua selectividade, transformando-a na porta estreita através da qual se sobe ao
cume da montanha. A Tradição é exigente no rigor das suas normas; e é
selectiva na admissão dos soldados que recruta. O seu rigor é bem visível e por
causa dele é objecto das mais ásperas censuras: as austeras condições de
entrada depressa se volveram no alvo de quem ataca a Tradição,
procurando afrouxar o quanto de apertado nelas há. Para quê? – Não é difícil
adivinhá-lo!
Há,
desgraçadamente, quem misture Tradição com o arraial de umas linhagens
vaidosas da sua antiguidade e, por vezes, de um lustre bastante duvidoso para
além de poder contar, com maior ou menor fidedignidade de prova documental, um
número infindável de avós. Satisfazem-se com isto, porque de obras, passadas ou
presentes, nem uma! Por obras, pretende referir-se a mortificação pela Tradição
e, se as circunstâncias o reclamarem, será ainda mais, porque é a disposição de
abrir mente e corpo à oblação última: passa a ser a virtude da fortaleza de
quem não vacila em morrer abraçado àquela Cruz. Tomada a Tradição em
toda a plenitude com que tem vindo a ser descrita, não será temerário afirmar
que este suplício é, talvez, a forma suprema que a criatura humana pode eleger
para comungar no drama que foi a Paixão e Morte de Cristo. Não é,
decerto, o Martírio Infinito porque esse só o Salvador pôde oferecer; mas
será, muito provavelmente, o Martírio Integral de que é capaz o homem. A
História traz-nos inúmeros exemplos dessa doação no altar da Tradição;
dos vivos, ainda ignoramos quantos terão esse heroísmo.
Voltemos,
contudo, à feira de tolas futilidades em que descambou a antiga nobreza. Esse
cortejo de uns tantos representantes do que foram castas apuradas, mas que
hoje, fora de uns círculos fechados, onde deixam vulgarizar-se o que era uma
inegável elegância de maneiras, que indisputavelmente possuíam e os diferençava
do comum da população, essa gente inócua, no seu bacoquismo, já não convence
ninguém e, em qualidade, é condizente a ausência de grandeza porque significa
pouquíssimo ou mesmo nada. A isto está reduzida a aristocracia histórica.
Para
ser combatente, nas hostes da Tradição, só dois títulos de nobreza
importam: um é heráldico; o outro, de natureza genealógica. O primeiro recorta
um escudo de armas com o campo cheio dos espinhos do sofrimento e manchado do
sangue vertido na luta; a encimá-lo, tem o timbre da honra. No segundo,
prescreve-se a obrigação estrita de ficar o nome de cada um gravado na memória
dos sucessores. Dois títulos, qual deles o mais rico e ambos de muito peso para
os que ousarem tomar sobre os ombros carga de tamanha responsabilidade.
A
Tradição também dispensa antiguidades por muito dignas que sejam de
figurar nos museus, galerias de arte ou em exposições de ocasião. Muito à
semelhança do que se sutentou a respeito das genealogias e brasões, à Tradição
não lhe interessam essas antiguidades e, sobretudo, não está nos seus
propósitos perder tempo com algumas delas, autênticas velharias ressumando o
bafio de arcas, onde se desfazem em pó. Nem quer gastar-se em labores
improdutivos ou em folguedos pueris, que se poderiam compreender em
divertimentos de crianças, mas não fora desse âmbito estrito.
A
Tradição flui a par do tempo e corre ao compasso dele. Numa aguda e
curiosíssima mensagem, S.toAgostinho escrevia que não seria correcto
falar de «pretérito, presente e futuro»3 porque «(...) talvez fosse
próprio dizer: os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes,
presente das futuras.»4 E logo ajuntava o conjunto que estes três
tempos formavam: «(...) lembrança presente das coisas passadas, visão presente
das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.»5
Perfilhando a prosa do Bispo de Hipona, não repudiamos a luminosa ideia
que, sobre o tempo, nos transmitiu o Doutor da Graça, o que nos vai
permitir, mediante os devidos ajustes, proclamar a Tradição como aula
duradoura do passado; pedagoga directa do presente; e estrela segura que anuncia
a aurora de um porvir mais justo.
Agora
é altura de cativeiro, um cativeiro longo e penoso na razão directa do pecado
praticado. Os homens acham-se à beira de um abismo terrífico, porque, uma vez
lá, dele não há retorno: é o abismo da perdição. De garras afiadas, o Demónio
prende e rasga o tecido social. Um vento de loucura devasta paragens onde já
floresceram culturas que as idades, ao longo dos séculos, não desistem de
recordar e admirar.
Em
toda a face da Terra, que povoamos, quem é réu desta ameaça de destruição?
O
Islão, carregando o estigma de carrasco temível, pronto a recolher os despojos
de um Ocidente amorfo e moribundo? Israel, aparentemente longe da conversão
prometida por S. Paulo,6 porque de novo se roja aos pés do bezerro
de oiro? A Rússia, herdeira do formidável colosso soviético e que se mantém
esfíngica, ocultando o seu histórico messianismo? Uma Europa irreconhecível,
que abdicou de si mesma depois de Vestefália e que é, actualmente, uma
mistificação política gerada num lugar geográfico pouco firme? Será este
amontoado disforme, ostentando um nome que não merece ir além de uma designação
toponímica, e que hoje, miseravelmente impotente, já nem vigor tem para
recordar o seu passado? Ou é o titã anglo-saxónico de além-Atlântico, que nunca
transmitiu uma identidade, provavelmente porque nemo dat plus quam ipse habet? A China? O Japão? Alguma das
Coreias? – Parece que a resposta mais avisada será a de culpas repartidas por
todos!
A
crise tormentosa, que nos aflige, exige como réplica a guerra. Essa guerra
começará pela ascese individual. Constitui um exercício de todas as épocas,
porque o primeiro inimigo que se nos atravessa, aquele que nos acompanha sem
desfalecimentos, da concepção à tumba, é a concupiscência desordenada que em
nós habita. Se permitimos que a sua persistência vença, será o mesmo que
oferecer a esse inimigo a vitória que ele estima sobre todas, porque é
entregar-lhe o nosso bem mais precioso – a alma. Depois desta ascese que é o
combate contra quem intenta tomar-nos de assalto por dentro, vem o combate
contra o inimigo externo. E é esse o que vulgarmente se vê como guerra. Pese
embora isto venha a ferir alguns ouvidos pios, de uma piedade de duvidoso
sentimento cristão, esta medida, na sua mais nua e crua expressão, sem obviamente
esquecer a ascese, é a derradeira solução humana para proteger vidas e fazendas
e, acima disso, acautelar a nossa tranquilidade contra a ameaça que pairar
sobre todos os que anseiam atingir o fim sobrenatural. Só um milagre pode
impedir a necessidade de buscarmos abrigo, um abrigo que é quase paradoxal pela
certeza de que nos vamos refugiar numa tempestade de metralha, mas que não
deixa outra escolha, se pensamos num auxílio puramente humano. Porque note-se
bem: se não nos vale o Céu, onde está a defesa? Cruzamos os braços? Se o verbo
é ainda a corporização formal dos conceitos e estes correspondem à verdade
ontológica, Deus há-de demandar quem, dominado por tibiezas ou afogado em
respeitos humanos, inclinar os demais à passividade e à rendição ante as novas
hordas de bárbaros. Estes bárbaros não são outros Hunos que queimam e saqueiam
os territórios que pisam. Eles moram dentro de portas: a fronteira já não é
física, mas moral. Pode até ocorrer que a divisão se situe no coração de cada
um, se ele não possuir ânimo bastante para sufocar as suas más tendências ou,
ensandecido do juízo, se virar contra os seus códigos e padrões de valores.
Esse também irá engrossar a horda de bárbaros.
Quantos
são os desafios que vão colocar-se aos que se decidirem pela Tradição?
E que sacrifícios lhes serão pedidos? Muitos e pungentes, sem ponta de dúvida!
A arquitectura medieval ergueu as mais belas
catedrais que o génio humano alguma vez levantou. São obras-primas que saciam a
sede de beleza do nosso espírito. As suas linhas seduzem e este encanto
atravessou séculos, o que é fiança segura de continuidade. Todavia, o
maior monumento deste período histórico não se compõe de pedras: a mais
perfeita construção está na Respublica
Christiana que encheu de benefícios a Europa quase inteira. Nunca, antes ou
depois, se casou com tanta harmonia o modelo político com o espiritual de raiz
cristã. Um Humanismo, de um antropocentrismo excessivamente
soberbo, fez os primeiros estragos neste edifício; como era de esperar,
seguiu-se a Reforma
que lhe vibrou os mais duros golpes; o Despotismo
Iluminado, com todos os
destemperos do Enciclopedismo, não tardou; daí à Democracia e ao Liberalismo foram breves passos. O momento, que se vive,
é a hora do delírio e para nele se cair, após o percurso aqui enunciado,
foi mera questão de tempo.
No presente, a nossa civilização está à beira
de ruir por completo: é um dado incontornável, já referido, e que ora se repete
para melhor arrumação do que resta expor. A decadência é geral e toca os mais
diversos campos: sentimento religioso; dignidade moral; culto da família;
espírito comunitário, tudo isto foi paulatinamente invadido por um veneno
letal. Na sua fereza, a Revolução não poupou templos, raças, países, classes ou
instituições de qualquer procedência ou origem: o risco de o homem não
sobreviver bate à porta. A sanha deletéria, que a impulsiona, traz o selo dos
Infernos, porque não se lhe dá de também arder nas labaredas que ateou. O ódio
é tão contra naturam que até apetece
sofregamente triunfos com o travo das vitórias pírricas, onde acabará por se
consumir à semelhança do herói do Epiro. O destino da Revolução é, efectivamente, o de se revolver nas
cinzas, que a sua rota deixou atrás, e o de estorcer-se no meio do fogo,
impenitente e raivosa por deparar com a derrota final. Sirva-nos este turvo
panorama para que dele se extraia lição profícua. Ensina-nos a História que,
mais do que aos inimigos externos, a responsabilidade da derrocada de impérios
e de culturas deve ser imputada aos que atraiçoaram a herança recolhida. Se
Deus desencadear um castigo cósmico, quantos serão poupados a esse decreto de
extermínio, como o foram Noé ou Lot?
São múltiplos e gravíssimos os males que
abalam o que sobeja de ordem social. No entanto, logo abaixo do declínio moral,
aquele que mais assusta é a progressiva degradação do pensamento. A seguir
se desenha o quadro de uma das mais gritantes manifestações desta
derrocada :
Quando a vida humana é vista como um valor
absoluto (e isto, intrigantemente, acontece por parte dos que se dizem seus
defensores), se tal se verifica, não deve admirar que as portas, já
escancaradas há muito, se abram ainda mais a todo o tipo de desmandos. Este
jeito de olhar a vida humana padece de um erro ontológico inadmissível e é um
dos despautérios mais em voga. Sempre que, com palavras muito cativantes, se
proclama a vida humana como um valor absoluto, sustenta-se algo que choca,
começando pela incoerência dialéctica dessa posição. Daqui irrompe um
número incontável de tremendos contrassensos, mesmo para os que, sem ter
como nós a graça da fé, não renunciaram ainda às faculdades de que estão
assistidos como seres racionais. E, para os que cremos em Deus, esta construção
teórica, além de repugnar ao entendimento, é de um arrojo inaudito com proporções
de sacrilégio.
O valor da vida humana é um valor sagrado,
isso sim, mas a nossa vida não está dotada de valor absoluto, porque absoluto,
inequivocamente, só Deus. O homem participa da Sua essência, mas não é divino.
Deus não tem princípio nem fim e n'Ele não há sucessão de qualquer espécie; o
homem nasce, desenvolve-se, tem sucessão de operações, está sujeito ao
envelhecimento e à corrupção da morte, só participando da eternidade o seu
corpo ressuscitado, o qual vai unir-se à alma separada com a morte sofrida.
Em suma: Deus é Acto Puro, é ens a se;
o homem muda, existe ab alio.
É da essência divina o esse; o homem apenas
o tem. Sendo radicalmente diferente a essência, diferente há-de ser tudo o que
se lhe possa atribuir. Ferir a nota de absoluto, como propriedade da vida
humana, atira-nos para um ponto sem saída, uma vez que esta posição se
converterá automaticamente na negação da legítima defesa individual ou
colectiva. E assim é que, sob a capa de campeões de um valor positivíssimo, com
a qual se cobrem, todos eles vão alimentando a subversão, uns inadvertidamente,
maldosamente os outros.
Medir e pesar o valor da vida humana nos seus
exactos limites, é empresa árdua, mas nem assim devemos lançar ao desprezo este
assunto apaixonante, que é, ao mesmo tempo, delicado e espinhoso: o problema
merece particular atenção e a sua solução é de suma importância. Fixar a noção
precisa da vida humana é imperioso para quem queira encontrar a base sobre a
qual opera a Tradição. Sem vida, como é óbvio, a Tradição também
não existiria, porque não tinha onde sustentar-se. De forma liminar,
cumpre dizer que é a Tradição para o homem e não o invés. O excelso papel
que a Tradição desenrola só tem lugar no palco do quotidiano:
esta relação dita a necessidade de clarificar a noção de vida para se não
duvidar do relevo que a Tradição assume na história do homem.
Convém, pois, ter presente que a vida é um dom
outorgado pela magnânima liberalidade de Deus, e que fomos criados para amá-Lo,
servi-Lo, glorificá-Lo e gozar da Sua visão beatífica. Temos apenas um direito:
o direito permanente e inauferível de exigir condições para cumprir esta
missão. E, pelos fundamentos já aduzidos, volta-se a lembrá-lo – a vida humana
nunca há-de ser elevada à categoria de valor absoluto. A tal se opõe, conforme
vimos, uma impossibilidade metafísica confirmada pela dogmática teológica. Por
isso, a reprovação do recurso à guerra, arrancando de uma argumentação que
repousa na falsa premissa de ser a vida humana um valor absoluto, não é de
levar a sério. Mas, por mal dos nossos pecados, já se infiltrou no organismo
das comunidades políticas em quantidade suficiente para as perturbar. Este
incidente é mais um elemento a reforçar a nossa hostilidade contra tão
incomensurado dislate.
Não
se requer uma especial agudeza de análise, nem grande poder crítico para logo
intuirmos casos em que a guerra é não só um direito como até um dever. Aquele
que, de forma muito suspeita, invoca princípios religiosos para privar de
legitimidade a defesa colectiva (e legítima defesa colectiva é a outra
designação da guerra justa), esse que tal fizer, está certamente animado de má
fé ou anda esquecido do castigo sofrido pelos benjamitas às mãos das outras
tribos de Israel.7 E ainda maior é o despudor ou a ignorância ao
calarem os depoimentos pertinentes a esta matéria, todos eles fazendo parte do
riquíssimo espólio dos mais ortodoxos teólogos e filósofos do Direito!
Se cada vida humana
fosse um valor absoluto, nem ao seu titular seria permitido dispor dela porque
o seu direito à vida era absolutamente indisponível. Realmente, no dia em que
se puder dispor de algo absoluto, ipso facto esse quid perde a
sua qualidade absoluta. Se discorremos de diverso modo, isso implicaria negar a
licitude do martírio e de tantas outras acções não só legítimas, como até
louváveis e, às vezes, mesmo imperiosas.
Em jeito de remate, sobre
o que se veio tratando, bastará só mais uma curta reflexão – diz ela respeito ao
sacrifício do Gólgota. É, não comportando isto discusão, a maior dádiva do
Criador. Com efeito, se o direito à vida fora um direito absoluto, como iria
Jesus Cristo oferecer-Se à morte, para devolver o homem ao estado de justiça
original?
Estas são páginas de
luta e foi para ligar a vida à Tradição, marcando a função que a esta
cabe em defesa daquela, que se optou por um discurso de combate. Portanto, não
deve espantar que as linhas finais prossigam neste sentido, uma vez que a noção
de vida foi adulterada mais, muito mais do que consentia uma já benigna e
tolerante indulgência. Contra essa deturpação, aguarda-se remédio na Tradição
e nela reside a nossa confiança.
Retomando o fio ao que se vinha desenvolvendo no que respeita à suposição de ser válida a opinião que vê um valor absoluto na vida de cada homem, o que de maneira alguma se concede nem concederá, regressando aí, vem de molde acrescentar que teríamos de fazer orelhas moucas ao chamamento para uma guerra defensiva porque, em obediência ao consequente de um antecedente sem tino, ou se se preferir, em fina criteriologia e são rigor de Justiça, não seria congruente afirmar esse valor para uns e recusá-lo a outros. Sendo todos, dentro daquela insólita tese, titulares de um direito absoluto sobre as suas vidas, se for o caso de alguma nação exercer violência sobre outra, como há-de esta reagir uma vez que a corrente, aqui refutada, declara que as vidas dos soldados do exército agressor também assentam sobre um direito de valor igualmente absoluto? É forçoso concluir que, a iniciarem-se as hostilidades e mantendo-se esta insensata teoria, teríamos oportunidade de contemplar um quadro de antagonismo, onde múltiplos valores absolutos se encontrariam na iminência de entrar em colisão frontal com outros valores absolutos. Quod absurdum!
Quando
há campos opostos prestes a digladiarem-se, que estilo de convívio apregoam
esses mensageiros de uma sociedade em que todos são titulares de um direito
absoluto à vida, o que exclui, como vimos, a viabilidade de uma legítima defesa
colectiva? Que códigos anunciam? O que daqui se deduz é que resultou bem clara
a inexequibilidade de qualquer coexistência sob um regime tão abstruso. E esta
impossibilidade estende-se aos casos de defesa de cada particular diante de
quem injustamente o ataca. De facto, se o que ataca e o que defende são, um e
outro, senhores de um direito absoluto sobre as suas próprias vidas, ao que
sofre o ataque é-lhe vedado defender-se, se não tiver outro meio de sustar esse
ataque sem provocar a morte do atacante. A validade do raciocínio é equivalente
em todas estas situações: guerra (clássica ou subversiva); sedição; e defesa
individual. Não quererão explicar-se melhor os promotores desta charada, de
modo a eliminar um desacordo que, como sucede tão frequentemente, pode derivar
apenas de um alcance mais afastado daquele que era prudente atribuir ao sentido
vocabular das palavras usadas? – A dúvida, em que o façam, é lícita. De
qualquer modo, não custa esperar. Entretanto, prossiga-se:
A
guerra está legitimada, desde que se observe a tríplice condição que foi
indicada por S. Tomás de Aquino – sumariamente, eis aqui os pressupostos
indispensáveis: auctoritas principis;
causa iusta; intentio recta.8 E casos há nos quais movê-la, além do
poder moral e jurídico que é, se transforma num dever a cumprir. Fugir a este
dever traduz omissão de uma tarefa que emana de um comando categórico:
desacatá-lo, nestas circunstâncias, cheira a deserção e pode ser concausa ou,
pelo menos, ocasião da iniquidade que se vai assenhoreando de todo o Mundo!
Mutatis mutandis,
no magistério do grande teólogo, também o direito à rebelião contra o tirano
vai achar a sua justificação: «(...) regimen
tyrannicum non est iustum (...).»9 Os pontos de apoio, de que o Doctor
Communis se socorre na questão de
seditione, quando não são formalmente repetidos, ao menos em substância,
sempre subentendem o conhecimento e a concordância com os da questão de bello. Sendo idêntica a matéria
versada, as conclusões a tirar têm necessariamente de se aproximar, podendo
mesmo chegar à fusão completa. Determina isto que quanto foi usado para
mostrar a inconciliabilidade entre o fundamento da guerra justa e o pretenso
direito absoluto à vida, isso tudo é inteiramente aplicável ao confronto que se
cava entre a revolta contra o tirano e aquele descomedido direito à vida.
Sobre
a defesa do particular escusado será argumentar muito: é um direito natural e é
dele que os outros brotam. Brotam dele e para preservação do seu
titular porque hominum causa, omne ius constitutum.10
Não
se pense que, por falar na legitimidade da guerra, da insurreição ou da defesa
pessoal, cumpridos prévios requisitos, não se creia, repisa-se, que o
combate pela equidade se confina ao campo de pugnas cruentas. A luta pela
civilização, que é afinal a luta da Tradição, pode e deve travar-se em
três frentes: rezando; doutrinando; e, se as circunstâncias assim o
exigirem, pelejando de armas na mão. Portanto, a uis física nem
sequer é uma fatalidade, como também não transporta o único meio de defesa:
antes, vem a ascese do espírito e o respeito pela moral.
Quando
vai ser o termo desta Cruzada? – mm É
uma incógnita. Contudo, um dia a sarça voltará a arder e uma nova Páscoa há-de
raiar. Então, outro Moisés surgirá para guiar o povo de Deus à Terra da
Promissão!
Joaquim
Maria Cymbron
________________________________________
- O Desengano, n.º 16, p. 7.
- Correspondencia con el conde de Raczynski, 13 de agosto de 1849.
- Confissões, liv. XI, cap. 20.
- Ib.
- Ib.
- Rom. 11, 25 e ss. Não é deslocado lembrar, aqui, a recente irrupção de medo provocado pela explosão de um autoproclamado Estado Islâmico. A selvajaria daquelas gentes e o cortejo de barbaridades perpetradas têm necessariamente uma causa. Desde logo, deve chamar-nos a atenção o facto de, pelo menos até hoje, não ter sofrido o mais pequeno dano qualquer interesse israelita, especificamente considerado, nem sequer outro de toda a nação hebraica. É bem sabido que os Judeus, numa prática constante e antiga, semeiam a cizânia entre terceiros, servindo-se dos antagonismos que os separam, e disso tiram benfício. Com um dito Ocidente cada vez mais dessacralizado, não lhes resulta difícil opor o furor sanguinário de uns tresloucados contra tudo que apresente um sinal de Cristianismo, por mais esbatido que esteja. Se mais não significa, sempre actua como um motor. São também suficientemente hábeis para, dentro da própria família muçulmana, aproveitarem a divisão entre xiitas e sunitas. Enfim, explorando todas as contradições existentes (como se exprimiria a dialéctica marxista-leninista), não perdem oportunidade de criar conflitos que são mortíferos!
- Iud. 20, 11-48.
- Summa Theologica II-II, q.40, a.1.
- Ib., q. 42, a. 2, ad 3.
- D. 1, 5, 2.
- Ex. 3, 1-22.
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